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Ficção social, afrofuturo e a importância de projetar o mundo que queremos

Se nós imaginarmos hoje o mundo que nós queremos, este vai ser o mundo que vamos criar”. Esse é o conceito básico por trás da ficção social, teoria criada pelo economista Muhammad Yunus, ganhador do Prêmio Nobel da Paz de 2006. Conhecido como pai do microcrédito e dos negócios sociais, Muhammad fundou o Grameen Bank e outras 50 empresas em Bangladesh que ofereciam empréstimo de módicas quantias de dinheiro a pessoas em situação de extrema pobreza. A rede montada por ele se expandiu a ponto de impactar na redução da pobreza do país do sudeste asiático — houve uma queda de 50% entre 1990 e 2010, segundo dados da ONU. Ele ousou sonhar com o mundo que queria e traçou um caminho prático para chegar até ele.

Questionador do sistema capitalista, o economista aponta a tecnologia como um dos principais meios para que uma verdadeira revolução social aconteça em larga escala e enxerga nos filmes de ficção científica as lições para chegar num modelo socioeconômico ideal. Para ele, histórias fantásticas mostram quais direções podem ser seguidas e quais devem ser evitadas, tomando de exemplo tramas distópicas como Blade Runner (1982) e Distrito 9 (2009).

“Esses filmes fazem um bom trabalho ao nos alertar o que pode acontecer (…) A ficção científica é sempre seguida pela realidade”

Esse é o ponto de partida da ficção social. Uma projeção imaginária do futuro para que se possa encontrar o melhor jeito de corrigir o sistema (capitalista) responsável pela manutenção de metade da população mundial com apenas 1% da riqueza do mundo. De encontro a essa teoria, está o movimento artístico-cultural afrofuturismo, que também nasceu da crítica de obras de ficção científica, mas que, neste caso, destacava a ausência de pessoas negras em produções do gênero, como o desenho animado Os Jetsons (1962) e o filme De Volta para o Futuro (1985), estes predominantemente brancos.

A pesquisadora Morena Mariah faz uma intersecção entre essas reflexões na plataforma de educação Afrofuturo, criada por ela. Afinal, o afrofuturismo está diretamente ligado à resistência e à estratégia de sobrevivência da população negra. E, portanto, tem como papel projetá-la no futuro. No Brasil, Jorge Ben Jor já trazia questões do afrofuturo nos anos 80, como na letra da música “Abenção Mamãe, Abenção Papai“, do álbum Sonsual (1984), onde canta: “Nasci de um ventre livre/No século 20/Eu tenho fé, amor e a fé/No século 21/Onde as conquistas científicas/Espaciais medicinais/E a confraternização dos povos/E a humildade de um rei/Serão as armas da vitória para paz universal união/Todo mundo vai ouvir, todo mundo vai saber (…)/Alô geração do século 21 está tudo aí, energia”.

Entretanto, apesar da crescente força que o movimento vem ganhando no mainstream — endossado por nomes da música como Janelle Monáe, da literatura como Octavia Butler e no cinema com Pantera Negra (2018) — ainda são mais escassas as obras da cultura pop que idealizam esse futuro otimista para pessoas negras e/ou periféricas. Ou que, pelo menos, as retratem no presente para além da narrativa de sofrimento e dos estereótipos, especialmente no audiovisual.

No episódio #12 do podcast Angu de Grilo, as jornalistas Flávia Oliveira e Isabela Reis lançam uma provocação sobre a falta de narrativas no cinema e nas séries de TV que tenham como mote a perspectiva da ficção social já que, como pessoas negras, há um desconforto em assistir constantemente tramas que exploram apenas a dor de outros iguais. Em julho do ano passado, o ator Lázaro Ramos escreveu para o jornal Folha de São Paulo sobre a dificuldade em assistir a série Olhos que Condenam, lançada pela Netflix e dirigida por Ava Duvernay (Selma e 13ª Emenda). A série conta a história de cinco jovens negros acusados injustamente de estupro.

“Assisti a 20 minutos de ‘Olhos que Condenam‘, começou a doer, parei. Pesquisei a história e conversei com pessoas que me sugeriram ir para o segundo episódio. Então, vi um pedaço de cada capítulo e a meia hora final do último. Acho que é tão dolorido porque tem a ver com dia a dia da gente. Essa pauta pula todos os dias no colo da sociedade”

Lázaro ainda cita no artigo a necessidade de propor alternativas, como fez na peça dirigida por ele O Topo da Montanha, em que reinventa a última noite do pastor protestante e ativista político Martin Luther King: “(…)a preocupação era sempre sugerir um caminho. Não ficar somente na denúncia. Talvez por isso a série me doeu de um jeito que não deu para mim, não — mesmo sendo tudo muito bem realizado e executado.”

Também apontando para um lugar de esperança, o rapper Emicida lançou em 2019 o álbum AmarElo. Ao falar sobre o processo de produção do disco para o El País, ele destaca nas letras a importância do equilíbrio. Ao mesmo tempo em que busca inspiração no cotidiano difícil da periferia utilizando de um lugar que também lhe pertence por experiência Emicida entende que é preciso ir além dessa história única e busca na sabedoria da ancestralidade ferramentas de escape para quem o ouve.

“Minha preocupação fundamental é construir paz e serenidade sem ser ingênuo, sem se desconectar da realidade, o que soaria até como deboche no tempo que estamos vivendo. Quero manter meus pés no chão, mas o coração das pessoas precisa ser acalentado.”

Portanto não dá para descartar o impacto que o racismo tem na saúde mental da população negra. Dados do Ministério da Saúde e da Universidade de Brasília mostram que a cada dez jovens que cometem suicídio, seis são negros. Além disso, de acordo com reportagem do jornal Nexo, há no Brasil “um movimento crescente para reivindicar o reconhecimento do preconceito e da discriminação racial como importantes causadores de problemas psíquicos”. Dessa forma, ignorar a relevância do que se consome enquanto cultura dentro desse cenário é ignorar o poder de influência que ela tem na vida dessas pessoas.

afrofuturo

O mesmo ‘fenômeno’ pode ser observado se o recorte for de gênero e de orientação sexual, já que histórias que envolvam apenas mulheres com frequência também vêm acompanhadas por algum tipo de violência atravessando as personagens femininas, assim como histórias LGBTQI+ que, geralmente, também são envoltas a algum tipo de sofrimento. Algo que fica mais evidente quando se trata de TV, séries e cinema, já que a literatura, por exemplo, consegue ampliar o leque da diversidade e, com isso, propiciar um maior número de pessoas contem suas próprias versões de mundo.

Por fim, e agora de volta à ficção social, se por um lado a humanidade sempre buscou olhar anos a frente na tentativa de prever como seria viver numa realidade ultra tecnológica, por que não arquitetar hoje possibilidades para um sistema que não seja tão massacrante, desigual e injusto? E, com essas possibilidades em mente, criar estratégias para chegar lá? A cultura e a criatividade sempre apontaram as possibilidades de mudanças. Basta direcionar o olhar. Parafraseando a filósofa e ativista política Angela Davis: “Você deve agir como se fosse possível transformar radicalmente o mundo. E você deve fazer isso o tempo todo”. Que o olhar do que queremos no futuro possa ser traçado a partir hoje.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Vieira