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Filhas de Eva: a história de uma mulher é a história de todas?

Filhas de Eva, série produzida pela Globo, estreou em março com 12 episódios no canal de streaming da emissora. As protagonistas são três mulheres, que logo no primeiro episódio têm, sem saber, suas vidas entrelaçadas. A história dessas três mulheres é também a história de uma diversidade de abusos psicológicos que elas sofrem, da busca por autoestima e independência através de gerações de mulheres que foram sistematicamente diminuídas para caber num papel feminino ditado há muitos anos. Mulheres que se encolhem para que seus companheiros pareçam gigantes, que cumprem a pena por crimes que não cometeram, porque a sociedade as fez acreditar que este é seu lugar. Mas Filhas de Eva não é feita apenas de sofrimentos: também vemos essas mulheres romperem os laços que as aprisionam, que mais parecem nós, buscando liberdade e relações mais saudáveis, uma geração mais jovem de mulheres guiando o caminho para que cada uma seja livre para viver como quiser.

Atenção: este texto contém spoilers

Lívia, interpretada por Giovanna Antonelli, é uma psicóloga com uma carreira de sucesso, que acredita ter a vida de comercial de margarina: sucesso no trabalho, no casamento, uma boa mãe, apartamento bonito, viagens. No primeiro episódio, ela é convidada a dar uma entrevista no programa da Fátima Bernardes — reconhecimento por sua tese a respeito de relacionamentos amorosos. Mas seu marido, Kléber (Dan Stulbach), também psicólogo, não disfarça a inveja e o ressentimento pelo reconhecimento profissional da esposa, que acaba recusando o convite e o indicando para substituí-la. Kléber vai ao programa e fica cada vez mais famoso repetindo as frases da esposa, roubando suas ideias, seu prestígio e sua autoestima. Aqui, uma primeira questão sobre a vida feminina: quantas vezes vemos mulheres se diminuindo para que os maridos pareçam melhores do que elas? Mesmo tendo a consciência de que isso está acontecendo, para Lívia, salvar o casamento é a prioridade — o que não seria um problema por si só. Kléber, porém, é um marido infiel, mente com frequência, zomba das escolhas da esposa, trata sua carreira como uma chacota em comparação a dele. Ou seja, todos os sinais que servem de alerta não são suficientes para que ela enxergue que esse relacionamento está afundando.

Filhas de Eva

Em determinado momento da história, disposta a tudo para salvar o casamento, Lívia compra passagens para uma viagem surpresa, uma segunda lua de mel, e consegue convencer o marido a embarcar no avião com ela. No último minuto, ele diz que vai ao banheiro, se levanta e vai embora, o que ela só percebe tarde demais, quando o avião está decolando e já não é possível desembarcar. O que era para ser uma viagem romântica se transforma em uma viagem solitária e desesperada. A partir disso, Lívia começa a perceber quem Kléber realmente é e finalmente pede o divórcio.

Simultaneamente, Lívia começa a se aproximar de outro homem, um jornalista que a usa para conseguir informações sobre seus pais, um casal da elite carioca. O que nos leva a uma outra personagem: Stella (Renata Sorrah), mãe de Lívia, que aos 70 anos resolve romper um casamento de cinco décadas durante a festa de bodas. Stella não trabalha, tendo passado sua vida como esposa de um famoso advogado e político, vivendo uma vida de luxos, viagens internacionais e apartamento com vista para o Pão de Açúcar. Ao tomar a decisão de se separar do marido, ele a sabota da forma mais palpável possível: tirando dela todo o dinheiro, passando os bens do casal para o nome de outras pessoas e informando que o dinheiro sujo dele estava em uma conta no nome dela. Utilizando do mesmo sistema de corrupção que eles haviam usado a vida toda para enriquecer, ele tira tudo dela.

Mas Stella, que considero a mulher mais forte da série (ou talvez seja essa a impressão causada pela incrível e impecável atuação de Renata Sorrah), segue firme na sua decisão pela separação e procura de todas as formas resolver a situação, querendo, inclusive, se vingar do ex-marido. Ao reencontrar uma amiga da juventude, médica, que viajou o mundo todo a trabalho, ela sofre por acreditar ter desperdiçado sua vida em um casamento que a aprisionara. Porém, suas experiências de vida são usadas como uma forma de superar sua situação e ajudar outras mulheres ao seu redor a se darem conta de que também são livres. Destaco aqui a cena em que Stella visita o túmulo de sua mãe e comenta que a mãe havia dito que ela deveria ter nascido homem, porque sua cabeça sofreria muito num corpo de mulher. Em seguida, ela diz que muito havia mudado desde então e que hoje era menos difícil ser mulher.

Filhas de Eva

Menos difícil, mas nunca fácil. Porque ser mulher na sociedade ocidental foi ser, de fato, uma filha de Eva. Esta Eva que, independente de crença religiosa, moldou a imagem da mulher. Pecadora, aquela que fez a humanidade ser expulsa do Paraíso, porque cedeu às suas vontades e comeu o Fruto Proibido. Eva, que fez de todas nós pecadoras, que merece ser punida. Punição essa que mulheres sofreram e sofrem há muito tempo: caça às bruxas, trabalho doméstico não remunerado, maternidade compulsória, obrigação de satisfazer seus maridos. Punições à Eva moderna. Mas se falamos sobre relações entre marido e mulher, o que dizer quando esses abusos vêm do próprio sangue?

Aqui chegamos à história da última protagonista de Filhas de Eva, Cléo (Vanessa Giácomo) — apelido de Cleópatra —, uma moça desempregada, morando de favor na casa de sua mãe no subúrbio do Rio de Janeiro. Cléo não tem nada em comum com as outras personagens: não foi criada em uma família rica, não tem um apartamento chique, nem uma vida de luxo e viagens. Cléo não tem um marido que suga tudo o que ela tem para oferecer. Sua história converge com a das outras personagens no momento em que ela leva o bolo da festa das bodas de Stella, em que a última anuncia querer o divórcio. No mesmo dia, ela fica amiga de Lívia e começa a ter um caso com Kléber, sem saber que ele era casado. Alguns episódios depois, Cléo descobre que Kléber é marido de Lívia e rompe o relacionamento. Mais de uma vez ela deixa claro que está rompendo com ele por ser amiga de Lívia, colocando a relação entre as duas em primeiro lugar.

Mas a história de Cléo é principalmente marcada pelo relacionamento que tem com seu irmão, Julinho (Erom Cordeiro). Através de flashbacks, vemos que desde criança ela sofreu as consequências dos atos do irmão, levando a culpa por janelas quebradas e o acobertando diversas vezes. Sua mãe não faz questão nenhuma de esconder a preferência pelo filho homem, irreprimível. No começo da série, ficamos sabendo que Julinho está na cadeia, mas Cléo forja cartas dele para a mãe, fazendo com que ela acredite que ele está fazendo trabalho voluntário na África.

Filho de ouro, Julinho “envia dinheiro para a mãe” — dinheiro que sai do próprio bolso de Cléo para sustentar a mentira do irmão. Depois que sai da cadeia, ele a manipula para que ela assuma uma dívida alta, que Cléo paga vendendo seu carro. Uma série de situações, nas quais o irmão frequentemente diz: “você é a melhor irmã do mundo”. Ao contrário das outras duas personagens principais, Cléo tem mais dificuldades para se livrar dessa relação porque ela se encontra fincada em raízes mais profundas, que crescem nela desde a infância.

Filhas de Eva

Apesar de Stella, Lívia e Cléo serem as personagens centrais da série, outras duas personagens femininas merecem destaque por sua importância na trama. A primeira, dona Zezé (Analu Prestes), mãe de Cléo, uma mulher que reproduz um forte discurso machista a partir da sua predileção cega pelo filho homem. Inicialmente, não sabemos nada sobre o pai de seus filhos; o que vemos é uma mulher trabalhadora que criou os dois filhos sozinha. Zezé foi vítima do mesmo machismo que propagada sem saber, pois a sociedade que não vê muitos problemas num pai que abandona os filhos também não vê muitos problemas em um filho que pode fazer o que quer enquanto a irmã leva as porradas da vida por ele.

A segunda é Dora (Débora Ozório), filha de Lívia e Kléber, uma adolescente estudante do ensino médio. Dora é uma jovem militante feminista, personagem que ajuda as outras a desconstruírem ideias sobre o que significa ser mulher. Frequentemente chama a atenção sobre como o pai trata a mãe de maneira inferiorizada, deixando evidente tanto para Lívia quanto para o espectador que não tenha percebido com clareza a natureza tóxica do relacionamento deles. Dora vive em conflito, porque queria ser modelo e suas amigas feministas a criticam por isso, ainda que ela se justifique dizendo que faz isso para agradar a mãe. Dora entende o feminismo como liberdade para as mulheres fazerem o que quiserem, desconsiderando que o capitalismo também se aproveita dessa liberdade.

Com personagens bem construídas, acredito que o principal mérito de Filhas de Eva é fazer com que a maioria das mulheres se identifique com os temas tratados. Já passamos por quase tudo isso ou conhecemos mulheres que já passaram. Muitas críticas cabem à série, como a lamentável presença de um elenco quase inteiramente branco, injustificável em 2021. Além disso, a vida de pessoas ricas do Rio de Janeiro, comuns em produções da Globo, também já se tornou cansativa. De forma geral, falta diversidade à série. Mulheres transsexuais, lésbicas, bissexuais, pretas e pobres também passam por todo tipo de abusos retratados pela série, que poderiam ser explorado em outros aspectos. Apesar da falta gravíssima, e que não pode ser ignorada, Filhas de Eva merece a recomendação pela excelente atuação de todos os seus atores e pela delicadeza do roteiro, construído com sabedoria.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!