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Toy Story 4: liberdade para ir ao infinito e além

É verdade que Toy Story foi o primeiro longa-metragem animado pela Pixar, um desenho espantosamente tridimensional (e se hoje a marca é conhecida pela atenção aos detalhes, foi aí que tudo começou), mas o que chamou a atenção do público em 1995 não foi só a qualidade da animação. O filme não faria tanto sucesso (e os produtores sabiam) se suas personagens, aparentemente tão reais, não tivessem personalidades igualmente humanas. Para atingir esse objetivo, a grande sacada do estúdio foi fugir do óbvio e tratar não de pessoas, mas de brinquedos — brinquedos perfeitamente articulados, complexos e livres. Foram eles que nos conquistaram e seguraram nossa atenção até agora.

Atenção: este texto contém spoilers!

Ao longo dos três primeiros filmes, foram abordadas sérias questões de identidade na maneira como os brinquedos se relacionavam com os humanos, inclusive na iminência do abandono. Perante todas elas, filme após filme, o caubói Woody (Tom Hanks) se manteve firme na missão de acompanhar o dono, Andy (John Morris), em qualquer que fosse a aventura. Iria com ele até a faculdade se não tivesse decidido — em um ímpeto, ao final de Toy Story 3 — ficar junto de seus amigos a caminho de um novo lar, o da pequena Bonnie (Madeleine McGraw). A lealdade de Woody, seja com Andy, seja com os demais brinquedos, é o que o distingue e o torna tão querido mundo afora. Todavia, ele está sempre passando por provações e, em Toy Story 4, isso acontece em níveis completamente diferentes.

Quando Bonnie entra no jardim de infância, tímida e sem nenhum de seus brinquedos por perto, ela usa a criatividade para transformar um talher de plástico em seu novo amigo, Garfinho (Tony Hale). Esse personagem é emblemático: tendo sido, até então, um conjunto de partes inanimadas, ele não deixa de se identificar como um objeto descartável e de buscar, em toda oportunidade, o conforto de uma lata de lixo. Ou seja, apesar de ter ganhado o dom da vida pelas mãos de uma criança — além da beleza e da importância que só mesmo uma criança poderia dar —, Garfinho não entende a dinâmica dos brinquedos e dispensa a missão sagrada de permanecer ao seu lado.

Como sempre, esse é um problema para Woody. Os demais podem até, com algum esforço, confiar nas suas decisões e dar apoio, mas dificilmente demonstram a mesma preocupação que Woody tem em relação às crianças de sua vida. Acontece que, diferente de Andy, Bonnie rapidamente se desencantou e passou a deixá-lo de fora de suas brincadeiras. Essa situação não muda seu posto de liderança aos olhos dos outros, nem parece diminuir a convivência com eles, mas, ainda assim, deixa-o abatido. Perdendo a amizade com a dona, seus empenhos em fazer-lhe companhia começam a perder o sentido e é por isso que ele se apega à responsabilidade de manter Garfinho na linha. Assim, mesmo que indiretamente, Woody se certificará de que Bonnie seja acompanhada em suas novas aventuras e continuará a fazer o que sempre fez e o que faz de melhor.

É nessa determinação cega que ele se depara com sua velha companheira, a pastora Betty (Annie Potts), que foi deixada para trás antes mesmo de Toy Story 3 e despertou a curiosidade dos fãs nos pôsteres do novo filme. Com ainda muita química do tempo que passaram juntos, mas muito embaraço pelo tempo que passaram separados, Woody descobre que Betty adotou um novo estilo de vida. Para sua surpresa, ela agora vive feliz… e sem dono. Não é a primeira vez na saga em que aparece um brinquedo sem dono, mas a primeira em que é uma decisão consciente e bem cotada.

Na verdade, muito sobre Betty mudou e é inovador para os padrões da velha turma de brinquedos. Logo de cara, a boneca troca a saia armada dos dois primeiros filmes pela calça de sua roupa de baixo. O visual é complementado por uma capa, que lhe dá um ar heroico, e uma série de remendos que denunciam as experiências vividas fora das telas e desconstroem a feminilidade da personagem. Essas pequenas mudanças já fazem uma grande diferença na percepção do público infantil, mas sinalizam mudanças ainda maiores no seu comportamento e importância para a trama.

Afinal, o papel de Betty tinha sido meramente figurativo até então. Nas poucas cenas em que apareceu em Toy Story 1 e Toy Story 2, sua participação se resumia a beijos teatrais que, antes e depois de cada conquista de Woody, deveriam servir de incentivo e recompensa, respectivamente. Betty até participava das reuniões dos brinquedos — mesmo sendo apenas parte de uma luminária —, mas não tinha voz real e não fazia parte das operações. O que ela fazia — e parecia estar lá só para isso — era inflar o ego de Woody. Agora, em Toy Story 4, Betty volta uma personagem muito mais desenvolvida, tomando as rédeas de sua própria história.

Quando questionada em entrevista ao Rotten Tomatoes, sua dubladora original em inglês, Annie Potts, disse não haver mais sentido em se identificar com a versão de 1995. “Eu sou uma garota que segue em frente”, ela disse. De fato, a velha Betty não se encaixa no mundo de 2019 (e os produtores, mais uma vez, sabem disso muito bem). A modernização da personagem é uma dentre várias iniciativas dos estúdios Disney — donos da Pixar — para adequar as narrativas infantis aos novos tempos como, por exemplo, a escolha de Halle Bailey, atriz negra, para interpretar Ariel, a protagonista de A Pequena Sereia. Dada sua posição de destaque na mídia, têm sido cada vez mais cobradas da Disney atitudes socialmente responsáveis. E ela tem driblado as críticas: no relançamento de Toy Story 2 para versões virtuais e em blu-ray, foi cortada uma cena exibida durante os créditos em que Pete Fedido, o Mineiro, oferecia a duas bonecas Barbie participação no filme seguinte. A cena simulava um caso de assédio, fazendo uma piada que, se já não tinha graça, ainda não era questionada vinte anos atrás.

O papel de Betty está anos-luz à frente. Além de tudo, ela traz uma discussão de grande valor à mesa: o que é um brinquedo perdido? Tendo, em Woody, uma janela para o universo dos brinquedos, ficamos presos, muitas vezes, a um único ponto de vista. Depois dele, os personagens mais aprofundados tendem a ser antagonistas e, embora seja uma qualidade de Toy Story legitimar a história de fundo dos vilões (o que não se perde no último filme), é uma história repetitiva, de solidão e abandono. Com Betty, surge uma nova possibilidade: ela vive basicamente sozinha, mas desfruta ao máximo de sua liberdade. Desse modo, por mais que reconheça que o olhar de uma criança é mágico — como foi, especialmente, para Garfinho —, ela escolhe assumir sua autonomia e não mais se deixar ser definida por outro alguém.

Coincidindo com Annie Potts, o célebre dublador de Woody, Tom Hanks, sugeriu em entrevista ao Estadão que este seria um filme sobre seguir em frente. De fato, o final é, mais uma vez, decisivo — e emocionante. O que significa para o futuro da saga, ainda não se sabe, mas para o público que se mantém fiel há quase vinte e cinco anos, uma coisa é certa: não é porque não estamos vendo que as coisas deixam de existir. Pelo contrário, é aí que elas ficam mais interessantes.

Toy Story 4 recebeu 2 indicações ao Oscar nas categorias de: Melhor Filme de Animação e Melhor Canção Original (“I Can’t Let You Throw Yourself Away”).

oscar 2020


1 comentário

  1. O que mais me impressionou neste quarto filme foi que para mim ele saiu do obvio. A trama toda evidencia a perda de papeis e a busca de um significado de acordo com a visão do outro, uma busca que atribui o fracasso por questões externas, como a boneca do antiquário que atribui a solidão ao fato da sua caixa de som. O desfecho mostra que é preciso estar sensíveis às novas contingências e oportunidades para poder se reconectar com aquilo que realmente faz sentido naquele momento de vida. O tema para mim é mais que liberdade, mas resiliência.

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