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Assexualidade, arromanticidade e a falta de representação na cultura pop

Nós já passamos da discussão sobre se, de fato, representatividade importa. A cada personagem que sai um pouco do padrão imposto, mais pessoas se identificam com algumas das características apresentadas por ele e se sentem representadas. A representatividade serve para que as pessoas se vejam e se identifiquem com partes delas que talvez ainda não conheçam, auxilia discussões e espalha conscientização. Porém, para que ela tenha um efeito positivo, é preciso que essa representatividade seja bem feita.

Quando se trata da comunidade LGBTQI+ conseguimos observar uma mudança positiva — ainda que lenta — na forma como esses grupos estão sendo representados na mídia, seja em filmes, livros ou seriados. No entanto, quando falamos da representação assexual e arromântico, existe não apenas a falta de representatividade como também uma representatividade mal feita.

A discussão mais recente sobre a representatividade assexual aconteceu quando os produtores do seriado norte-americano Riverdale anunciaram que Jughead Jones (Cole Sprouse) não seria canonicamente assexual, como o personagem é retratado na série de quadrinhos, escrita por Chip Zdarsky, desde 2016. Em paralelo, um comentário que demonstra como precisamos de mais representatividade assexual e arromântico na cultura veio de Steven Moffat, escritor, criador e produtor executivo do seriado da BBC Sherlock: para ele, o protagonista de sua série não é arromântico assexual como diversos atores da produção sugeriam, porque “não haveria tensão, não haveria graça” caso ele assim fosse.

assexualidade

Abordar o sexo e as diversas sexualidades é muito importante para promover discussões sobre a saúde sexual de todos, porém é preciso entender que a não-atração sexual também é uma questão de saúde. Quando mantemos os pensamentos de que personagens não podem ser assexuais pois “não teria graça” ou que eles precisam estar em um relacionamento para que haja um enredo, nós apagamos as narrativas de pessoas assexuais e arromânticas que podem ou não estar em relacionamentos. É importante lembrar que pessoas no espectro aro e ace também podem se apaixonar ou apresentar em algum nível uma atração por outra pessoa, e estas são histórias que também devem ser contadas. É como no livro Tash & Tolstói, de Kathryn Ormsbee, em que a personagem principal, Tash, é assexual heterorromântica e desenvolve um relacionamento com um dos personagens; ou no livro Além-Mundos, de Scott Westerfeld, onde Darcy Patel é demirromântica e possivelmente demissexual, e também desenvolve um relacionamento com outra personagem ao longo da narrativa.

Por outro lado, quando personagens implicitamente assexuais e/ou arromânticos são retratados nas mídias, eles são frequentemente desumanizados: personagens não-humanos, como é o caso do Doctor, da série Doctor Who, e Michael, de The Good Place, são considerados assexuais, como se esta característica não fosse humana. Há também a percepção de que pessoas que não sentem atração sexual ou romântica são apáticas e frias, e por isso são muitas vezes retratadas como sociopatas na ficção, como o personagem Dexter Morgan (Michael C. Hall), do seriado Dexter, um assassino em série que ainda na primeira temporada não mostra interesse sexual e diz que não entende sexo — importante notar que o personagem ao longo da série é humanizado por meio de relacionamentos amorosos e sexuais. Outro personagem que é repetidamente apontado como assexual é Lord Voldemort (Ralph Fiennes), da série de livros e filmes Harry Potter, o grande vilão, dito ser incapaz de amar. Ou Sheldon Cooper (Jim Parsons), de The Big Bang Theory, que é indicado como demissexual, sendo retratado na maior parte da série como alguém que não entende convenções sociais e não demonstra uma conexão afetiva com ninguém; em diversos momentos os outros personagens brincam que Sheldon não seja humano pela falta dessas habilidades, mas seu comportamento muda um pouco ao longo da série quando ele desenvolve um relacionamento com a personagem Amy Farrah Fowler (Mayim Bialik).

A assexualidade na mídia é frequentemente usada como um obstáculo para outros personagens ou como uma ferramenta de comédia. Em 2003, o programa Late Late Show apresentou um quadro de comédia chamado “Sebastian, the Asexual Icon”, que contava com comentários maldosos apenas para fazer o seu público rir. Em 2012, na oitava temporada do seriado House vimos a assexualidade ser clinicamente apagada pelo protagonista House (Hugh Laurie) ao contestar que uma paciente sua seria assexual. O seriado norte-americano Sirens apresentou, em 2014, a personagem assexual Voodoo (Kelly O’Sullivan), que causou uma discussão dentro da comunidade ao ver a ambiguidade no seu desenvolvimento: ela é decidida sobre a sua sexualidade e não tem nenhum problema com isso, mas é questionada por colegas que não acreditam que a assexualidade seja real. Além disso, sua orientação é usada como um obstáculo que Brian (Kevin Bingley) precisa superar para ficar com a personagem. No mesmo ano, Game of Thrones indicou que o personagem Lord Varys (Conleth Hill) poderia ser assexual, ligando esta característica com o fato do personagem ser um eunuco e que a sua falta de atração sexual lhe fazia ser superior aos outros ao argumentar que o desejo carnal faz mal aos humanos e ele não quer fazer parte disso.

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No Brasil, a representação de personagens assexuais e arromânticos é quase zero. A novela teen Malhação apresentou em 2009, em sua temporada nomeada de Malhação ID, o Alê (William Barbier), personagem que se dizia não ter nenhum interesse em garotas como seus amigos e ao longo da trama tenta entender se é hétero ou gay. Durante a temporada, Alê diz repetidamente que não tem interesse em garotas e que não se mostra interessado em sexo; o que poderia ser um ótimo início de conversa sobre a assexualidade entre os adolescentes se o termo usado fosse o correto (a produção usa o termo assexuado para se referir a Alê) e se a orientação do menino não fosse ferramenta para o desenvolvimento da personagem Maria Cláudia (Isabella Dionísio) e a sua inabilidade de fazer o jovem “sentir algo”. Quase uma década depois, a temporada de 2017 do programa, Malhação: Viva a Diferença trouxe Guto (Bruno Gadiol) que disse em um dos episódios que não gostava de sexo e não pensava sobre o assunto como os seus amigos; mesmo sem ter colocado em palavras a assexualidade do garoto, é claro que ela existe em algum grau. Ao longo da temporada é interessante ver o desenvolvimento do seu relacionamento com Benê (Daphne Bozaski) e como os dois navegam pela novidade do relacionamento sem ultrapassar barreiras que deixam os dois desconfortáveis ou sem forçar um estereótipo.

Assim como em Malhação: Viva a diferença, o seriado norte-americano Shadowhunters, baseado na série best-seller Os Instrumentos Mortais, de Cassandra Clare, mostra o personagem Raphael Santiago (David Castro) insinuando sua assexualidade quando o personagem diz para Isabelle Lightwood (Emeraude Toubia) que ele não tem interesse em sexo ao negar um beijo a ela. Quando Isabelle pergunta se isso tem a ver com ele ser um vampiro, Raphael nega dizendo que ele já era assim antes de se transformar. Isso mostra que a assexualidade não está ligada com a sua condição de imortal e não-humano, e mesmo após sua transformação ainda é uma característica que faz parte de sua vida. Mais recentemente é no seriado animado da Netflix, BoJack Horseman, que vemos o personagem Todd Chavez (Aaron Paul) se identificando como assexual e realmente dizendo com todas as palavras. Durante três temporadas, o personagem insistiu em se identificar como nada, uma vez que ele não é hétero ou gay; já na quarta temporada, Todd revela que na verdade é assexual; ao longo da série ele vai a um encontro de assexuais e aceita namorar uma outra personagem que também se identifica como assexual.

Na segunda temporada do seriado Sex Education, somos apresentados a personagem Florence (Mirren Mack) que procura Otis (Asa Butterfield) para ser aconselhada sobre a sua falta de desejo em sexo e a pressão que ela sente dos colegas no ensino médio para fazer sexo. Infelizmente, o conselho de Otis é algo que pessoas assexuais já estão cansadas de ouvir, o discurso do “você apenas não encontrou a pessoa certa”. Não sentir atração sexual ou romântica não tem nada a ver com a outra pessoa ou não estar pronta para sentir ou experimentar alguma coisa. Felizmente, quando Florence procura Jean (Gillian Anderson), a real terapeuta sexual, e diz que se sente quebrada, Jean fala sobre assexualidade e nos deixa com uma fala que todo mundo deveria refletir sobre: “Sexo não nos faz inteiros. Então, como você pode estar quebrada?”

assexualidade

No mais recente relatório da GLAAD sobre a representação na televisão, constatou que com o cancelamento do seriado Shadowhunters e com a finalização de Bojack Horseman após seis temporadas não existe atualmente seriados com representação assexual em um papel de destaque. Em análise podemos chegar também a conclusão que a maioria dos personagens representados são homens, brancos e cisgêneros.

Na mídia, a assexualidade e arromanticidade também estão muito ligadas com a heterossexualidade e o heterorromanticidade, o que leva para um discurso afóbico questionando se as comunidades aro e ace fazem ou não parte da comunidade LGBTQI+. Assexuais e arromânticos fazem, sim, parte desta comunidade e podem também se identificar como héteros, assim como existem os que se identificam com outros rótulos dentro das orientações sexuais, românticas e de gênero. Assexuais e arromânticos podem sim desenvolver relacionamentos bem-sucedidos com outras pessoas que se identificam da mesma forma ou de forma diferente.

As grandes mídias tem o poder de influenciar as pessoas e de iniciar uma conversa positiva sobre diferentes assuntos. Ao longo dos últimos anos, nós observamos a mudança da representatividade de outras comunidades LGBTQ+ e como isso influenciou pessoas a se identificarem e a assumirem sua sexualidade, muito graças aos filmes e seriados que estamos consumindo. Especialmente durante a nossa adolescência, esses personagens podem nos inspirar a ver parte de nós que ainda não conhecemos e ainda estamos tentando entender. Ter uma representação assexual e arromântica dentro dessas mídias significa mudar positivamente a vida de diversas pessoas, mostrar para elas que não há nada de errado e normalizar esse discurso. Já está na hora da comunidade assexual e arromântica ter exemplos de histórias bem sucedidas que possam nos inspirar e existir no mundo sem tantos preconceitos.


** A arte em destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto.

7 comentários

  1. eu levei mais de 30 anos pra descobrir que existia a ~área cinza~ e que eu estava nela (demissexual-demirromântica) e minha vida “amorosa” foi um pesadelo até ali. faz muita falta mesmo a gente saber que existe o diferente e que pode ser nosso caso. recentemente li um livro brasileiro que identifica um personagem como assexual, mas era tão superficial que acho que nem conta. só é uma espécie de alívio por ao menos citar a condição.

    no mais, eu posso dizer: NENHUM dos meus amigos recebe essa “notícia” com naturalidade e TODOS respondem com “você só não achou a pessoa certa”. somos todos adultos, praticamente todo mundo faz terapia e qualquer comportamento diferente do alossexual é apagado. é horrível.

    1. Agradeço muito o seu comentário! Por isso é tão necessário a representatividade de pessoas assexuais e arromânticas nas mídias que consumimos (e não apenas uma representação rasa), tanto para que nós não passamos tanto tempo achando que tem algo de errado conosco, mas também para que as pessoas alossexuais e alorromânticas entendam o que é a assexualidade e arromanticidade.

  2. ótimo texto! fiquei intrigada, será se o Sherlock do Cumberbatch não estaria dentro desse contexto de personagem assexual?

    1. Obrigada! Vários atores do seriado já disseram em entrevistas que concordam com o Sherlock ser assexual, inclusive o próprio Cumberbatch; porém, como eu relatei no texto, o criador da série foi bem afóbico ao dizer que Sherlock não era assexual porque não teria “graça” tem ter um personagem assexual (mesmo falando diversas vezes que o personagem não se interessa por sexo, por exemplo).

  3. Moffezes mostrando o por que de eu detestar quando ele coloca a mão em algo. No mais, tenho 25 e nunca me relacionei romanticamente com ninguém – sinceramente eu não compreendo se tenho algum trauma ou posso estar caracterizada como arromantica ou algo assim. Talvez se eu visse mais representatividade, poderia conseguir até mesmo me entender melhor, pena que isso raramente acontece (ou acontece de forma superficial), como o próprio texto mostra.

  4. Excelente artigo! Senti falta de duas representações canônicas que não foram mencionadas: o Bob Esponja e a Peridot, do desenho Steven Universo. Apesar de não ter nenhuma referência direta à assexualidade dos personagens nos desenhos em si, a equipe criativa por trás das duas animações já confirmou.
    Eu me identifico como assexual (e talvez arromântica também, ainda estou pensando no assunto) e sinto MUITA falta de mais representatividade na mídia.

  5. Me descobri arromantica recentemente, antes disso eu achava que era um peixe fora d’água. O mais difícil é perceber que a sociedade não dá muita visibilidade para essa parte da comunidade LGBTQIA+, tanto que durante muuto tempo eu nunca ouvi falar sobre a comidade aro ace. Foi um grande alívio descobris que.existem mais pessoas como eu, tipo, quando eu percebi que sou bissexual não tive grandes problemas para me aceitar e me entender, porque como homosexual e bissexual são muito evidenciadas na midia, porem outos aspectos da comunidade LGBTQIA+ não são sequer citados, então quando eu me descobri arromantica meu cérebro quase deu pane, porque eu fui ensinada a vida inteira sobre como o ser humano foi feito para ter um amor, para ter uma grande paixão, se casar e etc…
    Então eu acho muito importante que hajam blogs, sites entre outros que abordem esse tema, porque as pessoas precisam comhecer cada vez mais esse lado da comunidade, e entender que não é falta da pessoa certa, e sim o fato de que aro ace simplesmente não sentem vontade, desejo e etc, de se envolverem com alguém de forma romântica ou sexual, e que isso não é uma escolha, e sim algo que nasce com a pessoa e qie não dá para mudar. Resumindo, gostei muito do seu blog, achei muito interessante, e torço para que hajam mais como o seu.

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