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Crítica: Nada Ortodoxa

Em tempos de privação e desesperança, consumir conteúdo que perpetue a possibilidade de liberdade é vital para nossa saúde mental. Seja esse conteúdo filmes de viagem, videogames de aventura ou séries que exploram a culinária ao redor do mundo, perceber que ainda há um universo lá fora para ser explorado e que existe uma vida pós-quarentena esperando para ser vivida reacende nossa esperança e nos faz crer que o pior já ficou para trás. Talvez antenada exatamente a essas necessidades, a Netflix lançou, no final de março, a série Nada Ortodoxa, cujo enredo celebra a perseverança de uma mulher em soltar-se das amarras em que está presa e traçar sua própria jornada.

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Em quatro episódios de 50 minutos, acompanhamos Esty (Shira Haas), uma jovem judia que reside numa comunidade Satmar em Williamsburg, no distrito nova-iorquino do Brooklyn. Os Satmars são um grupo de judeus ultra-ortodoxos originados na Hungria que, após a Segunda Guerra Mundial, estabeleceram-se em Nova York. Entre suas diversas práticas, os Satmars aderem aos princípios mais estritos da religião, como a rejeição da cultura moderna, a prevalência do iídiche (língua originada pelos judeus da Europa Central), e a oposição aos estudos não-religiosos. Recém-casada em uma união infeliz e dando-se conta que não pertence à cultura em que está inserida, Esty decide fugir.

Criada por seus avós e por sua tia, a vida naquela comunidade é tudo que Esty conhece e ama. Contudo, é o desespero impulsionado pela percepção de que ela não pode mais continuar vivendo ali que a faz embarcar num avião para Berlim, cidade onde sua mãe (que há anos havia abandonado a filha e a vida religiosa) mora, e onde Esty espera encontrar consolo, afirmação e respostas para as dúvidas que a inquietam. O desaparecimento de Esty escandaliza Williamsburg, que já a via com maus olhos por causa de seu histórico familiar e por sua incapacidade de ter um bebê mesmo após mais de um ano de casamento com Yanky (Amit Rahav), herdeiro de uma família respeitada na região. A fim de conservar a integridade da comunidade, o rabino e os anciãos do grupo encarregam-no com a tarefa de encontrá-la e, acompanhado de seu primo, Moishe (Jeff Wilbusch), que outrora fora expulso da comunidade, e vê no resgate de Esty uma maneira de ser aceito de volta, Yanky segue a esposa até a Europa após descobrir seu paradeiro.

Em Berlim, Esty foge de sua mãe após descobrir que ela está em um relacionamento homossexual, e o destino a faz conhecer Robert (Aaron Altaras), um violinista que age como um guia para a vida secular na Alemanha a que Esty agora faz parte. Imersa nessa nova realidade, Esty conta com Robert e seus amigos para desvendar um novo mundo, longe de Williamsburg e conforme quem ela acredita ser.

Nada Ortodoxa

Nada Ortodoxa é uma série baseada na autobiografia de Deborah Feldman, uma ex-judia ortodoxa cujo livro, The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots, foi um best-seller em 2012, e revelou para o mundo detalhes da vida de um judeu Satmar, uma das vertentes mais sigilosas do judaísmo. Não por coincidência, é um dos primeiros livros OTD (off the derech, fora do derech, uma palavra em hebreu que descreve o caminho Ortodoxo) escritos por uma mulher, e a leitura e interpretação do mundo ortodoxo tomam um novo significado quando aliados a uma perspectiva feminina.

Ainda que existam algumas diferenças entre a série e o livro, muitos elementos são transcritos da autobiografia para a ficção, principalmente aqueles relacionados à vivência de mulheres dentro de comunidades ultra-ortodoxas. Desde a infância, tanto Deborah Feldman quanto Esty não tiveram acesso ao estudo secular, aquele que orienta acerca das ciências do mundo, e, ao invés disso, foram preparadas para uma vida como mãe e esposa devota. Ambas casaram cedo, assim que saíram da adolescência, e passaram por rituais que preparam a mulher para a vida matrimonial: antes do casamento, Esty banha-se em um mikveh, num ritual feito por noivas que representa sua purificação para adentrar num novo período em suas vidas.

Em uma cena emocionante após o casamento, Esty chora ao ter seu cabelo raspado enquanto é observada por duas meninas mais novas; para o judaísmo ortodoxo, o cabelo é considerado um atributo sensual nas mulheres, portanto mulheres casadas devem cobrir ou raspar seus cabelos, revelando-os apenas na presença de seu marido — por causa disso, ao longo dos episódios, vemos Esty muitas vezes usando um sheitel, uma peruca. Quando Esty finalmente se despe de sua peruca e mergulha em outras águas, as águas de um simbólico lago em Berlim, é ali que o telespectador finalmente entende o significado daquela libertação para Esty, e como a peruca é um símbolo do que ela quer deixar para trás.

Nada Ortodoxa mostra de maneira realista as diferenças de tratamento entre mulheres e homens dentro da fé judaica e como essas diferenças se traduzem entre crenças distintas dentro do próprio judaísmo. Na comunidade, assim como em muitas outras partes do mundo sob influência de outros credos, o valor de uma mulher está relacionado a sua capacidade de ter filhos, e quando elas falham esse objetivo ou escolhem maneiras alternativas para viver suas vidas, elas deixam de ser indivíduos e tornam-se pesos. Essas percepções são veladas sob a noção da fé, e uma mulher que não encontra satisfação nos artifícios que sua fé a dispõe é imediatamente ostracizada; isso fica muito claro quando o casamento entre Esty e Yanky se mostra incompatível e, ao invés de encontrar apoio, pertencimento e um senso de identidade na relação marital da forma como ela sempre foi prometida, Esty tenta se desvencilhar do rótulo de “mulher de Yanky Shapiro” ou “futura mãe dos filhos de Yanky Shapiro”, e é prontamente repreendida por essa atitude.

Ao mesmo tempo, essas noções de fé não são necessariamente utilizadas para guiar os homens. Moishe, nesse contexto, é o maior exemplo disso. Mesmo agindo de forma diferente do que é esperado e aceito pela comunidade, todos os seus “pecados” serão perdoados se ele simplesmente trouxer Esty de volta para Williamsburg. O rabino até permite que ele tenha um smartphone, ainda que, como Yanky nota, esse tipo de tecnologia não seja permitida na comunidade, e fica claro ao telespectador que, da mesma forma que acontece na vida real, os homens daquele universo também ganham um “passe” para agir como queiram porque suas transgressões não são tão mal-vistas quanto as das mulheres.

Nada Ortodoxa

E isso não é para dizer que os homens de Nada Ortodoxa não são personagens complexos, ainda que desfrutem amplamente dos benefícios do patriarcalismo. Quando acompanhamos Yanky e Moishe em Berlim, somos sensíveis a suas perspectivas, ainda que torçamos definitivamente para que Esty consiga escapar. Moishe parece ser um homem constantemente perturbado pela possibilidade de, assim como Esty, ter conseguido escapar, mas sempre parece hesitar quando percebe o sistema de apoio que tem dentro da comunidade; mesmo assim, isso não o impede de consumir álcool, flertar sensualmente com prostitutas em Berlim, e nem reacender seu vício em apostas — contanto que ele traga Esty de volta, tudo estará perdoado.

Já Yanky parece ser tão vítima quanto Esty. Ao longo dos flashbacks, dá para perceber que tanto Yanky quanto Esty tentam ao máximo fazer o casamento funcionar, apesar das dezenas de sinais ao redor de ambos que aquela união não é a ideal pra nenhum dos dois, e funciona por um tempo — a cumplicidade que existe entre eles parece vir de um lugar de inadequação mútua, e, em momentos, há carinho. Ambos fazem concessões dentro de seus relacionamentos, tentando se ajustar e entender o que é melhor um para o outro, mas existe um momento em que os privilégios masculinos de Yanky se sobressaem a qualquer entendimento que ele possa ter à situação que Esty vive. Como a própria mãe dele deixa bem claro, Yanky foi criado para se sentir um rei.

Mas essa ilusão de realeza desaparece bem rápido quando Yanky é inserido na vida fora de Williamsburg. Ao navegar por esse novo mundo, mesmo que por poucos dias, fica notável que Yanky também se sente preso nos confins da comunidade, em um grau, claro, muito menor que Esty, mas ainda considerável. Não demora para Yanky perceber, ainda que esse esclarecimento venha enquanto ele assiste a um filme antigo na televisão pela primeira vez, que os costumes que definem sua vida são frágeis e questionáveis. Por isso, a cena em que ele corta seus payots no último episódio é tão chocante: os cachinhos são uma das características mais marcantes do judeu ortodoxo, e sua existência é uma constante memória física da religião; quando Yanky os corta, implorando a Esty que o aceite em seu novo mundo, fica claro como aquela experiência, mesmo curta como foi, também foi uma forma de elucidação.

Nada Ortodoxa faz o que muitas séries sobre religião não conseguem: mostra sem rodeios a misoginia enraizada em muitas dessas comunidades, mas sem esquecer de elogiar a devoção das mulheres religiosas. A série mostra a beleza e o companheirismo que existem na religião, mas também a dor que tais crenças infligem em mulheres que devotam sua existência a tais estilos de vida. O subjetivismo da vivência feminina dentro da comunidade ortodoxa fica muito claro quando Esty, após mais uma tentativa dolorosa de dormir com o marido, o questiona sobre o seu próprio papel na relação sexual; o Talmude, um dos livros sagrados para os judeus, garante que é papel do marido fazer com que a esposa sinta prazer durante o sexo — mas quando Esty usa esse argumento com Yanky, ele a repreende duramente, lembrando que mulheres não têm permissão para ler o Talmude. Quando, afinal, essas diferenças tornam-se inconciliáveis e Esty assume que eles nunca concordarão quanto a isso, o que se segue é uma cena de estupro marital, em que Esty chora de dor enquanto seu marido goza de prazer.

A maternidade também é uma parte importante da série, tanto graças ao vazio que a ausência da mãe criou na vida de Esty quanto os próprios medos da jovem de que ela não vai conseguir ser uma boa mãe pelo mesmo motivo. Ainda que não seja dito claramente, essa jornada de Esty para encontrar a si mesma não é apenas um esclarecimento para ela, mas também para refletir acerca do que é melhor para seu bebê. Sua mãe não está presente exatamente porque estava insatisfeita com a vida dentro da comunidade — e Esty precisa saber como é a vida do lado de fora antes mesmo de ser mãe. Essa perspectiva é particularmente pungente no judaísmo, uma religião com descendência matrilinear — em teoria, só é judeu quem tem mãe judia. A memória inspirada da mãe, e o auxílio da professora de piano, outra figura materna em sua vida, fazem Esty perceber que existe vida fora de Williamsburg, e se privar dessa experiência tornaria sua vida insuficiente.

Isso é particularmente importante quando se pensa no papel da mulher na religião judaica para além das representações terrenas. Por ser uma religião que encoraja a discussão e o diálogo entre seus participantes, sectos mais modernos e reformistas do judaísmo aceitam a interpretação de Deus como um ser feminino, e, tanto em literaturas rabínicas quanto em métodos Cabalísticos, Deus é descrito como uma entidade com atributos de mulher — a Shekhinah. Em comunidades ortodoxas, os últimos 20 anos de atividades viram o número de mulheres realizando papéis eclesiásticos crescerem, e o crescimento de um feminismo judaico, desde os anos 1970, mostra a importância de aliar teologia com estudos de gênero, e, principalmente, o impacto das práticas religiosas na vivência das mulheres e na sua visão de Deus.

O ponto alto de Nada Ortodoxa, sem dúvida, é sua representação da comunidade judaica ortodoxa. A série, roteirizada e dirigida por mulheres judias, leva a sério seu papel na representação fiel da comunidade judaica, de uma maneira que ainda é raro na TV, acostumada a relativizar ou diminuir papéis religiosos. Os atores, todos também judeus, são orientados a interpretar seus personagens levando em consideração que eles, primeiramente, são seres humanos independente da religião, e que seus problemas têm diferentes facetas e nuances, não necessariamente ligadas a seu restrito retrato de fé.

Há um estigma acerca da representação de comunidades religiosas “extremas” na mídia, e a temática, que parece ser a mais adotada por roteiristas e diretores, é ressaltar a crueldade de tais espaços, sem lembrar os possíveis aspectos positivos de crescer nesses ambientes. Nada Ortodoxa, mesmo levando em consideração as diversas maneiras em que crescer numa comunidade Satmar afetou negativamente a experiência de Esty, também demonstra como as sociedades religiosas atuam quase como um mundo separado dentro de outro mundo, sob uma jurisdição própria, e sem esquecer que, para cada pessoa ruim, também existem pessoas boas, compreensivas e com boas intenções.

Na vida de Esty, essas são muitas. Desde a avó que quer protegê-la, a tia que acredita estar fazendo o que é melhor para Esty ser bem-sucedida, ou até mesmo a mulher mais velha que dá aulas sobre casamento e sexo, e aconselha Esty sobre como melhorar sua relação. Até mesmo Yanky é representado de maneira clemente. Nem todos os membros da comunidade são como a sogra de Esty, ou como seu pai, ou até mesmo como Moishe e o rabino — e essa distinção é importante para a compreensão de que até mesmo uma comunidade que tem como objetivo a homogeneidade também é complexa e complicada, e sobretudo humana em todos os seus aspectos.

Nada Ortodoxa entende que a religião, especialmente a religião fundamentalista praticada em comunidades reclusas, molda a vida de um indivíduo completamente. Vai além de práticas e dias sagrados, e não é algo que o praticante pode somente abandonar sem remorso — a religião muda a forma como você interpreta o mundo e a si mesmo. Esty foge de casa, mas não abandona seus princípios e crenças imediatamente, e a série mostra isso.

O mundo que Esty encontra do lado de fora é completamente diferente de tudo o que ela já conheceu: homossexuais, muçulmanos, boates, casais afetuosos em público, sanduíches de presunto, tatuagens, biquínis — o público vê pelos olhos dela como se acostumar com isso pode ser estranho e diferente, e embarcamos numa jornada que permite perceber como ela, aos poucos, compreende as diferentes formas de vida fora de Williamsburg. Ajuda, e muito, ter a companhia dos estudantes do conservatório, e a presença deles auxilia Esty a mergulhar de cabeça nesse novo estilo de vida.

A presença deles também indica a ironia da localização geográfica escolhida por Esty para sua libertação: em Berlim, ela é constantemente forçada a confrontar as lembranças do Holocausto (sua primeira experiência com os novos amigos é nadar em um lago vizinho ao complexo onde a ideia de usar câmaras de gás para matar judeus foi desenvolvida) — e a ligação dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial com a visão de fertilidade e sexualidade para os Satmars é inegável. Quem primeiro diz isso é Yael, uma das estudantes do reformatório que, no início, parece rivalizar com Esty: “Os homens estudam o Talmude e as mulheres são máquinas de fazer bebê”. Ainda que essa percepção seja extremamente simplista, não é tão longe da realidade, mas, com indignação, Esty esclarece: “Nós estamos reconstruindo os 6 milhões perdidos”. Essa noção esclarece perfeitamente o sentimento de culpa pós-Holocausto que permeia as relações na sociedade Satmar: por que as mulheres se casam tão cedo e por que há tanta importância em multiplicar-se imediatamente.

Falando em Yael, a presença dela na série é um contraponto essencial para se entender os diferentes ramos do Judaísmo. Yael é de Israel e, aparentemente, uma judia reformista. Apesar de ambas estarem ligadas pela raiz de sua religião, não poderiam ser mais diferentes: Yael vem de uma cultura que não é tão restritiva, e sim mais aberta à diversidade de identidades, que interpreta os livros sagrados não como regras e privações, mas como possíveis liberdades. Yael veste roupas curtas enquanto Esty prefere saias longas e, mais tarde, calças; Yael parece muito confortável em sua sexualidade, enquanto Esty demora, de forma compreensível, a entender o sexo e a atração. Yael tem uma personalidade petulante e chamativa, enquanto os silêncios de Esty dizem mais que suas palavras. As diferenças entre elas originam-se de backgrounds totalmente diferentes sob o guarda-chuva compartilhado do Judaísmo, e até mesmo contraditórios — os Satmars, assim como outros grupos de judeus ortodoxos, são contra a criação de Israel, sob a justificativa de que o possível nacionalismo iria se sobrepor ao fervor religioso.

Os conflitos entre elas são tão sutis e bem feitos que é difícil para alguém que não tem tanta familiaridade com o judaísmo perceber. Aliás, boa parte do programa é assim. Para telespectadores menos letrados no universo judaico, comentários sobre Israel e sobre o Holocausto podem passar despercebidos, assim como o significado presente em todos os costumes da comunidade de Williamsburg — logo nos primeiros minutos da série, um Eruv rompido é mencionado, e quem não sabe que o Eruv é uma linha colocada ao redor de algumas comunidades ortodoxas que permite a realização de atividades proibidas durante o Sabá (como transportar objetos de uma localidade privada para um domínio público), não entende como a falta dele, pelo menos para a Esty do início da série, é como a materialização de sua prisão.

Nada Ortodoxa

Mas Nada Ortodoxa também faz um bom trabalho em retratar o paradoxo que Esty sente pela comunidade. Os flashbacks ajudam tanto a entender por que Esty sente aversão pela vivência em Williamsburg quanto o porquê é tão difícil se desvencilhar: não apenas eles são incrivelmente bem feitos, com cuidados tão extremos à tradições e figurinos que representam de maneira fiel as cerimônias e o dia a dia da comunidade, mas eles também evocam uma sensação de identidade e congregação que torna a jornada de Esty ainda mais complicada. Quando se tem todos os elementos necessários para ser alguém dentro da comunidade, a escolha de abandoná-la e criar suas próprias noções pode tornar-se complicada e relutante.

Essa sensação de dificuldade em dissociar-se completamente de Williamsburg chega em seu ápice quando, durante as audições para entrar no conservatório, ao perceber que a música em alemão que havia cantado primeiramente não seria suficiente, Esty decide cantar “Mi Bon Siach”, uma música em iídiche de tradição ortodoxa, a mesma música cantada em seu casamento. Em um sêder de Pessach, um dos anciãos da comunidade usa a história de escape dos judeus do Egito para relembrar o sofrimento histórico desse povo. A lição de tal história é de que, quando os judeus se assimilam a comunidades maiores e abdicam de seus rituais, eles são punidos. “Quando esquecemos quem somos, convidamos a raiva de Deus.” Quando Esty, em um momento de turbulência, se volta para uma música tradicional de seu povo, é a prova de que sua existência e o que ela viveu na comunidade de Williamsburg estão para sempre entrelaçados, não importa o quanto ela rejeite sua criação.

Tal música ortodoxa é uma verdade profunda que existe dentro de Esty, mesmo com a atração que ela sente pelo mundo secular, mesmo com sua fuga desesperada da comunidade onde essas músicas são cantadas. Isso é importante para compreender que Esty pode viver fora de Williamsburg sem necessariamente assimilar conceitos que resultariam em sua punição, e que a rejeição da comunidade não significa a rejeição da sua fé. Esse é um dos artifícios narrativos mais poderosos da série: Esty encontrando sua própria voz, seja ela literal ou figurativa, deixando para trás seu passado a fim de construir um novo futuro, mas levando na bagagem aquilo de melhor que absorveu outrora. Nada Ortodoxa, de maneira sutil, mas brilhante, celebra sua capacidade de criar um novo mundo sob os seus próprios termos, onde manter sua fé sem sucumbir às enormes pressões sociais aplicadas nas mulheres pode existir.

Contudo, é importante perceber, também, que as experiências de Esty não parecem ser universais, e que acompanhamos somente sua perspectiva (e, mais tarde, flashes breves da vida de sua mãe). Esty não pertence àquela comunidade e deixa isso bem claro; quanto às outras mulheres, o telespectador é incapaz de tirar conclusões satisfatórias pois elas parecem felizes e confortáveis com o destino de suas vidas. Temos que manter em perspectiva que assistimos a série sob os olhos de uma mulher que não se identifica na comunidade em que vive e, por isso, precisa encontrar o seu próprio caminho, e tentar supor a vivência das outras mulheres pode levar o telespectador a um caminho perigoso.

Geralmente, comunidades de judeus ortodoxos ou de qualquer grupo religioso cujas tradições sejam imersivas e reclusas são retratadas na TV de uma forma negativa, com praticantes agressivos, intolerantes e puramente maus. Aquilo que é visto como negativo, porém, vem de uma perspectiva ocidental, e raramente são exploradas e criticadas no contexto da própria comunidade. Para a antropologia, esse conceito de que há apenas uma forma de viver correta ou que todas as vivências devem ser analisadas partindo de um princípio universal se chama etnocentrismo, e a procura para entender o que cada valor significada dentro de cada crença individual constitui o relativismo cultural. O guarda-chuva do relativismo cultural, porém, não significa que críticas às culturas não podem ser feitas, especialmente quando violações aos direitos e liberdades humanas são praticadas. Contudo, usar perspectivas etnocêntricas para demonizar ou retratar unidimensionalmente uma comunidade que, durante muitos anos, foi oprimida e perseguida só alimenta ainda mais perspectivas preconceituosas.

Nada Ortodoxa

Infelizmente, Nada Ortodoxa acaba por propagar sutilmente alguns preconceitos relacionados à comunidade de judeus ortodoxos. Desde que a série foi lançada, no final de março, ativistas judeus nas redes sociais e analistas midiáticos teceram duras críticas à representação da comunidade Satmar feita pela série. Imediatamente após o lançamento do programa, uma jornalista judia que havia, também, abandonado sua comunidade Satmar, repudiou a representação vilanesca de personagens religiosos, assim como os pequenos detalhes que a série erra em representar acerca dos judeus Satmar que, quando juntos, acabam por revelar a falta de preocupação com as nuances, e, principalmente, a maneira como a série não parece desafiar seus telespectadores a ler os judeus como personagens multifacetados, mas sim acaba por cair na armadilha ao alimentar ideias preconcebidas acerca dessa comunidade, numa hierarquia que os coloca como os “caras ruins” e assegura ao telespectador que, por não fazer parte daquele universo, ele é um dos “bonzinhos”.

Talvez a maior crítica quanto à série é como ela faz parecer que todos os problemas de Esty existem por causa de sua comunidade religiosa. Seus problemas emocionais, sua bagagem familiar, sua inadequação quanto ao sexo — todos esses conflitos são culpa de sua comunidade opressora, e parecem ser magicamente resolvidos quando Esty chega em Berlim e torna-se uma pessoa diferente. É importante entender que as dificuldades que Esty encara — um pai alcoólatra, uma mãe ausente, um marido que tem suas próprias pressões familiares, mentalidades de cidade pequena, uma sogra autoritária, vaginismo (uma doença real que traz diversas complicações) — não são específicas ao judaísmo ortodoxo. Ao longo do programa, conhecemos várias outras mulheres que parecem confortáveis e em paz com suas vidas, sem intenção de escapar de Williamsburg, e associar intrinsecamente os problemas de Esty à sua religião ignora que, na realidade, eles são problemas porque Esty não pertence àquele lugar.

Para piorar tudo, a transição de Esty de Williamsburg para Berlim é feita de forma apressada e sem tomar o devido cuidado para representar de forma fiel uma jovem que, por vinte anos, morou numa comunidade de judeus ortodoxos cujas tradições são a única coisa que ela conhece. Não é crível que, em menos de uma semana, em alguns momentos, menos de um dia, Esty tenha deixado de ser uma mulher completamente imersa na sua comunidade ortodoxa e tornado-se alguém que come presunto, usa calças jeans, frequenta boates e tem transas de uma noite com o amigo. Isso simplesmente não é o que as pessoas fazem, mesmo aquelas com motivos legítimos para escapar de suas comunidades.

Na vida real, a passagem de uma vida chassídica para uma vida secular é turbulenta e raramente tão glamourizada quanto a de Esty. O abandono de qualquer comunidade centrada na comunhão da fé tem efeitos traumáticos, incluindo a necessidade de compreender sua nova relação com Deus e sobre como conciliar sua existência com a independência. Uma reportagem do New York Times sobre judeus que abandonam suas comunidades ortodoxas revelou que é comum que esses indivíduos sofram com ideias pré-estabelecidas sobre a punição de Deus, o que pode levá-los a uma espiral de culpa, ansiedade e depressão. Outros estudos ainda revelam que, em indivíduos OTD, o número de suicídios é desproporcionalmente alto. É claro que seria ótimo se todas as transições fossem tão tranquilas quanto a de Esty, mas a falha na série em não retratar esse momento de forma genuinamente verdadeira só serve para alimentar ainda mais a narrativa de que a saída para Esty resolver seus problemas era abandonar Williamsburg.

A série falha em reconhecer a diferença entre dilemas causados pela comunidade e dilemas que existem dentro da comunidade, e as tribulações de Esty parecem cair na segunda alternativa. Os problemas de Esty são resolvidos tão rapidamente que cabe ao telespectador culpar inteiramente a comunidade de Williamsburg, e não entender as diversas camadas existentes que contribuíram para as dificuldades enfrentadas por ela. Quando a série assume esse tipo de narrativa, acaba navegando numa linha tênue de anti-ortodoxia (o que parece não ser o que os showrunners queriam, já que a série é atuada, escrita e produzida por judeus), que parece ser uma estratégia feita para ser comprada por um público que já espera isso.

Falhas similares podem ser identificadas em filmes como Desobedience e o documentário da Netflix One of Us. Ainda que sejam narrativas com judeus ortodoxos como protagonistas, ambas falham ao representar essa comunidade de forma estereotipada, com personagens que nem sempre parecem humanos, mas sim como fantoches irreais e flácidos. Uma série sobre judaísmo ortodoxo que é incrivelmente apoiada por judeus ortodoxos da vida real é Shtisel, que está também na Netflix, e retrata a relação familiar dentro dos moldes ortodoxos de forma realista e complexa, sem perdoar os abusos que existem dentro da religião, mas sem demonizar seus praticantes, fazendo com que o telespectador sinta-se inteiramente pertencente àquela família e àquela cultura.

Nada Ortodoxa é uma obra de arte contraditória. Ao mesmo tempo que celebra a comunhão encontrada na fé judaica, falha em não representar corretamente a vivência nessas comunidades. Apresenta uma excelente narrativa de libertação feminina, mas faz isso de forma tão apressada que, às vezes, parece distante da realidade. Talvez todos os problemas da série pudessem ser resolvidos com um roteiro mais atento ou mais episódios, mas a sensação que fica é a de que as controvérsias e hipocrisias fazem parte da série e da narrativa contada, como se os próprios sentimentos de Esty acerca da sua comunidade fossem conflitantes, como se ela tivesse apressado os passos de sua trajetória de propósito.

A série é boa pelos temas que evoca. Papéis de gênero, liberdade feminina, trauma cultural, casamentos arranjados, vício, culpa e depressão. Os quatro episódios navegam pelas táticas feitas pela comunidade de Williamsburg para controlar aqueles que ainda moram ali e alienar aqueles que decidem escapar, e os melhores momentos são quando percebemos a coragem de Esty: sua coragem em partir, em criar a própria verdade, em escolher a si mesma após decidir que não pertencia a Williamsburg.

Há beleza em descobrir de quais maneiras mulheres como Esty são capazes de enfrentar adversidades e encontrar liberdade tanto nas ruas de Williamsburg quanto nas de Berlim. Nada Ortodoxa é uma história de autodescoberta que celebra a fuga, o alívio de perceber que existe um mundo do lado de fora e a alegria de viver a própria vida ao mesmo tempo que também reconhece a tristeza e o peso em se dar conta da vida que você ainda não viveu.

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