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Mulheres Brasileiras: um histórico de lutas

Mulheres sempre estiveram na luta por seus direitos. Mesmo quando estes eram praticamente inexistentes, quando a vitória parecia distante, elas estavam lá. Se hoje podemos ter um site como o Valkirias — e todas as nossas parceiras nesta Ação Nerd Feminista — é porque tivemos muitas mulheres que derrubaram os muros e pavimentaram os caminhos antes de nós.

Sem fugir do padrão que destinava às mulheres os cuidados do lar e demais trabalhos domésticos, não é de se surpreender que antes de conquistarem seus direitos, as mulheres brasileiras também tiveram que romper com esse ciclo que tentava lhes impor uma maneira retrógrada de viver. Desde ações que buscavam a Independência do Brasil à luta por uma educação ampla e de qualidade, lá estavam as brasileiras. Embora seja um aspecto pouco estudado, é fato que mulheres tiveram forte participação no processo de Independência — se lembra de Anita Garibaldi da Guerra dos Farrapos, de Hipólita Jacinta Teixeira de Mello da Inconfidência Mineira? E o que dizer de Maria Quitéria de Jesus, que ingressou nos batalhões nacionalistas nas guerras de Independência e lutou bravamente? Sempre estivemos onde era necessário; coragem e resistência nunca nos faltou.

Para conquistar o direito à educação, mulheres também tiveram que se unir. Ainda em meados do século XIX, poucas mulheres tinham acesso a instituições de ensino, e somente em 1827 algumas delas puderam ser matriculadas; o direito a cursar uma faculdade, só foi instituído em torno de 1870 e somente no ano de 1887 a primeira médica brasileira, Rita Lobato Freitas, se formaria. Assim como em diversos períodos da história, mulheres pioneiras e que foram “ousadas” o suficiente para se educar formalmente ou cursar uma universidade foram segregadas. De acordo com a doutora em Ciências Sociais, Carla Cristina Garcia, o ensino admitido, à época, para mulheres, ia apenas até a escola de 1º grau, nosso atual ensino fundamental. O ensino superior e técnico era restrito aos homens e, mesmo quando mulheres conseguiam ir adiante se tornando professoras, seus salários eram menores do que de seus colegas homens e, caso protestassem por igualdade, eram punidas inclusive com suspensão de pagamento. Nesse contexto destaca-se a figura de Nísia Floresta Augusta, pioneira na luta da alfabetização de meninas e fundadora da primeira escola voltada especialmente a elas, no Rio de Janeiro. Nísia também militava pelo direito das mulheres em outros âmbitos que não o escolar e foi responsável por traduzir e publicar o manifesto feminista de Mary Wollstonecraft, “Direito das Mulheres e Injustiças dos Homens”, além de livros autorais em que defendia o direito das mulheres, dos escravos e dos índios em uma época, quase no final do século XIX, em que era praticamente inimaginável ver uma mulher atuando em frentes tão importantes.

Se Nísia Floresta foi pioneira no ensino de meninas e defendia com garra a igualdade de direitos para mulheres e demais minorias, temos na figura de outras brasileiras o pulso firme que lutou pela abolição da escravatura, como, Chiquinha Gonzaga — musicista brasileira e primeira mulher a reger uma orquestra em nosso país — e Maria Amélia de Queiroz — professora pernambucana que advogava a favor do fim da escravidão e, em outra vertente, do divórcio e contra o sistema patriarcal que dominava as famílias brasileiras. Ambas tiveram um papel importante na luta abolicionista, desde instigar o pensamento em seu círculo de convívio a criar associações compostas apenas por mulheres que tinham como objetivo acabar com a escravatura por meios legais — como é o caso das Ave Libertas, associação fundada por Maria Amélia em 1884 a fim de combater as torturas, castigos e demais crueldades perpetradas contra os negros.

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Lutar pelos direitos das minorias sempre foi, também, uma bandeira do Movimento Sufragista, identificado por aquilo que a história batizou de a primeira onda feminista, e que surgiu em torno de 1897. Se o movimento teve início no final do século XIX, na Inglaterra, quando as mulheres se reuniram para reivindicar igualdade jurídica e política entre os sexos, não demorou para que as mesmas reivindicações soassem cada vez mais alto também no Brasil. Leolinda Daltro é a precursora do Movimento Sufragista brasileiro e passou boa parte da vida sendo espezinhada e ridicularizada por sua (nossa) luta. Professora, indianista e feminista, Leolinda liderou a criação do Partido Republicano Feminino antes mesmo de as mulheres terem direito ao voto, tentando demonstrar que elas também se interessavam pelo direcionamento do desenvolvimento econômico e político do país. Se hoje temos nosso direito ao voto, é porque Leolinda não desistiu mesmo quando era zombada por pessoas na rua e nos artigos dos jornais da época. Confiante na certeza de seus ideais, Leolinda não esmoreceu e continuou fiel àquilo em que acreditava.

Bertha Lutz, contemporânea de Leolinda, também participou diretamente na luta política que viria a resultar nas leis que deram direito de voto e igualdade de direitos políticos às mulheres entre as décadas de 1920 e 1930. Sua abordagem política se diferenciava da de Leolinda principalmente por conta de sua posição privilegiada, mesmo à época: filha de Adolfo Lutz, médico e cientista de renome, Bertha fazia parte da elite econômica e política do Brasil, estudou na Universidade Sorbonne, na França, e foi a segunda mulher a conseguir um cargo no serviço público brasileiro, no ano de 1918. Ao passar alguns anos estudando na França, Bertha tomou conhecimento do Movimento Sufragista europeu e decidiu fazer o mesmo no Brasil, criando a Liga para a Emancipação Intelectual da Mulher em 1918. Por meio das ações conjuntas de Leolinda, Bertha, e muitas outras mulheres, o direito ao voto foi conquistado pelas mulheres em 24 de fevereiro de 1932 por meio do decreto assinado pelo então presidente Getúlio Vargas. A título de nota, as francesas que inspiraram Bertha só conseguiram o mesmo direito quase uma década depois.

Bertha teve uma proeminente carreira política, participando do comitê elaborador da Constituição, em 1934, responsável por garantir às mulheres igualdade de direitos políticos, e se tornando a primeira suplente de um deputado federal, ocupando um espaço na Câmara Federal em um período que ver uma mulher em meio a políticos era impensável. Como suplente, Bertha defendeu mudanças na legislação referentes ao trabalho da mulher e do menor, a isenção do serviço militar, a licença de três meses para a gestante e a redução da jornada de trabalho, que era então de 13 horas. Tudo isso em 1936.

Enquanto Bertha foi a segunda mulher a ocupar um cargo público no Brasil, sua contemporânea Mietta Santiago, nascida no município de Vargem Grande, em Minas Gerais, foi a primeira a se candidatar a um cargo público e a exercer o direito ao voto. Mietta, ao estudar a Constituição de 1928, descobriu que não havia, a rigor, nada que impedisse uma mulher de se candidatar a um cargo público e a votar. Dessa forma Mietta entrou com um mandado de segurança, conseguiu o direito de votar e ser votada e abriu um precedente histórico — as ações de Mietta refletiriam em Luiza Alzira Soriano Teixeira que viria a se tornar a primeira prefeita do município de Lages, em Santa Catarina, ao ser beneficiada pelo pioneirismo de Mietta. Outra mulher precursora na política foi Carlota Pereira de Queirós, formada em medicina em 1928 pela Faculdade de Medicina de São Paulo e eleita primeira deputada federal. O mandato foi em defesa das mulheres e crianças e permaneceu em seu cargo até que o Estado Novo fosse instaurado — um sistema político despotista implantado por Getúlio Vargas que buscava governar de forma autoritária, modelo similar ao da ditadura, onde o governante se sobrepõe ao povo que, por sua vez, é impedido de se expressar. Carlota não se calou e passou a lutar pela redemocratização do país, o que só viria a acontecer com o final da Ditadura Militar, em 1985, e continuou seus trabalhos em medicina, fazendo parte da Academia Nacional de Medicina e fundando a Academia Brasileira de Mulheres Médicas.

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Ao passo que o Estado Novo e a Ditadura Militar avançaram no Brasil, outras mulheres se apresentaram para lutar pela redemocratização de nosso país. Nesse contexto podemos citar, por exemplo, Patrícia Galvão, a Pagu, que por militar pelo Partido Comunista e participar de greves, foi presa pela polícia e se tornou a primeira mulher a ser encarcerada por conta de suas motivações políticas. Pagu nasceu em uma família rica, mas afastou-se quando começou a militar pelo Partido Comunista e se envolveu com Oswald de Andrade, com quem teve um filho; por conta de sua militância e inclinações políticas, Pagu foi presa por mais de 20 vezes — em uma delas, inclusive, além de detida, foi torturada. Durante toda sua breve vida — ela morreu aos 52 anos, vítima de câncer —, Pagu lutou incansavelmente por aquilo em que acreditava, principalmente pelos direitos da mulher e o retorno da democracia brasileira, enquanto continuava escrevendo romances, poemas e exercia sua profissão de jornalista.

Durante a Ditadura Militar muitas foram as mulheres que se colocaram na linha de frente, resistindo ao regime como podiam: algumas pegaram em armas na tentativa de derrubar a ditadura, outras participaram do movimento estudantil, se juntaram a partidos e sindicatos. Elas desafiaram o papel feminino tradicional e ocuparam espaços com o intuito de desmantelar um regime cruel e totalitarista. Centenas de mulheres foram presas, sequestradas, torturadas — física e psicologicamente —, humilhadas, mutiladas e mortas pelo ideal de liberdade; muitas perderam seus pais, irmãos, maridos e filhos, outras perderam a dignidade e o direito ao próprio corpo; outras tantas jamais puderam retornar à pátria. Para citar apenas algumas, temos o exemplo da estilista mineira Zuleika Angel Jones, ou Zuzu Angel, que enfrentou o regime militar em busca do filho desaparecido e morto pelos órgãos de repressão da ditaduraIara Iavelberg, esquecida e recolocada na história apenas 30 anos após sua morte, que lutou para combater a ditadura; Nilda Carvalho Cunha, de apenas 17 anos, militante do MR-8, que foi presa e torturada em sua cela na Base Aérea de Salvador, na Bahia, morreu poucos dias após ser libertada devido a complicações causadas pelos enormes traumas que sofreu em seu período encarcerada. E, claro, Dilma Rousseff, torturada nas porões da ditadura enquanto lutava por um país livre. Todas foram reprimidas, silenciadas.

A segunda onda feminista “atingiu” o Brasil em meados da década de 1970. Lutando pela valorização do trabalho da mulher e contra a violência sexual, uma pauta sempre presente nas reuniões feministas era, também, a luta contra a ditadura militar. O Movimento Feminino pela Anistia foi criado em 1972, por exemplo, e apesar de as mulheres terem conseguido alguns direitos, ainda buscam por leis que garantam sua cidadania e individualidade. Sim, mulheres podiam trabalhar e exercer seu direito de voto, por exemplo, mas também precisam que seus direitos enquanto profissional sejam respeitados e mantidos; querem poder optar por ter filhos ou não, e querem esses direitos assegurados pelo Estado. A segunda onda é sobre manter seus direitos valendo e fazer todo mundo entender que eles existem. E é nesse contexto que se destaca Rose Marie Muraro, uma das vozes mais importantes do feminismo brasileiro. Nascida no Rio de Janeiro em 1930, quase cega, Rose Marie precisou trabalhar ainda mais duro do que qualquer pessoa para conseguir conquistar seu espaço. Estudiosa e autora de obras sobre o feminismo, Rose Marie traduzia, editava e publicava material estrangeiro sobre o tema com o objetivo de espalhar os ideais feministas em nosso país. Sempre lutando pela igualdade entre os gêneros, Rose Marie foi reconhecida, em 2005, como Patrona do Feminismo Brasileiro, e seu legado ficará para sempre em nossa história.

Em torno de 1990 apresentou-se a terceira onda, a fase que falava sobre como mulheres que faziam parte de minorias podiam ser apagadas mesmo dentro do movimento feminista. É fato dizer que a opressão não atinge a todos da mesma maneira, e isso se reflete, também, no feminismo. A vivência de uma mulher branca não é a mesma de uma mulher negra, suas opressões e batalhas são diferentes embora sejam ambas mulheres — e é esse viés excludente que a terceira onda feminista vem debater. É preciso levar em consideração que mulheres são várias, de cores, etnias, nacionalidades, religiões e origens culturais. Muito se fala, nessa época, também da liberdade sexual da mulher.

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E atualmente? O feminismo e a luta da mulher brasileira está mais presente e forte do que nunca. Unidas por meios digitais, é mais fácil conseguir informações, participar de debates de qualidade e organizar marchas e manifestações. É certo dizer que o feminismo nunca foi tão debatido — e isso é ótimo para disseminar a mensagem de igualdade entre o sexos, além de pautas pontuais. Temos nossas ativistas contemporâneas como a professora e doutora em Literatura, Lola Aronovich, que, embora tenha nascido na Argentina, vive e milita há anos no Brasil, principalmente por meio de seu blog, Escreva Lola EscrevaClara Averbuck, escritora feminista que mantém o Lugar de Mulher, site com reflexões e textos feministas; a youtuber Jout Jout que com seu canal, Jout Jout Prazer, aborda de maneira clara e desconstruída diferentes temas espinhosos como violência contra mulher, assédio sexual e relacionamentos abusivos; Nana Queiroz, jornalista e ativista responsável pelo portal Az Mina e autora do livro Presas que Menstruam: A Brutal Vida das Mulheres — Tratadas como Homens — nas Prisões BrasileirasJuliana de Faria, jornalista e fundadora do Think Olga, que tem por missão empoderar mulheres por meio da informação, sempre lutando para que mulheres tenham escolhas e voz; e, claro, em menor escala, cada uma de nós que escreve para o Valkirias e os sites da Ação Nerd Feminista, que aprendemos todos os dias por meio dos exemplos das mulheres que nos rodeiam, que nos ensinam e nos servem de exemplo.

Todas essas mulheres marcaram a história brasileira por sua luta constante em busca de igualdade. Há pouco menos de um século mulheres não possuíam nem metade dos direitos atuais e para chegarmos onde estamos, centenas delas (de nós) precisaram ir à luta em uma guerra dominada por homens. Se hoje podemos ser o que quisermos e ir para onde quisermos, é por conta de todas essas mulheres singulares que, a duras penas, abriram os caminhos. O movimento feminista brasileiro contribuiu — e contribui — diretamente para todas essas conquistas, principalmente na redução de desigualdades de gênero. Emboras as vitórias tenham sido difíceis, foram elas, cada uma delas, que nos trouxe até aqui.

Força, coragem, determinação e inteligência são algumas das qualidades destas mulheres que fizeram (e fazem) história. O texto de hoje é uma pequena homenagem à todas essas mulheres que permaneceram (e permanecem) lutando, não importa o quê.


Nesta semana da mulher, de 1º a 8 de março, portais nerds feministas se juntaram em uma ação coletiva — Ação Nerd Feminista — para discutir de temas pertinentes à data e à cultura pop, trazendo análises, resenhas, entrevistas e críticas que tragam novas e instigantes reflexões e visões. São eles: Collant Sem Decote, Delirium Nerd, Momentum Saga, Nó de Oito, Preta, Nerd & Burning Hell, Prosa Livre, Valkírias, Psicologia&CulturaPop. #WeCanNerdIt