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O Outro Lado do Paraíso: “a igualdade social só serve pra prejudicar a gente”

Em 2015, Walcyr Carrasco deixou o Brasil em polvorosa com a polêmica Verdades Secretas, novela exibida no horário das 23h da Rede Globo que acompanhava a trajetória de uma jovem modelo em início de carreira que terminava por se envolver em um esquema de prostituição na agência onde trabalhava. A trama expôs subterfúgios internos do mundo da moda e a suja realidade das agências de modelos que, embora encontrassem trabalhos de publicidade para suas agenciadas, na realidade os tratavam como pequenos respiros entre um book rosa e outro — expressão utilizada pelas agências para designar um catálogo de profissionais que prestavam serviços sexuais para clientes com grande poder aquisitivo.

Como um antro de famílias tradicionais brasileiras em um belo almoço de domingo, a história deixou o público chocado e virou pauta em diversos veículos. Não há dúvidas de que o autor queria causar, mas escolheu um nicho pequeno para começar. Mesmo que tenha feito um enorme sucesso, ninguém além das pessoas que trabalhavam no meio ficou tão incomodado; Carrasco tocou na ferida, mas uma ferida que não pertencia a todos. Mas isso foi apenas um ensaio.

Dois anos após Verdades Secretas, e depois de Êta Mundo Bom, novela exibida no horário das 18h, também na Rede Globo, o autor retornou em horário nobre com O Outro Lado do Paraíso. Se engana, no entanto, quem acredita que a principal função do autor é fazer o público ter raiva das maldades que Sophia (Marieta Severo) foi capaz de cometer contra Clara (Bianca Bin), uma jovem professora inocente que se envolve com o filho da primeira e, mais tarde, é internada em uma clínica psiquiátrica pela sogra. Walcyr Carrasco começa com pouco, em núcleos que fingem não ser tão expressivos em um primeiro momento, mas são.

O Outro Lado do Paraíso

Alguns dias atrás, estourou a comoção contra o racismo quando Giovanna Ewbank e Bruno Gagliasso falaram sobre o caso de sua filha Titi, que é negra e fora chamada de macaca na internet pela autointitulada socialite Day McCarthy. Foi dolorido, e é dolorido, principalmente porque esse não é um caso isolado, mas a realidade de muitas meninas e meninos negros que sofrem com o preconceito desde muito cedo. Entretanto, nem um terço das pessoas que se posicionou no caso de Titi abriu a boca quando Taís Araújo fez mais ou menos a mesma coisa. Na verdade, muita gente fez justamente o contrário ao criticar a atriz e dizer que suas reivindicações não eram válidas, relativizá-las ou assumir uma postura condescendente. A prova do racismo institucional entranhado nas veias do brasileiro é quando ele só é significativo quando um branco faz a queixa.

Parece absurdo que uma pessoa, em pleno 2017, grave um vídeo declarando abertamente seu racismo — mas paremos de enganar a nós mesmos. Day McCarthy não foi a única; ela é apenas um reflexo. É por isso que muita gente se indigna: ninguém quer se ver nesse espelho e ser obrigado a engolir o gosto amargo da carapuça que serve — e ela serve, mesmo que se finja que não. Assim, de forma parecida, a “nata da sociedade de Palmas”, representada em O Outro Lado do Paraíso, tem deixado muita gente com sorrisos amarelos. São pessoas representadas por personagens como Nádia (Eliane Giardini), Gustavo (Luiz de Melo), Lorena (Sandra Coverloni), Vinícius (Flavio Tolezani) e, é claro, a própria Sophia, que fora as maldades contra a nora, parece surgir em cena apenas para proferir absurdos; absurdos que não são fruto da ficção, mas de uma realidade que existe aqui e agora. Que isso acontece todos os dias em nosso país — e em tantos outros — e, às vezes, acontece no quintal de nossas próprias casas.

O Outro Lado do Paraíso

“Longe de mim ter preconceito, mas meu filho não vai se casar com essa negra” e “a gente arquiva qualquer processo por aqui ou expele sentenças em favor de quem nos dá presentinhos” são falas que resumem bem o que os personagens de O Outro Lado do Paraíso falam e fazem com seu tempo em cena — repetidamente —, e como a banda toca no país em que vivemos. Eles são, em suma, o triste relato da elite brasileira, que nunca tem preconceitos, sai às ruas para marchar contra a corrupção e pode atirar qualquer pedra nele, visto seus belíssimos tetos de vidro incorruptíveis, mas não conseguem cogitar a menor ideia de perder qualquer privilégio ou não ser o centro das atenções, os donos das narrativas.

Este ano, vimos pessoas que cancelaram suas assinaturas da Netflix após se sentirem ofendidas com a série Dear White People, acompanhamos discussões acirradas relacionadas à nova posição de algumas escolas em comemorar o dia da família ao invés do dia das mães, e não é preciso falar do machismo de todos os dias, pauta de inúmeras discussões que rolaram este ano, sobretudo após os escândalos envolvendo tantos nomes de peso em Hollywood em casos de assédio. O que um branco perde quando um negro tem as mesmas oportunidades? O que um casal hétero perde se o dia for da família? O que um homem perde com a igualdade dos sexos? A resposta é uma só: o direito inalienável de ser superior.

“A igualdade social só serve pra prejudicar a gente.”

Essa foi a frase ipsis literis retirada do capítulo do último dia 30 de novembro da novela, mas que vem flutuando, insistentemente, todos os dias por cima de nossas cabeças. Nas questões que citei acima e em muitas outras. É o caso da PEC das empregadas, que em pleno século XXI, revelou o brasileiro que ainda queria ter mucama, que negava o pagamento de direitos trabalhistas, que acreditava que quem deveria “aceitar as coisas do jeito que são” e jantar sapos todos os dias no quartinho dos fundos eram as empregadas, em sua maioria, mulheres negras, visto que a abolição da escravidão no Brasil foi realizada de forma questionável, mantendo seu legado até hoje; ou, ainda, das cotas raciais, que sob o guarda-chuva da meritocracia, esquece que é impossível julgar quem merece mais ou menos quando nem todo mundo sai do mesmo lugar. A busca pela igualdade social se transformou em motivo de piada e, quem acredita nela, na “galera dos direitos humanos que tem que levar bandido pra casa” ou, para ser mais sutil, na “patrulha do politicamente correto”.

“A gente não pode falar mais nada agora, porque a sociedade virou do avesso e a gente é que tá errado!”, e estão sim. Enquanto a desigualdade social, racial e de gênero, e o preconceito de qualquer espécie forem institucionais, estamos errados. O conservadorismo e a superioridade branca, masculina e elitista sempre foram os donos de todos os espaços e tiveram plenos poderes sobre eles por tempo demais, mas é um tempo que, pouco a pouco, e com muito esforço, vai chegando ao fim. Quando gritamos “não passarão”, o fazemos porque tudo tem limite — e a sociedade doente em que vivemos já passou de todos eles.

O Outro Lado do Paraíso

A igualdade social só serve para prejudicar alguém se esse alguém se sente prejudicado com a ideia de que, vejam só, todas as pessoas tenham, de fato, os mesmos direitos e as mesmas oportunidades. Parece uma ideia bonitinha na boca de quem proclama, mas deseja que seja uma utopia e segue confortável assistindo uma novela do Manoel Carlos onde patroas — inegavelmente brancas — e empregadas tomam café da manhã juntas no Leblon, onde elas são “quase da família”, e não são destratadas ou ofendidas; mas só até a página dois.

Se precisávamos de um belo zoológico da elite branca, preconceituosa e doente falando barbaridades abertamente em horário nobre todos os dias para que a realidade se torne incômoda, que isso esteja tocando a ferida de todo mundo. Aqui, nos contorcemos no sofá assistindo, porque sabemos que é verdade; o didatismo de O Outro Lado do Paraíso é apenas uma forma mais óbvia e clara de expor esses problemas. O resto dos planos maquiavélicos já sabemos que é ficção. Eles são terríveis, é verdade, mas não são nosso calo. Não é com a pobre Clara sendo arremessada de um precipício que temos que nos preocupar de verdade. É por causa da demonstração constante da nossa lambança ética, a exemplo de O Outro Lado do Paraíso, que temos que perder o sono à noite — espero que estejamos todos insones.