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Rita Lee: são coisas da vida

Rita Lee é o tipo de pessoa que não veio à Terra a passeio. Desde criança já era algo como a ovelha negra da família, que aprontava sem parar todo tipo de peripécia infantil enquanto crescia em um casarão na Vila Mariana, na São Paulo da década de 1940. Filha de uma descendente de italianos com um imigrante norte-americano, Rita era a caçula de duas irmãs, a pequena transgressora de limites desde que se lembra. Com o título de rainha do rock brasileiro, a carreira de Rita Lee começou quase por acaso visto que, em sua família, a música era apenas uma distração e seu pai sempre dizia que um diploma de ensino superior era essencial para crescer na vida.

Ela até que tentou. Chegou a cursar Comunicação Social na Universidade de São Paulo, na mesma turma que Regina Duarte, mas seu amor pela música falou mais forte e Rita abandonou a faculdade ainda no primeiro período para correr atrás daquilo que fazia sua pulsação se elevar. Ela fez aulas de piano durante a infância, já era fluente em inglês devido a herança familiar por parte de pai, e sempre estava em busca de algo que a fizesse se sentir viva, enérgica, o que acontecia toda vez que se apresentava. Embora, quando criança, pensasse mais a respeito de ser atriz ou seguir na odontologia, profissão do pai, foi na adolescência que a paixão pela música deixou de ser uma diversão para se transformar em algo quase sério quando, junto de seus colegas, formou uma banda e começou a se apresentar em colégios da região.

“O altar do palco é viciante, o lugar mais seguro para se viver perigosamente.”

Com influências musicais que passeiam entre Elvis Presley e Rolling Stones, o verdadeiro amor da vida de Rita Lee foram os Beatles. Em seu livro Rita Lee – Uma Autobiografia, lançado em 2016 pela Globo Livros, as referências aos garotos de Liverpool são intensas e constantes. Mas não só de música estrangeira foi feita a bagagem cultural de Rita, que também adorava Cauby Peixoto, Angela Maria, Dalva de Oliveira e Maysa. Entre idas e vindas musicais, a jovem Rita Lee fez parte de alguns grupos: o primeiro, Tulio’s Trio, passando pelas Teenage Singers até chegar no Six Sided Rockers, uma união das Teenage com o trio masculino Wooden Faces, mais tarde rebatizado de O’Seis. Da formação original de O’Seis, que chegou inclusive a gravar um disco com duas música, sobraram apenas Rita, Arnaldo Baptista e Sérgio Dias, que batizaram a nova banda de Os Bruxos. Por sugestão de Ronnie Von, no entanto, o grupo adotou o nome pelo qual ficariam conhecidos: Os Mutantes.

Sua fase com Os Mutantes durou seis anos de muita música e psicodelia. A banda foi pioneira no uso de sintetizadores e outros instrumentos fora do comum em suas músicas, criando um som único e facilmente identificável, que mudaria o cenário do rock nacional. A banda acompanhou Gilberto Gil na apresentação no III Festival de Música Popular Brasileira, gravou seis álbuns, produzindo o hino de uma geração, “Ando Meio Desligado”. Rita foi casada com Arnaldo por quatro anos, mas devido a incompatibilidades artísticas e um casamento já conturbado, ambos os relacionamentos chegaram ao fim. Em Uma Autobiografia, Rita conta como foi praticamente convidada a se retirar da banda e como, de mala, cuia e cachorra Danny debaixo do braço, voltou para o casarão dos pais totalmente arrasada e sem rumo.

Mas não demorou muito para que Rita se encontrasse novamente e formasse outra banda. Dessa vez junto da amiga Lúcia Turnbull e de Luis Sérgio Carlini e Lee Marcucci, nascia a Tutti Frutti. Rita era a principal cantora da banda, uma posição que ela não desejava, mas que assumiu com cara e coragem. Em Uma Autobiografia, inclusive, são diversas as passagens em que Lee questiona sua validação enquanto cantora, quase um atestado da famosa síndrome do impostor que assola tantas mulheres de talento. Em uma das passagens, Rita conta como seus amigos dizem que ela se autodeprecia demais e como, nos registros dos hotéis, na hora de preencher sua profissão, ela nunca escrevia “cantora” e para camuflar seu complexo de inferioridade vocal, preenchia “compositora”, e quando se sentia mais segura, “musicista”.

É na fase Rita Lee & Tutti-Frutti que a cantora lança seu primeiro grande sucesso, o álbum Fruto Proibido, de 1975. É nessa gravação que estão presentes suas icônicas “Agora só Falta VocꔓEsse Tal De Roque Enrow” e “Ovelha Negra da Família” — esta última tendo, inclusive, pego Rita de surpresa ao conquistar o primeiro lugar na parada nacional de 1975, a primeira música brasileira a abordar a saída dos filhos das casas dos pais. Considerado um manual de como se fazer rock brasileiro, Fruto Proibido, um LP cor-de-rosa repleto de citações femininas, com músicas cantadas por e uma banda liderada por uma mulher, rompeu com os padrões de um país machista e um estilo musical que não permitia mulheres em seu meio, transformando-se na mais completa tradução do rock nacional. Rita cantou, bordou e sapateou. Fez tudo o que queria fazer — e muito mais.

Lee continuou trabalhando em sua música, apresentando-se em shows e fazendo sucesso. Foi também no ano de 1976 que ela conheceu o músico Roberto de Carvalho, com quem viria a se casar e formar uma das parcerias mais profícuas de sua vida. Além de pai de seus três filhos — Roberto, João e Antonio Lee — a parceria também se estenderia ao cenário musical onde a dupla produziria sucesso após sucesso como se fosse algo simples e fácil. Formando dupla com Roberto, e já longe do Tutti-Frutti, os temas femininos retornam ao trabalho de Rita: lançando o álbum Rita Lee, em 1980, a cantora e compositora voltara a abordar a liberdade da mulher e o prazer feminino. Em uma época difícil como a Ditadura Militar, é de se admirar que Rita tenha conseguido cantar “vê se me dá o prazer de ter prazer comigo”. “Mania de Você” mostrava uma mulher tomando as rédeas da situação e tomando o prazer para si em uma época em que falar de sexo era um tabu; ainda mais se, como no caso, fosse uma mulher falando de sexo. O sexo, sempre cantado a partir do ponto de vista masculino, foi transformado por Rita em coisa de mulher. Em Rita Lee – Uma Autobiografia, somos lembrados de que foi Elis Regina — grande amiga de Rita — uma das primeiras a se atentar para o fato de que era realmente transgressor e importante que uma mulher estivesse falando abertamente sobre sexualidade e prazer feminino. O álbum Rita Lee recebeu disco de ouro, platina e diamante, a música “Lança Perfume” entrou na parada da Billboard e foi lançada no mundo todo, da Europa à Ásia, do México aos Estados Unidos.

Foi nessa época, grávida de seu primeiro filho e vivendo com Roberto, que Rita passou por um dos períodos mais difíceis de sua vida. Narrado com sinceridade e sem rodeios em seu livro, a cantora conta como foi presa pelos policiais da Ditadura Militar em uma batida programada que a incriminou por porte e uso de maconha. Rita escreve que, quando se descobriu grávida, parou de consumir qualquer tipo de substância tóxica e que estava completamente sóbria desde então. Essa ação foi um ato do regime a fim de usá-la como exemplo; Rita ficou por uma semana presa no DEIC para depois ser transferida ao Hipódromo Feminino, onde ficou por mais um mês e meio. Em Uma Autobiografia, ela relata como a maconha foi plantada em seu apartamento pelos policiais que fizeram a batida e como, mesmo assim, continuou presa. Rita foi colocada em uma cela com outras oito mulheres que a “adotaram” nesse período, até mesmo cedendo uma das camas da parte debaixo da beliche por ela estar grávida. Com um violão surgido sabe-se lá de onde, Rita cantava para as detentas e ali mesmo compôs a música “X21”, baseada na história de cada uma daquelas mulheres. A letra, claro, foi censurada pela Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e carimbada com o selo “desacato aos valores da família”.

Uma Autobiografia

Enquanto presa, Rita correu sério risco de sofrer um aborto. Suas colegas de cela fizeram o possível para pedir por um médico, mas os policiais do Hipódromo se fizeram de surdos. Por acaso do destino ou providência divina, Elis Regina, a Nossa Senhora das Roqueiras, nas palavras da própria Rita Lee, estava na portaria ameaçando fazer um escândalo nos jornais se não a deixassem entrar para ver a amiga. A amizade das duas é ponto recorrente de Uma Autobiografia e Rita conta com carinho sobre as conversas que dividiam, as risadas que deram juntas. Elis, a musa mor da mpb! Elis, a maior cantora do Brasil! A rainha do Olimpo musical com quem nenhum general da Ditadura Militar se atreveria a mexer. Após esse episódio, Rita foi a julgamento e foi determinada a prisão domiciliar por um ano — a cantora precisava pedir permissão para continuar trabalhando e a cada saída do casarão dos pais, para onde voltou, para se apresentar em um show, um pedido era despachado para o juiz de serviço.

“O ‘Clube do Bolinha’ afirmava que para fazer rock ‘precisava ter culhão’, e eu queria provar para mim mesmo que rock também se fazia com útero, ovários e sem sotaque feminista clichê. Pois é, entre tantas intérpretes brasileiras extraordinárias, de mulheres compositoras eu só conhecia Chiquinha Gonzaga, Dolores Duran e Maysa. Pensando nisso, resolvi investir em músicas de minha autoria para meu próprio consumo, uma vez que sabia não ser uma cantora de calibre.”

Após o período em que passou presa, Rita precisou se reerguer. Junto de Paulo Coelho ela compôs a polêmica “Arrombou a Festa”, em que criticava sem papas na língua o cenário musical brasileiro. Com Roberto de Carvalho, Rita, então, saiu em turnê ao lado de Gilberto Gil e produziu um dos shows mais icônicos de sua carreira, o Refestança. O bom período musical se estendeu na vida de Rita, mas a cantora volta e meia retornava para seus vícios, as drogas e o álcool. Foi por conta disso que ela e Roberto se separaram por um período visto que ele não queria que os filhos tivessem que lidar com as recaídas da mãe. Rita passou por várias internações em clínicas de reabilitação e, antes de fazer o show de abertura para os Rolling Stones, deu entrada em um hospital devido a uma overdose de cocaína e heroína. Sob o efeito de drogas, um ano depois, Rita caiu de uma varanda no segundo andar de sua casa no sítio e quebrou o maxilar. Em Uma Autobiografia, Rita diz que os médicos chegaram a afirmar que, após o acidente, ela nunca mais poderia cantar.

Foi somente com a chegada de sua primeira neta que Rita Lee tomou a decisão de ficar — e permanecer — sóbria. A cantora, sempre a frente de seu tempo e ferrenha defensora dos animais, permanece um ícone do rock brasileiro e continua produzindo músicas memoráveis. Rita é a artista brasileira com mais músicas em aberturas de novelas da Rede Globo, sua “Erva Venenosa” já foi usada como tema de três personagens de novelas diferentes e continua atemporal. Ultrapassando os dois milhões de cópias vendidas com seu álbum Flagra, Rita é a mulher brasileira que mais vendeu discos no país e coleciona discos de ouro, platina e diamante. Homenageada em trio elétrico, em escola de samba e peça de teatro, Rita Lee permanece o ícone de uma geração.

“A caçula que Magdalena Tagliaferro jurou ter medo de palco, o anjinho de procissão que mordeu a hóstia, o menino baiano que tomou um porre na fazenda da tia, a fanática pelos Beatles que assistiu A Hard Day’s Night dezesseis vezes seguidas sem sair do cinema, a rebelada que fugia pela janela para tocar bateria, a hippie comunista que não trancou a matrícula na USP, a que foi presa grávida, a mãe do Beto e do Juca. Estava explicado por que a filha, thank God, não foi ser freira nem dentista.”

Em determinado momento do livro, Rita escreve o que veria em seu epitáfio: ela nunca foi um bom exemplo, mas era gente boa. Talvez seja preciso discordar um pouquinho. Embora Rita tenha metido os pés pelas mãos em diversas situações, o que fica, acima de tudo, é o exemplo de uma mulher que seguiu seus sonhos e suas paixões antes de tudo. Amou profundamente seus pais e suas irmãs, tem um espaço especial para todos os animais desse mundo — cachorros, gatos, ratos e até cobras — e continua por aqui fazendo o que sabe fazer de melhor: nos encantar com sua música e nos encantar com suas melodias. Rita mostrou o que é, de fato, viver o sexo, drogas e rock’n’roll — mas agora sem as drogas. Fofa.