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Que culpa teve Fatmagul?

Ao longo de 2019, foram registradas 266.310 ocorrências de lesão corporal dolosa contra mulheres, 8.068 casos de importunação sexual e 66.123 boletins de ocorrência de estupro e estupro de vulnerável. E as telenovelas, assim como as demais produções audiovisuais, não estão alheias a essa realidade social e institucional já que, uma das principais características da teledramaturgia atual é abordar questões sociais nas narrativas. Desta forma, volta e meia, a teledramaturgia brasileira traz tramas que abordam a violência contra a mulher. Nesse sentido, é interessante notar que quase nunca esse é a trama principal da história. Ou seja, na maioria das vezes, essas temáticas são destinadas aos núcleos coadjuvantes, como em Mulheres Apaixonadas (2003), Fina Estampa (2011) e Amor de Mãe (2019).

Atenção: o texto contém spoilers!

Isto posto, Fatmagul, produção turca exibida pela Band em formato de telenovela entre os anos de 2015 e 2016, é um ponto fora da curva das narrativas novelescas veiculadas na TV aberta brasileira, uma vez que o folhetim narra a busca por justiça de Fatmagül Ketenci (Beren Saat), uma jovem vítima de um estupro coletivo. É a partir dessa premissa que toda a trama se desenvolve, em outras palavras: Fatmagul é uma novela sobre estupro.

Enquanto escrevia esse texto, Erick Brêtas, diretor geral da Globoplay, anunciou na CCXP Worlds que o serviço de streaming da emissora carioca irá incluir produções turcas em seu catálogo, sendo o primeiro título anunciado, justamente, Fatmagul. A produção que chegará na plataforma em 2021, além de ter conseguido bons números de audiência quando exibida pela Band, foi um sucesso em outros países da América Latina, como o Chile e o Peru. Apesar de diversas tramas turcas já terem sido veiculadas no Brasil, a Globoplay irá apresentar essas produções a um grande público e, tendo isso em vista, considero a escolha de Fatmagul precisa, já que, mesmo com as diferenças culturais, a história da protagonista (infelizmente) é “familiar”.

Fatmagul Ketenci é uma jovem camponesa que vive com o irmão, a cunhada e o sobrinho em um pequeno vilarejo na costa do Mar Egeu. No mesmo vilarejo também vive Kerim Ilgaz (Engin Akyurek), um ferreiro, que após a morte da mãe e o abandono paterno, foi adotado por Meryem Aksoy (Sumru Yavrucuk), a curandeira da região. Em razão do seu noivado, Selim Yaşaran (Engin Öztürk), filho de uma influente família, se reúne com Kerim, Vural (Buğra Gülsoy) e Erdogan (Kaan Taşaner), seus amigos de infância. Após a festa de compromisso, o grupo de amigos resolve sair para “comemorar” e, sob efeito de álcool e drogas, encontram Fatmagul. A protagonista, que estava indo ao encontro de Mustafá (Fırat Çelik), seu noivo, é — em uma cena que impressiona pela sensação de imobilidade — “importunada” pelos quatro e estuprada por três deles. Diferentemente da obra literária que inspira a telenovela, Kerim não é um dos estupradores da jovem, mas sim cúmplice (o que não torna nada melhor). Enquanto ele não se lembra da noite do crime, a última pessoa que a protagonista viu antes de desmaiar foi o Kerim — portanto, para a protagonista ele é um de seus agressores.

Fatmagul

Tomando consciência do ocorrido, as famílias do Selim, Erdogan e Vural negociam com Mukaddes (Esra Dermancıoğlu), cunhada de Fatmagul, uma “solução para o problema” que não implique, obviamente, no julgamento dos criminosos. Desta forma, motivado pela culpa e pressionado pelos Yaşaran, Kerim, que não se lembra da noite do crime e achando que é um dos estupradores da jovem, aceita se casar com Fatmagul. Abandonada por seu noivo, a protagonista é coagida a retirar a queixa e, para “limpar” sua honra e evitar uma tragédia, se casa com Kerim. Além disso, para evitar retaliações no vilarejo, Fatmagul é obrigada a se mudar com seus parentes, Meryem e seu odiado marido para Istambul.

Baseada no livro de Vedat Türkali, a adaptação para as telinhas contou com o texto da dupla feminina Ece Yörenç e Melek Gençoğlu e com a direção da renomada Hilal Saral. Escrita e dirigida por mulheres, a novela possui um forte teor de denúncia, uma vez que expõe o processo de silenciamento das vítimas de violência. Desta maneira, a narrativa aborda a denominada “cultura do estupro”, uma vez que, a engrenagem social busca responsabilizar a mulher pela agressão sofrida, ou seja, os sentimentos de vergonha, medo e culpa são atribuídos à vítima e não aos criminosos.

Tendo em vista a violência sofrida pela personagem, a novela não deixa de abordar os danos físicos e, principalmente, psicológicos ocasionados por um estupro ou assédio. Assim como diversas mulheres na vida real, Fatmagul sofre de transtornos relacionados ao trauma da violência sexual, como angústia intensa, efeitos negativos sobre o humor, memórias intrusivas sobre o acontecido, pesadelos, insônia e dissociação, isto é, sensação de desligamento de si mesmo, entorpecimento. Inicialmente, a protagonista recusa-se a buscar ajuda psicológica, pois teme ser desacreditada e reviver a violência sofrida. Sob esse aspecto, Meryem atua como uma figura materna para Fatmagul, acolhendo-a e incentivando-a, tanto a denunciar os criminosos (incluindo Kerim) quanto a aceitar assistência psicológica. Nesse sentido, a sequência em que a personagem admite, nos braços de Meryem, que precisa de ajuda é catártica.

Desta forma, a produção turca destaca a importância do acompanhamento psicológico às vítimas de estupro, uma vez que a partir das sessões de terapia percebemos a diminuição do sofrimento psíquico da personagem e consequentemente, uma melhora na sua qualidade de vida. E com o desenvolvimento do relacionamento entre Fatmagul e Kerim, além das sessões individuais, ambos começam a frequentar a terapia juntos. É isso mesmo que você está pensando: no decorrer da novela os protagonistas se apaixonam. Antes de qualquer coisa, é importante destacar que, apesar da relação dos personagens acabar sendo romantizada, o roteiro não esquece o crime cometido por Kerim contra Fatmagul, deixando claro a culpa do personagem. Nesse viés, as autoras da novela são didáticas ao explicar que mesmo o protagonista não sendo um dos estupradores da jovem, o fato dele ter presenciado o crime e não ter feito nada para impedi-lo, tendo a potência de fazê-lo, o torna cúmplice e consequentemente, culpado.

Fatmagul

A maioria das telenovelas conta uma grande história de amor. Um amor, muitas vezes, utópico que supera tudo — diferenças culturais, classes sociais e, principalmente, o tempo. Nessa perspectiva, as novelas se aproximam dos contos de fada, uma vez que o telespectador sempre espera o “e eles viveram felizes para sempre”. Fatmagul não escapa dessa premissa, entretanto a história de amor dos protagonistas é diferente do usual, já que o amor entre eles é construído de maneira sutil, aos poucos, o que, pelo teor da narrativa, faz completo sentido. Ou seja, a trama da novela foge do clássico “encontro amoroso”, no qual, por coincidência do destino, o casal de protagonistas é arrebatado por um sentimento recíproco urgente, geralmente à primeira vista, e luta para a concretização desse amor.

Com isso em mente, compreendo que a relação de Kerim e Fatmagul é dividida fundamentalmente em dois momentos. O primeiro momento é marcado pelas tentativas do “mocinho” de conseguir o perdão de Fatmagul, deste modo, a dor da protagonista é evidenciada, principalmente, nas suas interações com o personagem. Contudo, ao desenrolar dessa fase, alguns acontecimentos acabam unindo-os, gerando uma confiança entre eles. Já na segunda fase, com uma relação de confiança estabelecida, percebe-se uma maior aproximação entre o casal de protagonistas, uma cumplicidade, que acaba se tornando um amor recíproco. Todavia, a tônica da novela continua sendo a busca por justiça, o processo de cura de Fatmagul e a culpa do protagonista.

Vale destacar que essas duas fases seriam separadas pela sequência em que a protagonista defende e escolhe Kerim em oposição à Mustafá. Essa cena é emblemática porque as “decisões” de Fatmagul após o crime foram tomadas com o intuito de proteger Mustafá. Ela retira a queixa e se casa com Kerim porque os Yaşaran e Mukaddes a convencem de que essa é a única maneira para evitar que seu noivo “lave com sangue” sua honra e, como efeito, vá preso ou termine morto. Sobre essa questão, é significativo mencionar que, durante muito tempo, o estupro não era considerado um crime contra a mulher mas sim contra o pai ou marido da vítima — em algumas regiões do mundo isto continua acontecendo. Ou seja, a mulher passa por um processo de desumanização, no qual é transformada em um objeto, um patrimônio. Dito isto, Mustafá está furioso não porque sua noiva foi estuprada e sim porque alguém “pegou” o que lhe pertencia (Fatmagul). Portanto, ao deixar seu antigo noivo, Fatmagul finda os antigos laços e demonstra ter confiança em Kerim. Assim, a partir dessa cena fica estabelecido o vínculo entre o casal principal e a impossibilidade de conciliação entre Fatmagul e Mustafá, uma vez que a derrocada moral do personagem o afasta da protagonista.

Apesar disso, particularmente e por motivos que considero óbvios, acho que esse casal não deveria existir. Kerim, que já havia visto Fatmagul antes da noite do crime, apresenta desde o primeiro contato um deslumbramento por ela, uma curiosidade — que pode ser entendido como “amor à primeira vista”. No entanto, esse sentimento não é correspondido pela personagem durante boa parte da trama. Nesse sentido, o amor do “mocinho” se assemelha por quase metade da narrativa ao amor vilanesco, um sentimento de mão única, não recíproco. Além disso, em algumas situações, Kerim tem rompantes de agressividade, sendo o mais triste deles quando o rapaz destrói o vestido de noiva de Fatmagul — nessa fase da novela eles já se entendem como um casal. Acredito que, somado ao texto, o que contribui para o “sucesso” do casal é o carisma e a química entre Beren Saat e Engin Akyürek, ambos, de maneiras distintas, são carismáticos e entregam atuações regadas a muitas lágrimas e timidez.

Fatmagul

Desta forma, o amor romântico, tão caro às telenovelas, apesar de ocupar um lugar importante na trama, não é o fator principal da narrativa. No entanto, acredito que a escolha da emissora brasileira de alterar o título de Fatmagül’ün Suçu Ne? (em tradução livre: Que Culpa Tem Fatmagul?) para Fatmagul: A Força do Amor somado com a música escolhida como tema da atração, tenha direcionado o olhar do telespectador para o relacionamento romântico. Já que, por exemplo, o eu-lírico de “Chorar”, música tema da novela, interpretada pela dupla Bruno e Marrone, expressa os desejos do Kerim: “Tenho a esperança que essa dor/Mude e se transforme em teu perdão”. Espero que o serviço de streaming da Rede Globo não faça o mesmo.

Ao mesmo tempo em que repudio essas escolhas da emissora, pois considero que esses elementos colaboram para uma sensação de esvaziamento da luta de Fatmagul em prol da jornada de perdão do protagonista, entendo que as alterações partem da preocupação de como vender uma novela sobre estupro, já que não é comum na teledramaturgia brasileira abordar uma história sobre violência sexual como tema central de um folhetim. É mais fácil vender uma história de amor.

Dito isto, pode soar contraditório o fato de que quem dá o primeiro passo em relação a denúncia do crime é, justamente, o Kerim. Contudo, essa decisão do personagem não pode ser entendida meramente como uma “prova” do seu amor por Fatmagul, mas, principalmente, como resultado da crise de consciência do personagem. Após o protagonista depor na promotoria, Fatmagul é chamada para “prestar esclarecimentos”, neste momento, exercendo o poder de escolha que lhe foi retirado após o crime, a personagem confirma o relato de Kerim e questionada se irá prestar queixa Fatmagul diz: sim!

A partir da realização da denúncia e do período de investigação sobre o caso, a trama aborda os medos de uma mulher ao realizar uma denúncia de violência sexual. Fatmagul teme ser desacreditada, reviver a “experiência” (estar no mesmo local que seus agressores) e, principalmente, passar por todo o processo e “não dar em nada”. A luta por justiça de Fatmagul ganha notoriedade depois que uma jornalista se dispõe a contar a história da personagem. No entanto, antes da protagonista aceitar conversar com a jornalista, há uma discussão sobre o quão benéfico isso será para o caso e, sobretudo, para ela. Nesse sentido, os personagens divergem em suas opiniões, enquanto alguns acreditam que a exposição midiática pode protegê-la e pressionar o judiciário, outros consideram que essa exposição pode afetar negativamente o cotidiano da personagem, lhe causando mais danos.

Com a publicação sobre o caso, Fatmagul começa a receber apoio de diversas mulheres, principalmente de vítimas de violência. Ela não está mais sozinha. Aliás, durante as sessões do julgamento, há sempre um grupo de manifestantes que proferem “Nunca, nunca, você nunca estará sozinha”. É nesse contexto, que a protagonista conhece Ozge, uma vítima de violência, e sua família. A inclusão dessa personagem na história, além de estender a trama, aborda justamente o fato de que, em muitos casos, a violência sexual é cometida por familiares da vítima (pais, padrasto, cunhados, tios, marido, namorado etc). Essa breve abordagem vai de encontro aos clichês no que diz respeito as crenças populares sobre estupro, no qual a violência sempre acontece em “lugares perigosos”, geralmente à noite, por estupradores desconhecidos ou sob o efeito de drogas. Com isso, a narrativa pontua que o caso de Fatmagul corresponde ao imaginário popular sobre a violência sexual (e que pode acontecer/e acontece), ao mesmo tempo em que desvela o fato de que a maior parte dos estupros acontece em ambiente doméstico.

Fatmagul é uma história sensível e tem um dos melhores finais de telenovela que já assisti. A trama não cai na armadilha de passar a ideia de que um estupro pode trazer coisas boas para a vítima, tornando-a mais forte — o que não é verdade. Tendo isso em vista, uma questão espinhosa é o desenvolvimento da relação amorosa entre os protagonistas, já que ele pode ser interpretado como um “saldo positivo” do crime cometido contra Fatmagul — pois (supostamente) se o crime não tivesse ocorrido Fatmagul e Kerim não teriam se conhecido e encontrado o amor um no outro. Acredito que, cientes dessa ponta solta da trama, as autoras da novela respondem no capítulo final todos os “e ses” que rondam a trama: “E se o crime não tivesse acontecido?”, “E se Kerim não tivesse mostrado Fatmagul?”, “E se Fatmagul se casasse com Mustafá”, “E se…”. Outros caminhos eram possíveis (e melhores) para a concretização desse casal.

Além disso, a par de sua relevância social, a produção turca expõe diversos casos que, na época, estavam sendo julgados ou que tiveram veredictos “controversos” (para não dizer injustos). Com isso, além de denunciar os diversos tipos de violência contra a mulher e a impunidade dos agressores, a trama elucida que a luta travada por Fatmagul é a luta de milhares de mulheres — e que essa luta não se finda com a telenovela. Com todos os elementos apresentados, a trama propõe justamente que o telespectador responda, afinal “Que culpa teve Fatmagul?”.


QUINAN, Júlia Augusto. “Abuso ou sedução? Uma análise da cultura do estupro em novelas brasileiras”. Rio de Janeiro, 2016.

FERREIRA, Gabrielle Camille. “O fenômeno da ficção televisiva turca: a recepção da telenovela Fatmagul no Brasil”. Paraná, 2017.

MELO, Manuela Costa Bandeira de. “Amor e cotidiano ficcional: uma análise dos modelos de amor presentes nas telenovelas do Manoel Carlos”. São Paulo, 2011. Atlas da Violência, 14ª edição.

7 comentários

  1. Essa novela foi muito forte no tipo como luta pra todos acredita nela, porque parecia caso perdido, tadinha da fatmagul ter que se casar com um dos acusados pra calar a boca de uma comunidade. Eu gostei muito dessa novela.

  2. Texto perfeito,assisti Fatmagulun sucu ne legendado, uma história impactante,mudou minha vida e de algumas pessoas próxima.
    Gratidão pela sensibilidade e delicadeza das autoras e dedicação de Beren Saat e Engin 😘😘

  3. Nós estamos acostumados com novelas em que tudo deve terminar exatamente “do jeito certo”. Mas eu penso que a novela deve apenas contar uma história. É inusitado que a Fatmagül tenha terminado com o Kerim (como um casal de verdade), mas ainda assim, seria possível numa situação real, ainda mais numa situação em que o ex-noivo não deu apoio.
    Fatmagül foi a novela que eu mais gostei de ver na vida. É tudo MUITO delicado: trilha sonora que encaixa perfeitamente, os cenários paradisíacos, os olhares dos atores… Uma perfeição.

  4. Seu texto foi no ponto exato. A romantizaçao do estupro. A novela, uma das poucas na teledramaturgia mundial, a tocar no assunto a partir da estuprada. Realmente os números de violência contra a mulher são assustadores e para diminuir só a denúncia. Não existe amor/romance quando há estupro, violência doméstica, existe humilhação. Parabéns pelo texto. Por mais que se debruçam sobre o nosso cotidiano.

    1. Obrigada! Acho que a grande questão da novela, além da temática em si, é como ela trabalha o relacionamento do Kerim e da Fatmagul – mesmo romantizando, as autoras não passaram pano pro “mocinho” (o que é uma contradição, mas acaba funcionando). A trama é pontual ao tratar as diversas violências contra a mulher.

  5. Por acaso comecei a assistir Fatmagul, interessei e estou no meio da trama. Achei interessante seus comentários e verei até o fim. A cultura Turca e a brasileira, muitas diferenças, uma boa reflexão para a mídia nacional.

  6. Assisti duas vezes e estou assistindo novamente, por ser uma abordagem muito bem feita não com agressividade que tem o caso, mas pela paciência e companheirismo dos protagonistas em esperar o tempo apagar as cicatrizes.

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