Quando Taylor Swift lançou de surpresa seu segundo álbum, evermore, no finalzinho de 2020, quase imediatamente escolhi minha música favorita dessa leva, “no body, no crime”. A cantora e compositora conseguiu reunir em uma canção algumas das minhas coisas favoritas: uma história bem contada, um crime misterioso e as irmãs HAIM no country (acredite em mim, elas deveriam se apresentar mais nesse gênero). Embora não pareça, esse texto não é para falar de Taylor Swift ou evermore, mas sim sobre o Dicionário Agatha Christie de Venenos escrito por Kathryn Harkup e lançado no Brasil pela DarkSide Books com tradução de Camila Fernandes.
Durante a leitura, a música de Swift ficava ecoando na minha cabeça a cada página virada (e, eu juro, não me considero uma swiftie a ponto de ver coisas onde nada existe. Ainda.). O fato é que com essa canção e o mergulho no universo dos venenos usados por Agatha Christie em seus célebres romances de investigação, crime e mistério, é impossível não pensar no refrão “I think he did it but I just can’t prove it” — com a diferença de que, no universo de Christie, seja com Miss Marple ou Hercule Poirot, sempre é possível provar o crime e capturar os assassinos.
“Ela era contadora de histórias, artista do entretenimento e criadora de enigmas aparentemente insolúveis.”
O livro de Kathryn Harkup, dessa maneira, é um passeio por quatorze dos venenos mais usados pela Dama do Crime em seus romances, indo de substâncias famosas como arsênico, passando por outras menos propensas a serem usadas em assassinatos, como o fósforo, até chegar na insuspeita nicotina. Kathryn Harkup — química, escritora, e dona de um doutorado em que estudou um de seus elementos químicos favoritos, a fosfina — nos leva por um passeio pelo mundo da química, dos venenos e de alguns dos melhores trabalhos de Christie. Detentora do recorde de romancista de mais sucesso de todos os tempos, de acordo com o Guinness World Records, não é fácil passar um pente fino em todos os mais de oitenta romances de Agatha Christie para analisar substâncias e descrições, mas Kathryn Harkup toma essa tarefa para si e a executa de maneira exemplar.
Pode parecer estranho ler um “dicionário”, mas fãs, não apenas de Agatha Christie mas de histórias de crime em geral, além de aspirantes a escritor de livros de mistério, encontrarão uma mina de ouro no livro de Kathryn Harkup. Os quatorze venenos listados pela autora — acônito, arsênico, beladona, cianureto, cicuta, digitalina, eserina, estricnina, fósforo, nicotina, ópio, ricina, tálio e veronal — são explicados de maneira detalhada, passando pela história do elemento químico, como foi descoberto e quais seus usos, falando sobre a existência (ou não) de um antídoto em caso de envenenamento, além de indicação de casos reais que podem ter inspirado Agatha Christie em suas tramas. O caminho inverso — das histórias da Dama do Crime inspirando assassinatos — são menos comuns porém não completamente inexistentes.
Ao final de cada capítulo, Kathryn Harkup também aproveita para apontar como os venenos foram utilizados por Agatha Christie e se seu uso e descrição estavam corretos nas tramas. Para surpresa de ninguém, é claro que a Dama do Crime sabia muito bem o que estava fazendo no momento de definir quais venenos matariam seus personagens: além de cultivar um interesse pelo assunto, embora não no sentido criminal, como aponta Harkup, Agatha Christie foi enfermeira voluntária em um hospital durante a Primeira Guerra Mundial e trabalhou, mais tarde, em um dispensatório no mesmo lugar. O novo cargo exigia treinamento adicional, e Christie o concluiu, realizando também um exame, em 1917. De maneira a se preparar para o exame no Apothecaries Hall, Agatha Christie recebeu orientação em aspectos teóricos e práticos da química e da farmácia, conhecimento que ela viria a utilizar em seus romances vindouros. Em seu primeiro romance, O Misterioso Caso de Styles, publicado em 1920, a autora já mostrava suas aptidões em criar uma trama intrincada, repleta de pistas e suspeitos, além de demonstrar seu conhecimento a respeito da estricnina. Foi por conta desse romance que a Dama do Crime recebeu um de seus maiores elogios ao ser resenhada no Pharmaceutical Journal: “Este romance tem o raro mérito de estar corretamente escrito”, destacando que os usos, sintomas e descrição da morte por estricnina estavam absolutamente corretas.
Ainda que o Dicionário Agatha Christie de Venenos se utilize de muitos termos técnicos da química e por vezes fale de reações como trocas de íons de sódio e potássio, entre tantas outras, a leitura não é cansativa ou considerada difícil. Kathryn Harkup explica de maneira didática tudo o que precisamos saber sobre os venenos e ainda insere alguns comentários mordazes que fazem toda a diferença durante a leitura — o humor da autora é irônico, e eu me peguei rindo algumas vezes. Aconteceu, por exemplo, quando Harkup explica como a Academia Francesa de Medicina precisou ser convencida quanto ao valor do carvão ativado como antídoto quando menciona que os médicos franceses fizeram um perigoso experimento: um deles engoliu dez vezes a dose letal de estricnina misturada com carvão e aguardaram durante horas que algum sinal de envenenamento se manifestasse. Não houve nenhum.
“Como disse Paracelso (1493-1541), médico e fundador da toxicologia: ‘Há veneno em tudo, e não há nada sem veneno. A dose é que define o que é remédio ou veneno’. Christie entendia isso muito bem e empregava venenos incomuns e inesperados, como nicotina e ricina, com excelentes resultados.”
Um dos meus momentos favoritos em Dicionário Agatha Christie de Venenos fica por conta dos casos reais envolvendo os venenos listados por Kathryn Harkup. O caso envolvendo a estricnina, por exemplo, aconteceu apenas quatro anos após a publicação de O Misterioso Caso de Styles e contém semelhanças impressionantes com a trama criada por Agatha Christie ainda que não se possa precisar se o assassino, Jean-Pierre Vaquier, era fã dos romances da Dama do Crime. Um ponto que pode dividir opiniões a respeito do livro, no entanto, é o fato de Harkup elucidar os desfechos de alguns romances de maneira a explicar o usos dos venenos, mas nada que comprometa de maneira geral a leitura dos mesmos. Harkup não diz quem é o assassino, mas entra em alguns detalhes gerais das tramas para explicar as formas de agir dos venenos e como os detetives dos livros, Miss Marple, Hercule Poirot ou algum outro, descobrem os criminosos, mas a autora sempre tem o cuidado de avisar o que vem a seguir.
De maneira geral, o Dicionário Agatha Christie de Venenos é uma leitura recomendada para todos aqueles que têm algum interesse em crimes e mistérios, assim como quem adora química e biologia, e, claro, Agatha Christie. A edição da DarkSide Books tem um acabamento impecável com projeto gráfico todo inspirado em art déco, estilo contemporâneo a Agatha Christie, ilustrações de plantas e esquemas químicos, além de contar com uma tabela listando todos os romances e contos da Dama do Crime por ordem de publicação e a causa da morte em cada um deles. Há também um apêndice que demonstra as estruturas químicas das substâncias e elementos citados no decorrer do livro para o químico que mora dentro de você se deleitar. Embora fale de temas pesados como assassinatos e envenenamentos, misturando relatos reais com os escritos ficcionais de Christie, a leitura é tranquila e fluida. Kathryn Harkup faz um excelente trabalho e Christie, com certeza, ficaria encantada em ter um dicionário de venenos com seu próprio nome na capa.
“Everyone is a potential murderer — in everyone there arises from time to time the wish to kill — though not the will to kill.”
O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Editora DarkSide Books.
** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.
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O tanto que eu amei esse livro! Foi uma leitura bem divertida e fiquei surpresa de saber sobre algumas substâncias, como a nicotina. Eu sabia que ela era usada como inseticida por causa de um episódio de Arquivo X, mas saber que ela tinha tantas propriedades foi uma surpresa e tanto.