Categorias: LITERATURA

Mulheres Perigosas: a representação feminina na literatura

A antologia Mulheres Perigosas, editada por George R. R. Martin e Gardner Dozois e publicada no Brasil pela Editora Leya, é um compilado de vinte e um contos que apresentam personagens femininas escritas pelas perspectivas de diversos autores, entre eles o próprio Martin, além de Diana Galbadon, autora de Outlander, e Megan Lindholm, de a A Saga do Assassino. A ideia por trás do livro é desmontar o estereótipo da personagem feminina vítima e sem personalidade — aquela que existe apenas para dar suporte ao protagonista e herói da trama —, contando histórias com protagonistas que transitam entre a magia, o ciúme, a ambição, a traição e a rebeldia.

Ainda que todo o interesse do livro resida nos vinte e um contos, a introdução escrita por Gardner Dozois aparece como um texto inspirado sobre a representação feminina na literatura. Em seu prefácio, Dozois lembra que mulheres perigosas existem muito além da ficção, e a História está aí para provar: “mesmo que as amazonas sejam mitológicas (…) a lenda foi inspirada pela lembrança das ferozes mulheres guerreiras citas”; nas arenas da Roma antiga, gladiadoras lutavam até a morte contra outras mulheres e até mesmo contra homens; grandes piratas como Anne Bonny e Mary Reed foram as mais famosas e perigosas a navegar nos mares do Caribe. Não há nada que um homem tenha feito que mulheres também não possam fazer. Dozois prossegue em sua introdução relembrando a história de Lyudmila Pavlichenko (embora não cite seu nome, o que é uma pena), a sniper do Exército Vermelho que comprovadamente matou 309 nazistas, de Joana d’Arc, que liderou as tropas francesas contra os ingleses, entre outras mulheres notáveis que usaram suas habilidades para o próprio bem — ou para um bem maior.

O fato é que, embora a literatura — e a cultura popular como um todo — não tenha sido lisonjeira com personagens femininas durante muitos anos, mulheres perigosas estiveram presentes em toda a história da humanidade. O termo “perigosa” não é usado aqui — e nem na coletânea — como sinônimo de ameaça ou de algo que possa causar danos, mas como uma característica das mulheres que lutam por si mesmas, doa a quem doer. Em Mulheres Perigosas as personagens são múltiplas e singulares, completas e complexas, como somos — e aí se revela a grande importância da antologia e de seus contos. A personagem feminina foi, por muitos anos, relegada ao papel de coadjuvante e de donzela indefesa, cuja única função é “se pendurar, amorosa, nos braços do herói no final.” Gradativamente, o cenário tem mudado e personagens femininas vêm conquistando o protagonismo que merecem, e muito se dá, também, pela presença cada vez maior de mulheres contando essas histórias.

“Mesmo aqueles hostis ao marido alemão de Constance se juntaram, pois a coragem devia ser reconhecida e honrada, e todos sabiam que estavam presenciando um ato de bravura desafiadora, a maior expressão do amor de uma mãe.” Uma Rainha no Exílio

Apesar do nome de George R. R. Martin estampar a capa e ser, de fato, um dos autores mais conhecidos a escrever para Mulheres Perigosas, ele não é, de maneira nenhuma, o único motivo para ler o livro. Coletâneas são interessantes justamente pelo fato de reunirem autores diversos, com estilos únicos, para escrever sobre um tema específico e, no caso de Mulheres Perigosas, isso não poderia ter dado mais certo. Algumas histórias acontecem nos universos criados pelos autores em outros livros — como no caso de “A Princesa e a Rainha”, de George R. R. Martin, que acontece no mesmo universo de As Crônicas de Gelo e Fogo, e “Virgens”, de Diana Galbadon, que se passa no universo de Outlander —, mas nada que impeça a leitura de ser prazerosa e interessante.

Os vinte e um autores que participam do livro deixam a coletânea ainda mais rica porque nenhuma história é similar a outra. Ainda que todas falem sobre mulheres enquanto protagonistas, os universos em que estão inseridas são muito diferentes. É possível encontrar ficção científica, fantasia, ficção histórica e romances contemporâneos, entre outros gêneros, e cada uma dessas ambientações refletirá diretamente na narrativa que seus respectivos autores buscam contar. O que poderia soar como uma confusão de vozes encontra harmonia ao tratar de mulheres nos mais diversos gêneros, narrativas e situações — o que apenas prova o ponto de que personagens femininas bem pensadas podem existir em qualquer gênero literário e serem escritas das mais diversas maneiras sem caírem no estereótipo da donzela em perigo ou da namorada do herói. Foi um ponto muito positivo que George Martin e Gardner Dozois tenham selecionado para o livro autores tão diferentes entre si, contribuindo de forma enriquecedora para a antologia.

“Certo. Como queiram. Ela não ia mais discutir. A vida era deles. O ferimento era dele. Quem era ela para mantê-lo a salvo quando ele não tinha interesse nisso?” O Inferno Não Tem Fúria

Isso também se reflete quando falamos de personagens femininas fortes. Em Mulheres Perigosas encontraremos protagonistas que lutam e usam armas, mas isso não é tudo o que elas são. As personagens mais quietas e introspectivas também mostram sua força e não precisam segurar uma espada para isso, como é o caso de Constance de Hauteville, protagonista do romance histórico “Uma Rainha no Exílio”, de Sharon Kay Penman. Constance, inclusive, lembra muito Sansa Stark de As Crônicas de Gelo e Fogo, uma mulher resiliente que não deixa transparecer seu potencial até nos surpreender com sua história. E, novamente, aí está a beleza de Mulheres Perigosas: com sua diversidade de autores e narrativas é possível encontrar os mais diferentes tipos de personagens, o que só dará ao leitor uma nova perspectiva sobre as personagens femininas a cada conto finalizado.

Alguns dos contos se destacam em matéria de trama, desenvolvimento de personagens e narrativas. Mesmo que as histórias sejam relativamente curtas, ainda é possível encontrar enredos bem trabalhados e tramas completas, com começo, meio e fim. É o caso, por exemplo, do já citado “Uma Rainha no Exílio”. Sharon Kay Penman se utiliza da história da real Constança da Sicília para tecer a história de uma rainha mandada para longe de seu país natal para se casar com um rígido rei alemão, Henrique VI. Constance não esperava encontrar um casamento amoroso, isso era sorte de poucos, e fez o possível com as armas de que dispunha para assegurar o reinado de seu filho, Frederico II, que viria a se tornar Rei da Sicília e Sacro Imperador Romano e Rei de Jerusalém. Constance foi mais uma entre tantas mulheres nobres a serem enviadas para longe por conta de um casamento de interesses e que tomou as rédeas da própria vida assim que teve a oportunidade, mas sem pegar em armas para isso. Sua diplomacia e sua coragem a fizeram perdurar, assegurando a coroa para seu filho.

“Meus pensamentos ficaram me perseguindo em círculos. Será que eu tinha sido horrível com Glória a vida inteira? Ou apenas estávamos condenadas a viver para sempre fora de sincronia independentemente de tudo?” — Cuidadores

Outra trama de destaque é o conto sobrenatural de Sherilynn Kenyon, “O Inferno Não Tem Fúria”. A autora consegue, em poucas páginas, contar uma história arrepiante sobre um espírito vingativo, uma jovem médium e a caçada a um tesouro enterrado que acaba da pior maneira possível. “Cuidadores”, conto de Pat Cadigan, é uma daquelas histórias impossíveis de parar de ler desde o momento em que somos apresentadas às irmãs Glória e Valerie, que levam uma vida normal até que Glória passa a ser voluntária na casa de repouso em que a mãe delas está internada e descobre uma trama envolvendo medicamentos não aprovados e enfermeiras. “Mentiras que Minha Mãe Me Contou”, de Caroline Spector, é da categoria ficção científica e nos coloca no universo de Wild Cards criado por George Martin. No conto de Spector acompanhamos Michelle e sua filha sendo atacadas por zumbis em Nova Orleans durante o Carnaval — um enredo curioso, a princípio, que se mostra surpreendente e divertido. Encerrando a antologia, “A Princesa e a Rainha”, de George Martin, nos coloca dentro de As Crônicas de Gelo e Fogo ao narrar a batalha entre duas mulheres perigosas “cuja amarga rivalidade e ambição lançam toda Westeros em uma guerra desastrosa.”

Mulheres Perigosas se prova um livro importante e essencial no que se refere a criar múltiplas narrativas envolvendo personagens femininas. Ainda que alguns contos sejam mais interessantes e consigam aprofundar suas personagens de uma maneira mais satisfatória do que outros, todas as vinte e uma narrativas atuam como uma prova de como a construção da personagem feminina pode ser múltipla e diferenciada. Mulheres podem — e devem — ser protagonistas de suas próprias histórias, donas de suas narrativas; a era de ser a donzela em perigo definitivamente terminou.

O exemplar foi cedido para resenha como cortesia pela Editora LeYa.


Participamos do Programa de Associados da Amazon, um serviço de intermediação entre a Amazon e os clientes, que remunera a inclusão de links para o site da Amazon e os sites afiliados. Se interessou pelo livro? Clique aqui e compre direto no site da Amazon!

2 comentários

  1. Oi Thay!

    Legal seu post, eu estou lendo a coletânea, mas até parei e comecei outro livro porque estava achando bem fraco, nada novo, personagens bem estereotipadas e muita visão masculina, no entanto não li nenhum dos que foram citados como melhores – parei no “Explosivas” – agora vou fazer uma forcinha pra continuar.

    1. Oi Chaiane! Obrigada pelo comentário!
      Alguns contos são mais fracos do que outros, mas no geral o livro é uma coletânea interessante e bem rica em narrativas e personagens. Esses citados no texto foram os que mais gostei, espero que aconteça o mesmo com você!

Fechado para novos comentários.