Mulher negra e protagonismo combinados incomodam e sempre incomodaram, mas agora a mulher negra e o protagonismo estão no mainstream como jamais visto antes. A passos lentos, e ainda longe de alcançar o patamar que equilibre a balança, é verdade. Mas é muito difícil não vibrar, mesmo que um pouco. Não percebia o quanto sentia — e ainda sinto, para ser honesta — falta de que isso acontecesse, que tivesse um clique que fizesse parar e pensar a respeito. Então quer dizer que a jornalista e futura dona de um império midiático e amada esposa de um super-herói pode ser negra? Que, num cenário futurista, o herói que salva toda a vida inteligente no universo é, na verdade, uma super-heroína negra? E que tal uma advogada de sucesso com camadas e camadas de complexidade? Uma alien poderosa com poderes solares? Ororo Munroe, a Tempestade de X-Men, não é o único cosplay possível para mulheres e meninas negras? Mas mulher negra não é uma só e geralmente a coadjuvante hipersexualizada ou extremamente preterida, quando existe?
Há quem pense que isso já é o suficiente, mas se as estruturas sofreram qualquer abalo, foi um baque leve. Entretanto, por mais que existam estereótipos infelizes que ainda permeiam histórias de personagens negras e que todas as mulheres a serem citadas neste texto merecem ser melhor desenvolvidas, fico realmente feliz que elas existam, porque cada uma demarca um começo há muito tempo aguardado e necessário. E, mesmo com todos os poréns, não deixo de achá-las maravilhosas.
O caso Iris West-Allen
Iris West-Allen (Candice Patton), por exemplo, de The Flash, lida com os altos e baixos que vem quando se ama e se é amada por um super-herói. Além de assertiva e brilhante, ela também é uma romântica. E quantas vezes vemos mulheres negras em papéis românticos? É preciso sempre lembrar que a ausência ou a existência de representatividade é sempre uma escolha. Talvez por esse motivo eu encare a existência de uma personagem como Iris tão a sério. Muitas vezes é ela quem impulsiona a trama da série adiante, de uma maneira ou de outra. The Flash não deixa de ser, parcialmente, uma comédia romântica e ela é a garota por quem Barry (Grant Gustin) sempre foi apaixonado; Barry sempre está, literalmente, correndo para um futuro onde seja possível que eles fiquem juntos. Por ser jornalista, Iris é quem dá nome a identidade de super-herói de Barry quando escreve sobre ele pela primeira vez, e é ela quem sempre está desenvolvendo matérias investigativas sobre os meta-humanos combatidos pelo Flash.
Em um mundo melhor, The Flash saberia respeitar e retratar melhor Iris e seus relacionamentos, principalmente o seu casamento com Barry que é uma das peças centrais de toda a trama. Apesar de tudo, é impossível negar que Iris é incrível e que o fato de Patton ter sido escalada para interpretá-la — visto que a personagem, nos quadrinhos, é uma mulher branca — é o que eleva a personagem e também a série.
A trajetória de Michael Burnham
Outra personagem incrível é Michael Burnham, interpretada por Sonequa Martin-Green em Star Trek: Discovery, que já começa sendo maravilhosa só pelo nome, tipicamente masculino. Além de inteligente, ela é teimosa, destemida (até demais — em determinado momento, Michael é chamada de adrenaline junkie ou “viciada em adrenalina” em tradução livre), e esconde muito bem o que sente , afinal foi criada num planeta onde emoções não são vistas com bons olhos . Mas ela é humana e por mais que eu acredite que é terrivelmente comum e ruim que mulheres negras — tanto as reais quanto as ficcionais — tenham que ser ou pelo menos demonstrar ser fortes, no âmbito emocional tanto quanto no físico, o tempo todo, tenho que confessar que essa dualidade da Michael é interessante em certos pontos.
Vê-la navegar os próprios sentimentos, quando é permitida, é ótimo E é fácil de se identificar com Michael, especialmente se você for uma pessoa racializada (mas não somente): quem nunca se sentiu um peixe fora d’água, pertencente a muitos grupos, mas sentindo que não pertence de fato a nenhum? Quem nunca fez as escolhas erradas, mesmo pelas razões certas, e foi assombrada por isso por muito tempo? Quem nunca, mulheres, e mulheres negras especialmente, sentiu que o sacrifício de si era a única solução ou a mais “respeitável”? E essas são apenas algumas das questões expostas em Star Trek: Discovery, que, como já mencionado, poderiam ser melhor trabalhadas. Mas apenas o fato de tais questões estarem ali, sob o holofote metafórico, instigam quem tem o olhar mais sensível.
A série não é perfeita, mas entre os seus altos e baixos, a importância de Michael na narrativa é uma constante, e é por isso que a importância dela reverbera para fora do ficcional. E é mais do que obrigatório também elogiar o trabalho estupendo da Sonequa Martin-Green. O que essa moça demonstra num olhar é de arrepiar. Raramente torço tanto pela felicidade de um personagem como torço pela de Michael, e parte disso tem que ser crédito de Sonequa. Eu a conhecia devido as aparições que tinha feito em New Girl, e a discrepância entre aquela personagem e Burnham foram um baque quando comecei a assistir Star Trek: Discovery. Estou animada para a terceira temporada, não só porque a série está, pelo que parece, se encontrando em termos narrativos, mas também porque além de ser visualmente deslumbrante, essa é, antes de tudo, a história de Michael. E eu estou mais que pronta pra vê-la se desenrolando.
Reforçando: representatividade importa
Personagens como Iris e Michael são, pelo menos para mim, o que muita gente ainda não entendeu quando se fala em “personagens femininas fortes”: não são mulheres que sabem dar socos e chutes (embora façam isso e muito bem, obrigada) ou personagens sem relacionamentos românticos (vale lembrar: personagens sem interesses românticos e que são “fortes” são normalmente mulheres negras). A personagem feminina forte de verdade é alguém com nuances, desejos e convicções próprias, não alguém que demonstra o ponto de vista masculino do que é força.
São mulheres com qualidades evidentes e utilizadas; que são mais do que o apoio de uma narrativa e que são importantes e cruciais para a história a ser contada. Por isso celebramos protagonistas mulheres, porque as personagens femininas dentro das histórias são tão frequentemente descartáveis. E por isso eu celebro protagonistas negras, porque a ideia de que mulheres negras são necessárias é algo que tem que deixar de ser raro. É disso que falamos quando falamos de representatividade de qualquer tipo: esse sentimento de alívio ao sermos lembradas de nossa existência e de que ela é válida.
Ainda existe um longo caminho a percorrer para que essas, e futuras, personagens, sejam tratadas de forma justa dentro de cada uma de suas narrativas, mas a relevância que elas têm só por existirem de um jeito que não as hipersexualize nem as subalterne é um avanço. E sinceramente? Mandem mais que tá pouco.
Vitória Matos tem 22 anos, é quase-graduanda em jornalismo, ama séries e literatura YA e não acredita em guilty pleasures. Quando não está lendo nem escrevendo, está abraçada com sua gata ouvindo música de bandinhas emo.
Parabéns pela matéria,gostei muito, realmente estamos caminhando em passos bem lentos para ter mais mulheres pretas tendo mais oportunidade.
Quero fazer só uma observação: só teremos mais oportunidades se a comunidade preta aprender ser mais unida e se apoiar mais.