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Hebe Camargo, uma vida dedicada à televisão

Ela não pedia licença para se sentar no nosso sofá pelo menos uma vez por semana. A presença dela era como reencontrar um velho amigo. Muitas crianças, produtos dos anos 1990, pegaram a última era de ouro dessa personalidade da televisão. Hebe Camargo, que carregava nome de deusa e o aniversário no Dia Internacional da Mulher, revolucionou a televisão. O primeiro talk show apresentado por uma mulher na televisão brasileira foi o dela, O Mundo é das Mulheres.

O início na era do rádio

Hebe nasceu em uma família modesta em Taubaté, no interior de São Paulo. A veia artística já estava no sangue dos Camargo, pois o pai dela, Seu Fego, era um violinista que trabalhava fazendo a trilha sonora de filmes mudos no cinema da cidade. A mãe, Dona Esther, tocava piano. Foi nesse seio familiar que Hebe descobriu sua vocação para cantar. Já em São Paulo, capital, ela começou a participar de programas de calouros na rádio, a sensação da época. Ganhava todos. Em 1944, ela assinou o primeiro contrato profissional com a Rádio Difusora. Hebe cantava com a irmã e as primas, formando o Quarteto Dó-Ré-Mi-Fá, atração do programa Pandemônio Gessy. Porém, devido aos casamentos das integrantes, o quarteto acabou virando uma dupla, Rosalinda e Florisbela. Hebe e a irmã se apresentavam no programa de Tonico e Tinoco e ficaram relativamente conhecidas, tendo, inclusive, repetido a dose em um especial de 1992 do Programa da Hebe.

Na época em que Hebe começou a atuar em programas de rádio, o país vivia o auge da era do rádio. Havia concursos para eleger a Rainha do Rádio durante todo o ano e os fã-clubes de algumas cantoras, como Emilinha Borba e Marlene, se organizavam para votar em suas favoritas. A lendária “rivalidade” entre as duas cantoras era tão forte que os fãs clubes “quebravam o pau” entre si para defender suas favoritas — eis os primórdios de fandom.

A Rádio Nacional, reduto das melhores vozes, ficava no Rio de Janeiro. Era mais difícil fazer sucesso estando fora da Cidade Maravilhosa, mas Hebe não se intimidou com isso. Contratada pela gravadora Odeon em 1946, ela gravaria o primeiro de seus 31 discos de 78 rotações. O disco, no entanto, não foi lançado. O público teria que esperar três anos para ouvir Hebe cantar. Mesmo após começar a trabalhar na televisão, entretanto, Hebe continuou a cantar. Dentre seus discos mais famosos está Hebe Comanda o Espetáculo, que seguia a fórmula de seu programa de televisão na época. Isso quer dizer que o disco começava com a cantora interpretando uma canção; depois, o convidado entrava e cantava outra, e, por fim, Hebe voltava ao palco e encerrava o programa. O disco foi um sucesso enorme porque o público adorava essa fórmula.

O Mundo é das Mulheres: o primeiro programa de Hebe

Hebe Camargo

Hebe e a televisão começaram um tórrido caso de amor antes mesmo de ela ser lançada no Brasil. Isso porque, a pedido de Assis Chateaubriand, idealizador da televisão brasileira e dono dos Diários Associados (onde Hebe trabalhava na época), pediu para que ela e outros artistas fossem ao Porto de Santos receber os equipamentos que possibilitariam a criação da primeira emissora brasileira, a TV Tupi. Sobre esse episódio, ela declara:

“Eu fiquei alisando as madeiras daqueles caixotes, emocionada.”

Demoraria algum tempo até Hebe ter o próprio programa na televisão. Ela acabou não passando nos primeiros testes que fez. “Suas sobrancelhas eram grossas demais e os seios pareciam manchas no vídeo”, segundo Cassiano Gabus Mendes, diretor. Em suma, Hebe não tinha uma imagem que combinava com a televisão.

Como não tinha a imagem “ideal”, Hebe continuou a cantar até participar de seu primeiro programa na televisão, o Musical Manon. Ela era a principal atração, ao lado do apresentador Roberto Corte Real. A cantora chamou a atenção de Walter Forster, ator e autor de novelas, com seu jeito inovador de conduzir a própria apresentação. Hebe não apenas cantava; ela gostava de apresentar a canção com uma história. Podia ser sobre o que sentia ao cantar a música, sobre a história da música, enfim. Forster percebeu o carisma de Hebe e decidiu lançá-la como apresentadora do programa O Mundo é das Mulheres. Nos padrões de um talk show, o programa se caracterizava por ter quatro ou cinco entrevistadoras que faziam perguntas a um homem (sempre tinha que ser um homem). A atração terminava com o questionamento ao convidado: “O mundo é das mulheres?”

Diversos políticos e artistas passaram pelo sofá de Hebe, mas o que revolucionou o programa foi a maneira como a apresentadora o conduzia. Nada de apresentadores sérios e empostados. Hebe era divertida, ria alto e tinha raciocínio rápido. Um dos grandes momentos de O Mundo é das Mulheres foi a visita de um político chamado Tenório Cavalcanti, “o homem da capa preta”. Esse deputado polêmico usava uma capa preta e andava com uma metralhadora chamada Lurdinha. Ao recebê-lo no palco, Hebe também usava uma capa preta, o que acabou desarmando o entrevistado. A irreverência com a qual tratava seus convidados se tornaria uma marca dela.

O autor da biografia sobre Hebe Camargo, Artur Xexéo, classifica O Mundo é das Mulheres como o primeiro programa feminista da televisão brasileira. Discordo. É claro que levar uma mulher aos ouvidos e aos olhos do público ao mesmo tempo, já que o programa era transmitido simultaneamente no rádio e na televisão, era revolucionário, mas feminista é ir longe demais. As pautas de O Mundo é das Mulheres não tinham nada de feministas, inclusive os convidados que passaram por lá eram notórios machistas, como Vinícius de Moraes. O fato de ter uma mulher no comando não o torna um programa feminista, o que o faz assim são suas pautas e seu compromisso em abordar temas que sejam caros às mulheres. O Mundo é das Mulheres não fazia isso.

Feminista ou não, o programa premiou Hebe e a consolidou como uma das apresentadoras mais queridas da televisão. Dali para frente ela ganharia muitos prêmios e chegou a ter três programas no ar ao mesmo tempo.

A era no SBT

Hebe Camargo

Hebe passou por diversas emissoras, como a Paulista e a Record, até chegar no SBT. A ida para a emissora de Sílvio Santos foi uma grande jogada do homem do Baú. O SBT consolidou-se como uma emissora das classes B, C e D, ou seja, as menos privilegiadas. Ela mantinha uma boa audiência, mas a televisão depende também de patrocinadores. Por ser uma emissora voltada às classes mais baixas, o SBT não conseguia alavancar agências de propaganda. Sendo assim, Sílvio Santos viu em Hebe Camargo a oportunidade de trazer o público de classe A para o canal. Todo mundo amava Hebe Camargo. Ela conhecia todo mundo. Poderia dar uma inovada no SBT. Foi o que ela fez.

O formato do programa de Hebe no SBT seguia os mesmos padrões da época em que apresentava seu programa na Record. O tradicional sofá, a orquestra e o cantinho para o merchandising. No entanto, uma coisa destoava desse cenário: o editorial. Esse recurso, ou seja, abrir o programa comentando algum assunto que estava em voga surgiu ao acaso. Hebe considerava-se apolítica, mas em um de seus programas elogiou o presidente Sarney e sua política de congelamento de preços:

“O cruzado é uma gracinha. Tão bonito de se pronunciar. Além do mais, é cabalístico: sete letras!”

Depois que essa política se mostrou um monstro, mergulhando o país na inflação, Hebe começou a criticar Sarney. Segundo Arthur Xexéo:

“Com o tempo, o público passou a aguardar uma espécie de editorial lá pelo meio do programa. Deu tão certo que o editorial foi transferido para o início da atração.”

Hebe chegou a quase ser processada por causa desses editoriais, o que ficou conhecido como o Caso Hebe. Ele se deu em um de seus programas, quando ela recebeu o jornalista Giba Um e o ator e cineasta Anselmo Duarte. O assunto era aposentadoria. Em 1987, os congressistas aprovaram um aumento para parlamentares aposentados, enquanto o próprio Anselmo declarava que não conseguia se aposentar porque não tinha como provar seus anos de serviço. Os discursos inflamados de Hebe fizeram com que ela quase fosse processada por Ulysses Guimarães, presidente da Assembleia Nacional Constituinte. Embora o famoso processo não tenha desenrolado, ela recebeu uma advertência do SBT: seu programa foi remanejado. A apresentadora, no entanto, continuaria com seus editoriais, às vezes políticos, às vezes nem tanto assim, até o fim de sua vida.

Uma vida celebrada em musical

Hebe amou, teve decepções amorosas, envolveu-se em polêmicas e celebrou a vida em mais de 40 anos dedicados à televisão. Essa história fascinante transformou-se em musical, Hebe, o Musical, dirigido por Miguel Falabella e atualmente em cartaz no Teatro Procópio Ferreira, em São Paulo.

Débora Reis, atriz que interpreta Hebe adulta, é um espetáculo à parte, ela é a Hebe. A caracterização física e dos trejeitos da apresentadora chegam a ser perturbadores de tão iguais. O musical foi baseado no livro de Artur Xexéo e é um bom indício de como o Brasil vem produzindo bons musicais nesse sentido. Mais do que isso, acredito que estamos vivendo um momento em que estamos descobrindo nossa própria história. Bingo, O Rei das Manhãs, por exemplo, é um filme que versa sobre a televisão brasileira. Agora temos um musical sobre Hebe e outro, melhor ainda, sobre Bibi Ferreira. Que momento para nos reconectarmos com nossa história. O único problema do musical de Hebe são os preços. Mas não se preocupe: logo você poderá ver a história dela na televisão. Já foi confirmada uma minissérie, que será realizada pela Rede Globo, sobre a apresentadora. Andrea Beltrão interpretará Hebe.

Conhecer mais sobre figuras como Hebe é entender os caminhos pelos quais a televisão brasileira passou para chegar ao que conhecemos hoje. A apresentadora pavimentou o caminho, em uma época em que trabalhar para a televisão não era tão bem visto assim. Hebe foi uma mulher controversa, participou da Marcha da Família Brasileira com Deus e apoiava Paulo Maluf para quem quisesse ouvir. Esses traços não podem ser ignorados, quer concordemos com eles ou não, mas não retiram os méritos da apresentadora tampouco do seu trabalho dentro da televisão brasileira. Mesmo que O Mundo é das Mulheres fosse um programa sem compromisso algum com o feminismo, ele foi o primeiro a trazer uma mulher comandando uma atração. Isso é muito importante.

Ninguém mais interessante para conhecermos do que Hebe Camargo, uma mulher que viveu praticamente todas as mudanças pelas quais a televisão passou até hoje.