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Um útero é do tamanho do quê?: a poesia de Angélica Freitas

Um Útero é do Tamanho de um Punho está de volta às livrarias cinco anos depois de sua primeira edição, lançada em 2012, pela extinta Cosac Naify. Sumido das lojas entre o fim da antiga casa editorial, em 2015, e a nova edição pela Companhia das Letras, esse é um retorno celebrado porque se trata de um livro de poesia que continua vivo e necessário, capaz de despertar conversas e questionamentos.

Muitas coisas mudaram desde 2012, quando um livro de poemas sobre ser mulher provocava estranhamento. Os debates sobre o feminismo não eram tão presentes no nosso dia a dia, embora várias questões como assédio, disparidade salarial e padrões inatingíveis de beleza estivessem entre as desigualdades com as quais mulheres se deparam frequentemente. E de repente, Angélica Freitas nos trazia versos como:

“porque uma mulher boa
é uma mulher limpa
e se ela é uma mulher limpa
ela é uma mulher boa”  

O livro é iniciado por uma série de poemas sobre uma mulher e, no entanto, a cada novo poema, embora essa construção se repita, a poeta nos mostra outras, diversas mulheres: a gorda, a feia, a suja, a considerada louca. A repetição cria um ritmo, encadeando os poemas, mas o significado do que é uma mulher se expande a cada poema. Uma multidão de mulheres e histórias se revelam conforme avançamos na leitura. A muito feia e limpa, a suja porque muito pobre, a que queria falar de gênero, a que tinha pressa.

Angélica Freitas não apenas joga luz sobre várias mulheres para as quais mal se olhava ou poucos se falava a respeito, como nos provoca a refletir como uma palavra não dá conta de existências tão diferentes. A estratégia da série de poemas vai criando ressonâncias e deslocando significados, apresentando várias mulheres que somos capazes de reconhecer. O primeiro poema trata ironicamente do padrão boa e limpa, e a sequência estabelece vários contrastes com as figuras que desviam da norma.

“uma mulher incomoda
é interditada
levada para o depósito
das mulheres que incomodam”

Ou ainda:

“uma mulher gorda
incomoda muita gente
uma mulher gorda e bêbada
incomoda muito mais”  

Embora abordem injustiças e violências, os poemas em Um Útero são cheios de humor. Não há comiseração ou exaltação sobre ser mulher, mas observações muito atentas e irônicas. A existência de uma série de poemas chamada “mulher de” aponta para o fato de muitas vezes seres humanos do sexo feminino não serem tratados como criaturas autônomas. A expressão “a mulher de [insira um nome]” se tornou comum, mas quando a poeta desloca a preposição e aponta para posses e valores, nos surpreendemos com narrativas sobre mulheres, ambição e apego material. Uma mulher boa gosta de dinheiro? De ter coisas?

É relativamente fácil falar de Um Útero é do Tamanho de um Punho por seu viés político, e às vezes tenho a sensação de que falamos pouco da qualidade dos poemas. De como o livro é estruturado de modo que uma mulher se torne uma legião. Acho necessário apontar como elementos banais como saladas, churrascos, rímel, pasta de dentes e passagens de avião surgem misturados em versos nos quais são abordados temas como o amor, a violência, a solidão, a falta de direitos de decidir sobre o próprio corpo.

Escrever sobre poesia é desafiante porque um bom livro de poemas traz várias possibilidades de leitura, e esse texto se restringe às minhas. Outra questão ao escrever sobre poemas é o fato de que não sei qual o entendimento o/a leitor(a) pode ter do que é poesia. Há pessoas que guardam uma ideia da poesia como nos é apresentada na escola ou ligada a uma expressão de sentimentos. No entanto, existem vários tipos de poesia e no caso de Um Útero é do Tamanho de um Punho, temos versos capazes de nos emocionar, mas que são também muito bem pensados. Da linguagem clara e aparentemente simples, até a ordem como os poemas entram no livro para proporcionar uma experiência. Existe muita reflexão e estratégia no trabalho de Angélica Freitas. Mais de uma vez, a poeta falou sobre sua perspectiva da poesia como uma investigação e sobre como a sua experiência como repórter influenciou o seu olhar e seu ouvido em busca de temas.

Embora exista a temática da mulher, estamos diante de uma poesia com a qual podemos nos identificar e ir além. Ao contemplar várias mulheres, podemos observar o que nos une e nossas diferenças. Ao encontrarmos nos versos as grandes questões e elementos da rotina, vemos como nossa existência é ao mesmo tempo a busca por propósitos e a preocupação com boletos. Um Útero é do Tamanho de um Punho é um livro que aos explorar vários sentidos nos convida a olhar as mulheres e a poesia com mais atenção e generosidade.

Se pensarmos que o livro foi lançado há cinco anos, antes das redes sociais terem ampliado os debates sobre feminismo, do surgimento de clubes como o Leia Mulheres, de iniciativas como a Mulheres que Escrevem  e de diversos sites como o Valkirias, que discutem a representação das mulheres na cultura e suas obras, a poesia de Angélica Freitas está muito ligada ao nosso tempo, ao que acontece. Temas que estão reverberando na vida, e que às vezes nos causam estranhamento ou desconforto, que talvez algumas pessoas não considerem assunto para poemas. Enquanto Angélica investiga, usando o ritmo, o humor, uns elementos de paródia e nonsense, ela nos chama para prestar atenção. O assunto pode não ser engraçado em si, mas o jogo criado pela poeta, expondo as contradições e os absurdos, nos faz rir — às vezes de nervoso.

Há várias referências a outras leituras em Um Útero é do Tamanho de um Punho e elas surgem com a mesma naturalidade de um vinho de supermercado, o café, esmaltes com nomes esquisitos e calcinhas. Algumas são Elizabeth Bishop, Jorge Luis Borges, Roland Barthes, Jane Austen e Konstantinos Kaváfis. A poesia está ligada ao exercício da escrita, a leitura e a uma observação do mundo.

O olhar afiado da poeta também pode ser percebido em seu trabalho recente em parceria com sua namorada, a musicista Juliana Perdigão (para ouvir o álbum Ó, de Juliana, clique aqui). Na série de Coisas que Voam, criada para o festival Frestas Trienal de Artes, Angélica Freitas reflete sobre o Brasil atual falando do padre do balão ou de um avião bimotor cheio de cocaína. Provoca questionamentos sobre como o ser humano se considera superior a outras forma de vida a partir do diário da cadela Laika e de dinossauros que dominaram a terra e se tornaram combustível. E mistura a Grécia, a mitologia, a tradição com a disco dance das Frenéticas, que alguns podem ter descoberto na versão pop de Lulu Santos.

Um Útero é do Tamanho de um Punho influenciou o trabalho de várias poetas nos últimos anos e é uma ótima leitura para quem tem curiosidade sobre a poesia brasileira contemporânea. Quem acha que a poesia é algo distante e difícil, mas ainda não encontrou um livro que traga a sensação de “opa, isso dialoga comigo”, vale muito dar uma chance. Se dar conta muitas coisas que podem caber num útero e na poesia pode ser uma bela descoberta.

Stephanie Borges é leitora, jornalista e poeta. Carioca, 32 anos, é formada em Comunicação Social pela UFF. Trabalhou em agências de comunicação e editoras como a Cosac Naify e a Globo Livros. Colabora com o projeto Leia Mulheres. Atualmente é redatora e tradutora freelancer. Há um ano escreve uma newsletter sobre leitura e cultura pop, a cartinha de banalidades.


* A arte em destaque é de Elisa von Randow, responsável pelo projeto gráfico da edição da obra na Companhia das Letras.

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