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As vivências e nuances das estrelas infantis do Brasil em Angélica: 50 & Tanto

No primeiro episódio de seu novo programa, Angélica: 50 & Tanto (disponível no Globoplay), idealizado por ela e pelo jornalista Chico Felitti (A Mulher da Casa Abandonada, O Ateliê), a apresentadora reúne em sua casa as estrelas Maísa Silva, Sandy e Fernanda Souza, rostos que, tanto quanto ela, marcam o imaginário do público desde que são crianças.

Como Xuxa, Hebe, Ana Maria Braga e Eliana, Angélica, que completa 50 anos em 2023, é um dos nomes mais consagrados da televisão brasileira. Em atividade desde os quatro anos, a loira já foi apresentadora, modelo, cantora e atriz — tanto de comerciais quanto de cinema —, portanto, observá-la refletir sobre sua jornada faz recordar momentos pessoais. Não há Angélica sem um grande público e não houve um momento, nas últimas décadas, em que ela não foi A Angélica.

Por isso, faz sentido que ela reúna outros nomes que compartilham de sua trajetória, especialmente para iniciar um novo programa que marca um momento tão decisivo na vida de todas as mulheres. Enquanto Maísa começou sua carreira em programas de auditório aos três anos, Fernanda Souza seguiu uma trajetória parecida com a de Angélica ao se tornar atriz de comerciais e apresentadora aos cinco anos antes de alcançar o estrelato na versão brasileira do fenômeno argentino Chiquititas (SBT), em 1997; e Sandy, aos seis anos, em 1991, lançou seu primeiro álbum infantil ao lado do irmão, Júnior, intitulado Aniversário do Tatu.

50 e Tanto

Apesar das idades distintas, o que torna as visões interessantes é que todas vivenciaram coisas parecidas enquanto crianças do entretenimento infantil. Trata-se de uma jornada que, como elas citam, se mostra limitante no sentido de compreensão e discussão com lugar de fala, pois a fama precoce é capaz de gerar, inclusive, um tipo de solidão em quem a experimenta, visto que poucas pessoas puderam viver algo parecido.

No caso do primeiro episódio da temporada, a escolha das convidadas não foi feita ao acaso. Faz parte do roteiro para iniciar a reflexão sobre quem é Angélica do alto de seus 50 anos, pois tanto quanto as demais, a atuação profissional, a carreira e a fama nacional chegaram antes de todas as experiências, permeando todo o resto de suas vidas — da vida amorosa e acadêmica à maternidade.

Durante a discussão, as quatro recordaram suas rotinas e a normalização do trabalho infantil. Ainda que se trate de um trabalho aparentemente glamouroso, pensado para gerar entretenimento em sua essência, é necessário reconhecer que a máquina televisiva e cinematográfica é uma indústria muito lucrativa, o que faz com que as exigências profissionais sejam exacerbadas. Maísa conta que, com cerca 16 anos, gerenciava a própria carreira, apresentava um programa de TV, abdicava das férias para gravar filmes, trabalhava com publicidade e, ao mesmo tempo, conciliava os estudos, namoro e academia; enquanto Angélica revela que conseguiu estudar apenas até a oitava série por conta da alta demanda no trabalho e a falta de tempo.

50 e Tanto

Para as quatro, as obrigações e a postura profissional sempre vieram primeiro, inclusive em relação aos dramas familiares. As afirmações são reveladoras, mas não surpreendentes. Recentemente, durante o lançamento do single “Used To Be Young”, Miley Cyrus referenciou seu passado intituladamente conturbado na letra e revelou, em uma série de vídeos disponíveis em seu canal do YouTube, que sempre havia lidado com suas questões pessoais depois que deixava os holofotes, como o próprio divórcio do ator Liam Hemsworth ou a morte de um ente querido.

A ex-estrela da Disney, ainda, divulgou a agenda lotada de um dia de trabalho como Hannah Montana, a personagem que a alçou ao estrelato mundial. Aos 12 anos, seu dia começava às cinco e meia da manhã e terminava às dezoito horas, uma rotina de doze horas de trabalho extenuante para qualquer pessoa normal. Cyrus, ainda, chegou a dizer que, quando criança, passava muito tempo caracterizada como Hannah e, ao tirar a peruca loira da personagem, não se reconhecia como Miley e não se sentia capaz de explorar a própria personalidade sem que estivesse entrelaçada com o alter-ego roteirizado pela Disney.

No Brasil, Sandy relata algo parecido, que respingou mais na questão de sua aparência física. Longe de ter vivido uma vida dupla sob o nome de outra personagem, a cantora e atriz revela que não consegue se encarar no espelho sem maquiagem, mesmo em casa, ou postar fotos sem retoques (filtros de Instagram). Isso porque, passou toda a sua infância, um período de construções de personalidade e desenvolvimento pessoal, caracterizada para “o show”, fosse sua aparição em um programa de TV, uma novela, compromissos profissionais ou mesmo os shows, de fato, que cumpria como parte da dupla Sandy & Júnior.

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A informação causou um choque nas redes sociais quando os primeiros trechos do episódio começaram a viralizar, pois Sandy sempre foi retratada e admirada como uma “mulher perfeita”, da moralidade à aparência. E, de fato, a cantora sempre teve muito controle sobre o acesso à sua vida, especialmente pessoal, e sobre a carreira profissional, devidamente gerenciada com a ajuda dos pais, Xororó e Noely, já acostumados à fama. Porém, não é possível definir isso como surpreendente. Lá fora, são diversos os exemplos de estrelas infantis que lidam ou lidaram com problemas graves relacionados à autoimagem e ao bullying, caso de Selena Gomez e Demi Lovato, que estrearam juntas na TV no extinto Barney e Seus Amigos, da Disney, e passaram anos de suas vidas lutando com tais questões.

Apesar de, atualmente, existir um movimento que incentiva a beleza natural através do conceito do body positivity, ou seja, da normalização de corpos com curvas, marcas de estrias, flacidez e/ou gordura corporal, assim como peles com linhas de expressão, muitas mulheres definidas como padrões não deixam de ser o reflexo de uma sociedade que cultua a perfeição — ao menos, a aparente.

Recentemente, a atriz Pamela Anderson, marcada pela imagem e beleza cultuada nos anos 90, surgiu sem maquiagem durante a Semana de Moda de Paris, aos 56 anos, algo que Jamie Lee Curtis descreveu como um “ato de coragem e rebeldia”. Enquanto a loira destacou que “há beleza na autoaceitação, imperfeição e amor”, Angélica também se mostra consciente neste sentido, ressaltando a necessidade de as mulheres trabalharem em si mesmas a auto aceitação, uma vez que, com o passar do tempo, lidar com as mudanças impostas pela idade se torna cada vez mais difícil.

O grupo ainda recordou outros tipos de abusos, como os da imprensa, especialmente em relação às suas vidas privadas quando ainda eram muito jovens. A apresentadora relata, de início, que um grande personagem da TV brasileira sugeriu que seu nome artístico fosse Lolita, como a famigerada personagem do livro homônimo polêmico de Nabokov, a qual, aos 12 anos, desperta os desejos do protagonista masculino, um homem de 40 anos de idade.

Durante suas carreiras, especialmente no início da adolescência, todas contaram ter  passado pela normalização de perguntas totalmente invasivas quanto às suas virgindades e primeiras experiências amorosas e sexuais, como se essa faceta de suas vidas também devesse ser pública e explorada.

Este ponto, que se mostra mais uma tentativa de controle dos corpos femininos e sexualização indevida de meninas, também marcou a trajetória de Britney Spears no início dos anos 2000. Planejada para ser uma cantora sexy em roupas e vozes infantis, a cantora foi alvo deste tipo de pergunta diversas vezes, gerando piadas até de seu ex-namorado à época, Justin Timberlake, muitos anos depois do fim do namoro durante um episódio do programa Saturday Night Live.

50 e Tanto

Maísa comenta que a única diferença para a sua geração, ao se tornar adulta, é que pôde responder a tais questões, se impondo de maneira mais assertiva e tomando de volta sua própria narrativa. Recentemente, a Princesa do Pop tentou fazer o mesmo, ainda que tardiamente: na autobiografia A Mulher Em Mim (2023), Britney revela que perdeu a virgindade aos quatorze anos, com outra pessoa, não com Timberlake, o qual por muito tempo sustentou a narrativa que mais o beneficiava.

Antes, porém, nas gerações de Angélica, Fernanda e Sandy, era como se fossem reféns das manchetes machistas e dos entrevistadores inconvenientes, tendo em vista que qualquer resposta faria com que determinado rótulo recaísse sobre elas, inexistindo qualquer possibilidade de controle sobre os fatos que as cercavam.

Quando se olha para o passado, muitas vezes é possível se perguntar como certas coisas eram permitidas e normalizadas. Os programas, músicas e comportamentos que levaram Xuxa, Angélica e muitos outros ao estrelato, inclusive homens como Fausto Silva, Gugu Liberato e Silvio Santos, jamais seriam aceitos no mundo atual — tanto social quanto legalmente. O grande acerto de 50 & Tanto é se utilizar da história da apresentadora para colocar uma lupa sobre o passado — dela e de muitos que a cercam —, com a ciência de que não deve ser meramente rechaçado, mas debatido e curado, criando a partir daí uma nova história, também rica e de muito potencial, que acompanhará uma nova geração de Maísas, Fernandas, Sandys e Angélicas.