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A culpa, o corpo e o olhar: o pop que fura o ser Mulher

Não é de hoje que o sentimento de culpa atravessa as mulheres e, em especial, seus corpos. A construção do corpo feminino perfeito vem sendo lapidada a muito tempo, a patologização e a repulsa pela representação feminina desviada do desejado por aqueles que detêm o poder fortaleceu os ideais do que é ser mulher, excluindo pluralidades e coletivos, isolando e individualizando mulheres.

A indústria do pop deixa isso bem claro, o mercado recheado de mulheres performáticas, quase padronizadas. Seus corpos, suas falas, seus relacionamentos e suas apresentações dançando conforme a música das grandes gravadoras comandadas por homens. Um adoecimento silenciado, que volta ao corpo, transtornos alimentares, abuso de drogas, dismorfias, estar em um corpo que não se é dona, mas que se é responsável. Esse percurso evidenciado nas artistas com seus holofotes recai sobre cada sujeito inscrito como mulher na sociedade, experiência que por muito tempo foi vivida de maneira solitária, mas que com as brechas conquistadas os gritos por liberdade, por significação, puderam ser ouvidos. Artistas como Melanie Martinez e Billie Eilish são exemplos que através de suas obras deram sinais de angústias coletivas silenciadas.

O álbum K-12 (2019) de Melanie Martinez, possui duas faixas que me chamam a atenção, “Strawberry Shortcake” e “Orange Juice”. Em “Strawberry Shortcake”, Melanie explicita o peso da objetificação e da sexualização do corpo feminino, o olhar que tira pedaço e que volta em auto culpabilização, ela canta “me sentindo insegura com meu corpo nu, me afasto, observo tomar forma”, “é minha culpa, porque eu coloquei cobertura em cima”, “é meu erro, é meu erro”.

Em “Orange Juice” a cantora endereça sua fala a uma terceira garota, que aparentemente possui comportamentos bulímicos. Na música um trecho marcante diz “eu gostaria de poder te dar os meus olhos, porque eu sei que os seus não estão funcionando/ eu gostaria de poder dizer que você é linda, tão linda, mas você vai achar isso desconcertante”.

A construção da nossa imagem é atravessada pela visão dos outros; nos entendemos enquanto corpo a partir da apresentação dele na linguagem. Sabe quando a mãe apresenta o corpo para a criança? Esse é seu pé, essa é sua barriguinha. Essas apresentações continuam por muito tempo, virando pitacos inconvenientes recheados de ideais. É preciso lembrar que a linguagem constrói o social e o social constrói a linguagem, nessa dinâmica que faz prevalecer quem detêm o poder, o patriarcado se faz presente, tomando frente na apresentação de nossos corpos, cravando marcas no nosso psiquismo.

O overthinking, o pensar demais, feminino não é um surto. O buraco é bem mais embaixo, lá no inconsciente praticamente. O local de servidão das mulheres diante das performances sociais nos encaminha a tentativas constantes de atingir a perfeição — perfeição essa que não existe, mas que é ofertada por vários caminhos que só poderão ser seguidos de forma solitária, já que apenas uma atingirá o topo.

A condição política também não foge desse discurso: a ideia neoliberal de responsabilização individual, de que cabe apenas a você o esforço para o sucesso, fortalece a culpa pelo não saber, pelo não fazer. A culpa sempre vem, cobrando caro o preço da posição de ser mulher, colocando cobertura por cima ou tentando escondê-lo. Billie Eilish, em suas faixas “Overheated” e “Not My Responsability”, do álbum Happier Than Ever (2021) desabafa sobre a perseguição das mídias e dos paparazzis em torno de seu corpo. A cantora de 20 anos, que sempre adotou um estilo de roupas largas, que não marcassem seu corpo, foi exposta por fotos retiradas por paparazzis usando uma regata justa, o que gerou uma chuva de críticas a Billie.

Em “Overheated” ela canta sobre como querem e esperam dela algo fora da realidade, forçando-a a padrões exaustivos, comparando-a a outras mulheres, instigando-a a realizar procedimentos estéticos. Estas falas a superaquecem, quase pifando, os mesmos mandatos que a colocam nesta posição de quase ceder também a forçam a continuar a lutar, a não ser derrotada, a não ser excluída por se distanciar dA Mulher, essa que com ‘a’ e ‘m’ maiúsculos só existe de uma única forma.

Existir não deveria ser uma luta, não deveríamos ser guerreiras simplesmente por sermos mulheres; essa posição é conveniente para quem nos controla, porque guerreiras tomam para si toda a responsabilidade de lutar as batalhas, guerreiras cansadas e isoladas não ganham guerras. Em “Not My Responsability”, Billie confronta essas críticas, deixando claro que não é sua responsabilidade o que o outro quer dela, independente do que ela faça, não será suficiente, e não cabe a ela encontrar um desses caminhos. É no buraco do discurso que Billie Eilish encontra o feminino, sua forma singular de responder o que é ser mulher.

Esse buraco fura a culpa, fura o corpo, fura o olhar. A experiência do feminino singular foge a linguagem, mesmo  assim precisa ser comunicada. É preciso falar das angústias de ser mulher, angústias que enquanto presas adoecem a mente e o corpo, é preciso falar para desatar os nós da garganta e fazer laços, compartilhar e partilhar a pluralidade do existir, para que enquanto coletivo nós nos ajudemos a caminhar, uma a uma ao seu ser mulher.

Melanie Martinez, Billie Eilish e outras mulheres hoje presentes na indústria musical gritam: gritam com a força de muitas que se calaram diante de toda a opressão, para que todas nós possamos escutar que há um mais além.