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Game of Thrones: a força está nas mulheres, mas longe de D&D

Quando o primeiro episódio de Game of Thrones foi ao ar, ainda sem o hype ou uma considerável base de fãs, assisti de perto brotar no Tumblr edições e mais edições de uma de suas mais marcantes personagens, Daenerys Targaryen.

Não demorei muito a me interessar pela série e demorei menos ainda para colocar a mão nos livros que serviram de base para a adaptação. Não sabia, na época, que a série e os livros me consumiriam de uma maneira que eu só havia experimentado em doses homeopáticas com o universo de Harry Potter ou de Crepúsculo. Experienciei, talvez pela primeira vez, o que era realmente fazer parte de um fandom. Meu usuário no Tumblr mudou e permanece assim até hoje. Minhas redes sociais viraram poços de referências e capas e fotos da série e sobre a série. Tudo era Game of Thrones e As Crônicas do Gelo e Fogo e nada doía — exceto que sim, as coisas doíam; uma dor diferente que só quem se apega demais a uma história consegue sentir.

game of thrones

Assisti a uma primeira temporada espetacular, pensando que finalmente poderia acompanhar uma adaptação bem feita. Tinha alguns traumas de adaptações que deram errado e quando percebi que a primeira temporada e o primeiro livro foram bem conectados, fiquei feliz. Li A Guerra dos Tronos, primeiro livro d’As Crônicas, só depois de assistir a primeira temporada, e durante a leitura era constantemente teletransportada às cenas que já havia assistido.

Foi durante a primeira leitura, no entanto, que mudei a forma de enxergar alguns personagens e tramas. Percebi que não odiava Sansa Stark, aquela personagem que quase todo mundo odeia, e logo me coloquei em posição de defesa. Não existe um comentário negativo que já fizeram sobre ela que eu não tenha contra-argumentado — ou, na grande maioria das vezes, revirado os olhos com um misto de desgosto e desistência.

Compreendi, à medida que minhas leituras avançavam e eu largava um livro para pegar o seguinte, que George R. R. Martin havia feito algo que nem todos conseguem: escreveu mulheres. Não donzelas em perigo, personagens bidimensionais — a puta e a santa, por exemplo — que ficam no plano de fundo como coadjuvantes de uma história onde homens são protagonistas. G.R.R.M escreveu mulheres fortes, mães e filhas, guerreiras, assassinas, ingênuas e manipuladoras, que caem e levantam, e aprendem, umas antes e outras mais tarde, que o jogo dos tronos tem espaço para todo mundo que saiba jogar — e acreditem, elas sabem.

Ao lado disso tudo, à medida que lia toda aquela estrutura, todas aquelas casas, nomes, personagens, comecei a imaginar o quão tudo aquilo seria épico na TV. E foi por um tempo — até que deixou de ser.

Em números e fãs, a série da HBO só cresceu. A cada ano as premières são cada vez mais assistidas. De quando em quando foi possível acompanhar esse número crescendo gradativamente de semana a semana. Game of Thrones virou um bom nicho de lucro. Camisetas, colecionáveis, livros, cadernos, tudo se tornou uma opção de venda. Concorreu ao Emmy — e até ganhou o prêmio de Melhor Série Dramática no ano passado. Está entre as Top Cinco Séries do IMDb e continua sendo muito aclamada, mesmo depois de cinco anos.

No entanto, uma parte considerável de fãs, ainda lá atrás, e talvez até antes, começou a torcer o nariz para certas escolhas feitas pelos showrunners.

É reconhecido que os livros possuem uma dose cavalar de violência. São tantas mortes e batalhas que vez ou outra precisamos pensar duas vezes antes de dizer que um personagem ainda está vivo. G.R.R.M é impiedoso e já pisou em nossos corações e sugou nossas almas com mortes que ninguém imaginaria — salvo se tenha levado spoilers feito esta que vos fala. Por um tempo e em alguns acontecimentos, David Benioff e D.B. Weiss, showrunners da série, adaptaram cenas e fizeram um ótimo trabalho no processo. Ainda lembro da sensação de desespero que senti após assistir ao Casamento Vermelho, de ser largada destruída, os créditos rolando em puro e completo silêncio. Naquela hora não havia música de fundo, apenas luto. Porém em algum momento o trem começou a descarrilar. Ou talvez ele já houvesse saído da estação com uma roda pra fora e uma sucessão de escolhas mal feitas fizeram com que a coisa toda desandasse de vez.

Não há argumentos contra fatos, e pra quem gosta de sexo, sexo é algo normal. Estabelecido isso, embora a HBO seja um canal aberto a cenas de sexo — e assim o é há anos —, existe uma tênue linha entre cenas ocasionais de sexo e diversas cenas de sexo de três minutos cada uma no meio de uma série cheia de histórias para contar. Existe também uma linha tênue entre cenas consensuais de sexo e cenas de estupro. Existem dois pesos e duas medidas onde o que se vê é extrema nudez feminina em contraponto a pouquíssimas e tímidas masculinas. Isso é o quê? Venda de serviço para homens e homens somente? Ninguém quer ver homem pelado? É uma série medieval e naquela época estupros eram recorrentes? Ora, não, porque nem sempre. Infelizmente, assédio e abuso sempre ocorreram, mas me dê dragões, mortos voltando à vida e pessoas trocando de rosto e depois conversamos mais sobre esses argumentos falhos.

Os livros são violentos, a série é violenta, em outro lado a linha parece tênue, mas não é: existe diferença entre violência e violência contra a mulher. Durante o Casamento Vermelho, que foi sem dúvidas uma cena emocionante, uma personagem que nem existe no livro leva não uma, mas diversas facadas na barriga — uma mulher grávida. Podemos chocar o público violentando uma mulher, logo fazemos.

Na temporada seguinte, após perder seu primogênito, Cersei (Lena Headey) é abusada por Jaime (Nikolaj Coster Waldau) enquanto, no livro, o episódio é consensual.

Grandes personagens mulheres aos poucos passaram a ficar na sombra de personagens homens, servindo como plot devices para o mau desenvolvimento desses. Algumas das mulheres até desapareceram da TV em detrimento deles, como Arianne Martell, uma personagem que foi estupidamente substituída por um nada equivalente Trystane Martell (Toby Sebastian) — que, arrisco dizer, entrou na história apenas para ser o salvador de uma donzela em perigo, Myrcella Baratheon (Aimee Richardson). Por sinal, toda a trama que se passa em Dorne tem sido um prato quente de vergonha alheia, enquanto poderia ter sido o diferencial que traria um novo gás à Game of Thrones.

Nem a queridíssima Daenerys (Emilia Clarke) escapou das mãos dos criadores, e diria até que ela foi a primeira a cair em suas garras. A primeira grande personagem a aparecer nua, a ser forçada a algo e abusada foi Daenerys Targaryen. E continuaria assim se não fosse Emilia Clarke, com a exponencial fama, mexendo os pauzinhos para que isso parasse, diminuísse ou mudasse (com o uso de dublês de corpo) em acontecer.

Já Margaery Tyrell (Natalie Dormer) faz (ou fez) uma grande competição com a própria Dany, tentando decidir qual das duas moças (vocês sabiam que ambas são adolescentes nos livros?) apareceram mais nuas na adaptação. São ambas maravilhosas, mas estão servindo de eye-candy (chamariz que apela para beleza e hipersexualização). Foram dissabores atrás de dissabores, e não contentes com isso, eles foram além.

Em uma tentativa de tirar água de pedra, a série avançou com novas tramas e ultrapassou, em certo ponto, a linha do tempo até hoje posta pelos livros. E é compreensível, uma vez que a série avança de maneira apressada querendo entregar grandes momentos no lugar de desenvolvimento de personagens. O grande público quer batalhas, explosões, mortes e casamentos dando errado. É compreensível. Foi seguindo com essa tentativa que os produtores e escritores introduziram, aliás, o plot de um dos mais sádicos personagens de ambos livros e série: Ramsay Bolton (Iwan Rheon). Filho bastardo de Roose Bolton (Michael McElhatton), Ramsay não mede esforços para conseguir o que quer — porque ele nunca se esforça. Ramsay usa de tortura e violência para controlar quem quer que seja que passe pelo seu caminho, suas artimanhas doentias envolvem esfolar pessoas, caçá-las com cães ferozes e, nas mais óbvias das hipóteses, estuprá-las.

O personagem da TV, que é trazido à vida pelo talentoso Iwan Rheon, desde o primeiro momento mostra a que veio, e não foi preciso muito tempo para o público simplesmente saber que Ramsay Bolton era, bem, um lixo humano. Theon Greyjoy (Alfie Owen-Allen), mais tarde apelidado de Reek (Fedor), teve o infortúnio de cruzar o caminho de Ramsay, e as coisas não foram bonitas para Theon. Seu infortúnio, contudo, logo seria somado ao de outra personagem.

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Quem? Como? Por quê?

Foi para concretizar um desejo antigo dos produtores, que antes não poderia ser levado às telas visto que Sophie Turner, que interpreta Sansa Stark, era menor de idade, que D.B. Weiss e David Benioff fizeram com que Sansa Stark tomasse o lugar de Jeyne Poole e fosse forçada a se casar com Ramsay.

Encurtando o caminho, assim que Sophie Turner fez 18 anos, Sansa Stark foi estuprada. Uma personagem adolescente foi estuprada para reafirmar a doentia de um personagem que todo mundo já sabia quão cruel era. Uma adolescente foi estuprada para servir de redenção para um homem — Theon Greyjoy, que assistia a tudo e sofria algum tipo de epifania no momento. Sansa Stark herdou a trágica história de Jeyne Poole pelo único e simples motivo de que os criadores assim o quiseram.

Estupro não é forma de redenção, não é entretenimento, é violência. Simples e estirada. Não é divertido, e embora seja real e aconteça o tempo todo — e vez ou outra seja bem trabalhado na TV e no cinema —, aqui de nada serviu. Pior, era esperado. Sansa Stark não sairá melhor dele: ela já sofreu o que chega e não precisava disso para ser usado de combustível para sua jornada de sobrevivência. O arco não foi adaptado para ser fiel à história — esperei com paciência o arco de Stoneheart, então não é com fidelidade que D&D se preocupam —, ele foi adaptado para usar estupro como plot device, de novo, para chocar o público.

A recepção do episódio foi de mal a pior. As críticas foram extremamente negativas (aqui, em inglês, um apanhado de links de diversas matérias) e o episódio seguinte registrou uma das maiores quedas de audiência da série, quando em parâmetro semanal com as outras temporadas. Até Patriarca Vieira, meu fiel companheiro de Game of Thrones (que foi obrigado a seguir a jornada sozinho), ficou desconfortável com o desenrolar dos acontecimentos e soltou um “pra que fazer isso com a guria?” de aborrecimento com tudo aquilo. A reação do público demonstra, talvez, que as pessoas não querem mais do mesmo. E querem menos ainda ver adolescentes sendo estupradas a troco de nada.

Nós, daqui desse lado, fãs e telespectadores, cansamos de assistir estupros sendo jogados de qualquer maneira na história só porque os criadores não conseguem pensar em nada mais criativo. Existe tanto a ser explorado, tantas questões, que é difícil (but not $ really $) compreender porque D.B. Weiss e David Benioff não saíram da bolha.

Com sorte, desse mal me livrei. Espero não cair na tentação e voltar a assistir a série — que nem G.R.R.M deve aguentar mais, e deve aguentar menos ainda ter que achar razões para defender. Permaneço ansiosa pelo lançamento do próximo livro, desejando muita luz ao escritor para que ele não caia nesse buraco sem graça e sem criatividade que os criadores de Game of Thrones se enfiaram, embora não acredite que ele siga o mesmo caminho tortuoso.

Seguirei observando de longe as escolhas erradas de David Benioff e D.B. Weiss, mas investindo meu tempo em coisas melhores — ou, no máximo, que não me deixem com o estômago revirando.

4 comentários

  1. Você conseguiu colocar em palavras tudo o que eu senti vendo esse episódio da Sansa. Na verdade eu nem vi o episódio, quando peguei o spoiler abandonei a série completamente. Tenho todos os livros e estou só esperando as férias pra voltar a ler. Amei o texto, bem cirúrgico!

    1. Os livros são ótimos, de verdade. Não vejo a hora do sexto sair pra poder tirar a quinta temporada de GoT da corrente sanguínea. Hahahaha. Obrigada! Beijo!

  2. Amei o texto e sua colocação, foi hiper sensata, eu não poderia concordar mais. A cena de estupro da Sansa foi a gota d’água, totalmente desnecessária, e eu não sabia sobre eles terem esperado a Sophie fazer 18 anos. É mais horrível do que já parecia ser.

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