A juventude é constantemente tematizada nas artes. Na teoria literária, existe um termo alemão para designar os livros que tratam do amadurecimento dos personagens, nos quesitos psicológico, moral, social e político. Bildungsroman, ou romance de formação, foi utilizado pela primeira vez pelo professor Karl Morgenstern e posteriormente associado ao romance Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister, de Goethe.
Segundo o teórico Franco Moretti, a crescente do Bildungsroman se deu entre 1789 e 1848 e seu declínio ocorreu já no início dos anos 1900. Entretanto, o gênero não se esgotou e até hoje encontramos exemplares na literatura mundial. E não se engane: diversos títulos categorizados como romances de formação foram massificados pela cultura mainstream, como por exemplo As Vantagens de Ser Invisível e Jane Eyre, que ganharam até adaptações cinematográficas hollywoodianas.
Em terras brasileiras, o mais novo romance de formação lançado pela Companhia das Letras é Os Tais Caquinhos, primeiro romance da autora Natércia Pontes. Na trama, acompanhamos o crescimento da adolescente Abigail e de sua irmã mais nova Berta no meio da caoticidade de um lar quase inóspito na capital cearense na década de 90. Criadas pelo pai Lúcio, as duas se misturam à desordem do apartamento 402 enquanto tentam se firmar como indivíduos.
A (des)ordem familiar
Quem descreve a experiência da formação em meio à bagunça é Abigail, a filha mais velha. Assim como sua irmã, ela está no ensino médio e possui todos os dilemas típicos da idade, preocupações como trabalhos escolares, amizades e amores. As duas moram com Lúcio, o pai, e os três estabelecem uma relação cercada de objetos inúteis acumulados, dias sem comer e conselhos pouco ortodoxos. Se Lúcio abre mão da função paterna, involuntariamente ou não, resta a Berta e Abigail se organizarem da forma que podem. A primeira recorre a fuga pela amizade e a segunda aos inúmeros romances.
Sem maiores explicações do que ocorreu, alguns trechos remetem a um passado menos desordenado, quando a casa também era habitada pela mãe, Zoma, e por duas irmãs mais novas, Huga e Ariel. Com a partida da mulher e das crianças, o ambiente tornou-se cada dia mais sujo e insólito, com caixas e mais caixas empilhadas pelos cômodos, infestação de baratas e outros insetos e a geladeira constantemente vazia. A diferença entre o mundo exterior — arrumado, limpo e ordinário — e o interior da casa — decadente, sujo, fora de ordem e excêntrico — fica cada vez mais marcada.
Entretanto, o vínculo entre os três não se esvazia. Apesar da dinâmica incomum, é notável o sentimento que as filhas nutrem pelo pai e vice-versa, mesmo com a constante inversão de papéis. O carinho e o cuidado em Os Tais Caquinhos estão nos pequenos gestos, como conferir se a pessoa está respirando enquanto dorme ou oferecer um copo de água quando as coisas estão muito ruins. Esses pequenos momentos de zelo, por mais aleatórios que sejam, diminuem um pouco a sensação de abandono.
“(…) havia uma ligação forte que nos unia, um sentimento bruto de família, uma cumplicidade gelatinosa que nos protegia como uma placenta. Estávamos juntos. Éramos juntos.” (p.13)
402, recanto dos tacos soltos
Abigail funciona ao mesmo tempo como personagem e como narradora, entende dos seus sofrimentos e expõe também os sofrimentos alheios, como o que Berta sente ao se refugiar na casa da amiga Mariana, onde recebe todos os cuidados tal qual uma filha. Com a rara presença de Berta, resta a Lúcio e Abigail o apartamento 402. O pai também passa um bom período do dia na rua, deixando a filha à mercê do acaso e dos ovos que as vizinhas gentilmente cedem para uma refeição. Quando presente, Lúcio é uma figura dramática que constantemente exclama “oh, por que a morte não me vem?”, suplicando aos céus.
Enquanto isso, a filha mais velha beija e briga com intermináveis garotos. Em alguns momentos, o livro emula um diário, com diversas citações escritas por ela sobre suas paixonites. Seus diversos parceiros entram e saem de cena rapidamente, deixando sempre uma marca no coração e no psicológico da menina. Talvez seja essa a parte que mais remete ao romance de formação, a brutalidade do encontro entre uma Abigail tentando crescer e o amor num mundo cruel. Por mais que o humor amenize algumas das situações, ainda é um relato seco e difícil de encarar em muitos momentos.
Como um todo
O formato que o texto de Os Tais Caquinhos apresenta pode gerar estranhamento a um primeiro olhar. Os curtos capítulos, nomeados de forma inusitada, misturam o tempo presente com diálogos tragicômicos, bilhetes deixados para o pai ou do pai para Abigail e fragmentos de memórias. A narração da jovem não é apenas próxima dos fatos, é misturada, embolada naquele turbilhão de coisas acumuladas e traz o leitor para o meio da bagunça.
Enredo e forma são muito bem unidos pela autora. A prosa de Natércia Pontes é repetitiva em alguns momentos, exacerbada em outras, sempre muito descritiva e com uma função: dar dimensão à quantidade de coisas e pensamentos que habitam o 402. A autora escreve longas listas (que dão conta de todo o alfabeto) para enumerar, por exemplo, os conselhos nonsense que Lúcio dá às filhas. O uso de períodos longuíssimos, separados por inúmeras vírgulas é um modo de mostrar pela linguagem o amontoamento que se reproduz naquela casa.
“c) o cheiro doce de barata não era atenuado exclusivamente com o hábito de limpar a casa, outra alternativa sempre à mão era esguichar o sumo da casca de laranja no olho de uma desavisada Berta.” (p.29)
Nada de mal nos alcança
Desde seu título, retirado da canção “Pra Começar”, Os Tais Caquinhos é musical, embalado por nomes como Marina Lima e Carlinhos Brown. Enquanto as letras são sussurradas, cantadas ou gritadas, Berta e Abigail sobrevivem de forma desajeitada. Algumas vezes cômico e sempre impressionante, o livro mistura graça e melancolia num romance de formação tipicamente brasileiro.
Os Tais Caquinhos é áspero e forte, principalmente como uma obra narrada por uma adolescente. Pontes, que anteriormente tinha sido publicada pela Cosac Naify com Copacabana Dreams, estreia no romance com um curto relato de muito conteúdo, muita história, muitas camadas. Se amadurecer já é um processo doloroso em condições normais de temperatura e pressão, é ainda mais no meio dos fragmentos do velho mundo, ou melhor, de uma família pouco convencional.
O exemplar foi cedido para resenha em parceria com a Companhia das Letras.
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