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Séries turcas no Brasil

Em 2014, a emissora chilena Mega levou ao ar a produção turca Binbir Gece, com o título de Las Mil y Una Noches. Transmitida originalmente entre 2006 e 2009, a novela conta a história de Sherazade (Bergüzar Korel), uma viúva, mãe de um menino que está em tratamento contra a leucemia. Após seus ex-sogros negarem ajuda, Sherazade pede um empréstimo para seu chefe que concorda com a condição de passar uma noite com ela. Com a clássica “até onde uma mãe é capaz de ir por um filho” como gancho, o enredo melodramático conquistou o público e se tornou o programa mais visto da televisão chilena daquele ano, abrindo as portas para as produções turcas no mercado televisivo latino-americano.

A produção das dizis

Conhecidas como dizis, as séries turcas são produzidas em um estilo diferente do que estamos acostumadas: as emissoras não gravam com antecedência os episódios, ou seja, os episódios são gravados em uma semana e exibidos na próxima. É como produzir um filme por semana, já que cada episódio costuma ter aproximadamente 2 horas de duração, o que exige um ritmo de trabalho corrido para todos da equipe. Esse sistema de produção funciona assim devido aos custos de gravação — cada episódio pode chegar a custar 250 mil euros — e dos riscos de cancelamento, pois séries que não conseguem bons números de audiência são encerradas às pressas.

Embora o conceito de “obra aberta” não seja nenhuma novidade para quem acompanha a teledramaturgia brasileira, esse sistema de gravação acaba interferindo diretamente no enredo das tramas. Os roteiristas precisam estar prontos para encerrar a produção de uma semana para outra, achar soluções mirabolantes em casos de afastamento por doenças ou quando os atores saem das produções. Na série Sefirin Kizi (2019), em português A Filha do Embaixador, Neslihan Atagül, que interpretava a personagem que dava título à atração, precisou deixar a série por recomendações médicas. Então, de um episódio para o outro, os roteiristas mataram a personagem e tiveram que introduzir um novo interesse romântico para o “mocinho”. Se de início, a história girava em torno dos traumas e das tentativas da “filha do embaixador” de encontrar a felicidade, no final, a novela usou o “ele será capaz de amar alguém de novo” para reiniciar a história.

Parte da receita que paga as séries vem do mercado publicitário, logo os índices de audiência são fundamentais para manter uma série no ar. Alguns canais acabam cancelando mais séries que outros, porém, a sombra do cancelamento está sempre presente. Para se ter uma ideia, de acordo com o El País, por ano a Turquia produz entre 70 e 80 séries e somente metade delas consegue chegar ao final da temporada. Essa questão acaba virando uma preocupação para quem acompanha as dizis fora da Turquia, já que o sucesso internacional de uma série não implica que a produção conseguirá chegar ao final da temporada ou ser renovada para o próximo ano, pois os parâmetros são baseados na audiência local.

Apesar das dizis com mais episódios parecerem mais atraentes para canais estrangeiros  por conta da relação “números de capítulos x tempo no ar”, séries canceladas e com poucos episódios encontram seu espaço no mercado internacional. Yeni Hayat (2020), cancelada com oito episódios, entrou no catálogo da GloboPlay e Bay Yanlis (2020), encerrada com 14 episódios, foi vendida para vários países, como a Espanha.

Em uma novela yo me transformo!

Atrás apenas dos Estados Unidos, a Turquia é o segundo país que mais exporta suas produções televisivas. Apesar de já serem comercializadas anteriormente, o sucesso das séries turcas em nível mundial começou a se consolidar a partir de 2008, com os bons resultados da série Gümüs no mundo árabe e a chegada das séries turcas na região dos Balcãs. As produções turcas conquistaram os países da América Latina, na década de 2010, após o sucesso da novela Binbir Gece, com o título de Las Mil y Una Noches, no Chile.

No entanto, ao chegarem nas emissoras latino-americanas ou nos streamings, a estrutura das produções costuma sofrer alterações. Para “transformar” a ficção televisiva turca em telenovela os episódios são encurtados, ou seja, um episódio é cortado em, mais ou menos, 3 ou 4 capítulos e a sua exibição torna-se quase diária. As séries turcas que passaram na Band, como Mil e Uma Noites, Sila, Ezel e Fatmagul, receberam músicas temas de abertura que, por vezes, faziam o papel de música tema do casal protagonista, pois, as dizis não costumam ter trilha sonora cantada, somente instrumental.

Transformadas em telenovelas, as dizis foram exibidas no Brasil pela Rede Bandeirantes entre os anos de 2015 e 2019. De início as novelas turcas conquistaram bons números, com Fatmagul: A Força do Amor chegando a marcar picos de cinco pontos de audiência, porém, os bons resultados não se mantiveram e a emissora suspendeu a exibição da novela Minha Vida (O Hayat Benim). Assim,  com pouco espaço na TV aberta, as séries turcas conquistaram espaço nos serviços de streamings, como GloboPlay e HBO, mas, para além disso, fãs criaram redes paralelas para o consumo das produções. A partir de grupos em redes sociais, episódios das séries, em seu formato original, são legendados e compartilhados.

Estudos de recepção sobre as dizis no Brasil, apontam que o público dessas produções são em sua maioria mais maduro e com “tendências conservadoras”. Assim, parte do interesse sobre as dizis é justificada pelos enredos resgatarem elementos que estariam esquecidos nas novelas brasileiras, como os “valores familiares” e o romantismo. Ou seja, em comparação com as  produções nacionais, as tramas turcas seriam menos “vulgares”, já que (quase) não há cenas de sexo e nudez. Apesar desse conservadorismo sexual, é interessante perceber a expectativa e o entusiasmo pelas “primeiras vezes” do casal, como as aguardadas cenas de beijo.

Outro ponto importante sobre as dizis é que mesmo sendo consideradas “mais leves” por parte da audiência, a violência é algo que permeia as narrativas. Cenas de violência psicológica, estupro e agressões não são raras. É claro que as telenovelas não estão alheias à realidade e questões sociais costumam ser incorporadas nas narrativas seja como trama principal ou não. No entanto, o que incomoda é a falta de problematização acerca da  violência de gênero e a naturalização dela dentro das tramas. As respostas do público sobre isso são bem diversas, desde o entendimento da violência como recurso narrativo até deixar de assistir às séries.

Quando algo faz sucesso ou fracassa, é natural nos perguntarmos os motivos que levaram a esse resultado. Assim, embora o conservadorismo seja um dos elementos que explicam o êxito das dizis, não podemos deixar de lado que as séries turcas também apresentam paisagens e elementos culturais diferentes dos nossos, o que pode atuar como um fator de atração. Com histórias “universais” e atores belíssimos, no final das contas, a teledramaturgia turca conquista o público por saber construir expectativa através da lentidão e do sentimentalismo, fisgando o público com altas doses de drama.


Referências:

FERREIRA, Gabrielle Camille Alves. A descoberta da Turquia pelos latino-americanos: a recepção da ficção televisiva turca no Brasil e no Uruguai. Dissertação (Mestrado) – Curso de Comunicação, Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Setor de Artes, Comunicação e Design, Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2021.

IMARAL, Pricyla Weber. Violência de gênero: recepção das telenovelas turcas no Brasil. Revista Eletrônica de Ciências Sociais, Juiz de Fora, n. 33, 2021.

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