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Histórias para Vestir: quando as roupas têm estampa de memórias

Entre as peças do meu guarda-roupa, há um vestidinho que considero muito especial por três motivos: primeiro, porque minha mãe o costurou para mim; segundo, porque o acho bonito e confortável — feito em viscose bem levinha, é azul escuro com estampas de rosas vermelhas; e por último, porque ele me acompanha em várias situações. Com ele, fui às aulas, ao mercado, ao shopping, a viagens, e até fiquei em casa. De tanto ser usado, já precisou ter a costura reforçada em algumas partes e hoje o tecido está meio velhinho, mas o vestido continua inteiro e suas cores não desbotam, o que me dá a impressão de que ele ainda quer continuar comigo por muito mais tempo.

Eu poderia continuar escrevendo um sem fim de páginas sobre a conexão entre meu vestido e certos momentos da minha vida. Acredito que, quando se pensa numa peça de roupa especial, fica fácil passar horas a fio lembrando quando você a usou, como você se sentia, como estava o dia, o que aconteceu… as lembranças vão se ligando uma a outra e parecem dar origem a uma pequena odisseia pessoal. É justamente nessa trama de memórias que Histórias para Vestir, minissérie documental da Netflix, encontra material para seus oito episódios.

Lançada em 2021, a série foi criada por Jenji Kohan (que já produziu e escreveu séries como GLOW e Orange Is The New Black), sendo baseada no livro Worn Stories, de Emily Spivack. Por meio de entrevistas, intercaladas com animações, pessoas de diversas idades, etnias, gêneros e sexualidades, compartilham histórias que envolvem suas roupas. Assim, acompanhamos uma imigrante coreana e seu suéter amarelo para as aulas de dança, uma mulher negra com deficiência e seu querido uniforme de guarda de trânsito, um homem que compra suas primeiras roupas após passar décadas na prisão, até que, pouco a pouco, vemos um guarda-roupa inteiro se formando.

Tão diversificado quanto o elenco de Histórias para Vestir, portanto, são vários os afetos expressos pelas histórias dessas pessoas. Como possui um ritmo dinâmico, no decorrer dos episódios, é possível sorrir com a divertida busca a um casaco perdido, suspirar com a volta de um casal de ex-namorados e, também, se emocionar com o luto de alguém que perdeu amigos durante o surto do HIV na década de 80. Logo, ainda que tenha uma abordagem leve, a série não deixa de tocar em temas delicados, evidenciando que a moda também tem seu lugar político: seja a expressão de identidade de gênero de uma juventude cheia de vontade; ou o afago de um filho que passou a vida esperando que os pais, militantes do movimento negro nos EUA, finalmente saíssem da prisão — as roupas, definitivamente, estão cheias de gente dentro de si.

Histórias para Vestir - série da netflix

Enquanto acolhia tais narrativas, parecia aumentar, em mim, a admiração pelo poder que tem a memória de, a partir de um único objeto, desencadear um universo inteiro, pulsante de vida. Só podia relembrar das tardes que passei, quando criança, brincando com a coleção de botões que minha mãe usaria para enfeitar as roupas que costurasse. Sob o fascínio da memória, o objeto parece deixar de ser objeto e torna-se outra coisa.

A professora Luísa Mendes Tavares, no artigo (repleto de marcas pessoais) “Roupas em Fluxos Desviantes: A Moda e Suas Narrativas”, menciona a reflexão do escritor Peter Stallybrass: ao deixar de lado a concepção meramente utilitária dos objetos, é possível ter consciência de que eles podem ser

“(…) peças que provocam memórias, saturadas de significado e repletas da presença daquele que delas usufrui, ou seja, é a transfiguração das relações estabelecidas com os objetos, superando a satisfação momentânea da compra e fundando nas peças a inscrição de si.” (p. 124-125)

É assim que Histórias para Vestir documenta, de maneira delicada, como as roupas podem ser cheias de sentido: lembranças, sonhos, transformações, ideias. No correr de tantas breves aventuras, os tecidos ganham cheiro, as costuras esgarçam, aparecem buracos, alguns ajustes precisam feitos… e assim o que vestimos vai levando nossa vida junto com a gente.