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Brooklyn Nine-Nine: comédia em sua melhor forma

Quando se fala em humor, especialmente como produto ou parte integrante de um produto, a capacidade de arrancar risadas ou fazer o telespectador se distrair nem sempre é o único meio de medir se o que estamos consumindo é bom ou não. Comumente marcado por um teor de nuances críticas, ácidas e que também podem fazer refletir sobre temas “polêmicos” e desconfortáveis, fazer humor no mundo em que vivemos, de forma a cumprir com seus princípios, tem sido não apenas um diferencial, mas algo a ser louvado e contemplado. Afinal, os motivos que podem nos levar a acompanhar uma série são inúmeros, mas a demanda por produções que contem com representatividade, diversidade e debates relevantes está cada vez maior. E com razão.

Nos dias atuais, existe um nicho no mercado do humor que, além de entretenimento, traz para a mesa discussões pertinentes sobre o que há de errado e feio no mundo, o que é tabu ou é delicado demais para ser debatido em uma comédia, mas, contra tudo e contra todos, estão ali. Produções como One Day At Time, The Good Place e, a não tão recente assim, Brookly Nine-Nine mostram uma nova forma de se fazer comédia: ainda acompanhamos o dia a dia dos personagens, mas desta vez, de fato, refletindo a rotina de uma sociedade (ou no caso de B99, um local de trabalho) ao inserir em suas narrativas acontecimentos e atores que espelham a multipluralidade vigente em nossa relações sociais.

Atenção: esse texto contém spoilers!

Brooklyn Nine-Nine

No ar desde 2013, Brooklyn Nine-Nine é uma série criada por Michael Schur, também a mente por trás das ótimas The Good Place e Parks & Recreation, além de colaborador de The Office, e Daniel J. Goor, roteirista de Parks & Recreation e The Daily Show. A série exibida pelo canal Fox nos Estados Unidos, que também faz parte do catálogo Netflix, chegou à quinta temporada — ainda em exibição — no ano passado, com um público consolidado que não hesita em exaltar os pontos positivos de uma série que contribui ativamente para uma cultura mais diversa, divertida e consciente.

Durante os mais de 100 episódios da série, acompanhamos a rotina da delegacia de polícia do Brooklyn (em Nova York), a 99. O foco principal são os casos policiais e a vida do detetive Jake Peralta (Andy Samberg) e de seus colegas e amigos Amy Santiago (Melissa Fumero), Rosa Diaz (Stephanie Beatriz), Charles Boyle (Joe Loe Truglio), o sargento Terry Jeffords (Terry Crews), Gina Linetti (Chelsea Peretti), o comandante Raymond Holt (Andre Braugher), Scully (Joel McKinnon Miller) e Hitchcock (Dirk Blocker). O início da série marca a chegada de Holt, o novo capitão da delegacia, que além de um policial negro, também é gay. A partir daí, podemos assistir ao desenvolvimento da relação do novo capitão com os já detetives e membros da 99, bem como os casos policiais.

Com andar da história, as relações de amizade e amor vão se estabelecendo e se aprofundando, a vida, por assim dizer, vai acontecendo e a série vai mostra que relacionamentos saudáveis, baseados no diálogo e sinceridade, são possíveis na TV. Além disso, Brookly Nine-Nine entrega amizades entre homens permeadas de sensibilidade, sem rastros de masculinidade tóxica, bem como a desconstrução da rivalidade entre mulheres, mostrando uma rede de suporte totalmente viável entre o gênero feminino, e por fim, que perseguir bandidos e trabalhar em prol da segurança da população também pode ser algo divertido, meio louco e inusitado e menos quadrado do que as conhecidas séries de investigação.

Elenco diverso e representatividade 

Brooklyn Nine-Nine

Apesar de notarmos uma presença cada vez mais crescente de protagonistas mulheres — ou mesmo coadjuvantes — nas telas, um estudo realizado pela San Diego State University com as 100 maiores bilheterias em 2017 aponta que ocorreu uma ligeira queda na presença feminina nos cinemas no último ano. O déficit foi pequeno, mas os dados mostram que o espaço que tem se criado nos últimos tempos precisa ser ocupado, conquistado e reafirmado diariamente; prova disso é que o mesmo levantamento mostrou uma ligeira melhora na presença de mulheres não-brancas em produções cinematográficas. Em comparativo com 2016, personagens negras somaram 2% a mais de falas, latinas, 4%, e asiáticas, 1%. É muito pouco, quase ínfimo, mas há espaço para mais. Séries como Jane: The Virgin e Dear White People têm mostrado que é possível erguer em meio a branquitude hollywoodiana uma representação feminina que contemple não apenas mulheres brancas. Por sua vez, o estudo Where We Are on TV, que analisa a presença de minorias na televisão, retorna que, na temporada 2017, apenas 18% dos personagens regulares de séries eram ocupados por atores e atrizes negros, sendo a FOX o canal televisivo com o maior, mas ainda baixo, percentual de personagens negros: 26% dos regulares do canal. A representação latina, de acordo com a pesquisa, é ainda menor: apenas 8%. A representação LGBTQ+ também é baixa: na TV aberta dos Estados Unidos o percentual é de apenas 6,4%, sendo um pouco melhor nas plataformas de streaming, mas não percentualmente quantificada pelo estudo.

Neste cenário, Brooklyn Nine-Nine tem se saído bem, visto que, das três protagonistas da trama, duas são latinas. Amy Santiago, detetive exemplar da delegacia, ambiciosa, viciada em organização, que se torna, no decorrer das temporadas, também par romântico de Jake Peralta. E Rosa Diaz, a detetive badass, competente, motociclista, que não leva desaforo pra casa e que, na quinta temporada, com todas as letras se assume bissexual. Ainda que magras — é preciso reforçar —, as personagens fogem ao padrão vigente em Hollywood e representam minorias, mas em momento algum são reduzidas a isso: são complexas, divertidas, com suas próprias características e peculiaridades, longe de serem personagens bidimensionais. Stephanie Beatriz, atriz que interpreta Rosa, também é bissexual, e se surpreendeu quando foi escalada para o papel pois não acreditava que seria possível uma produção de TV ter duas atrizes latinas na trama. Além disso, dois dos principais personagens de Brooklyn Nine-Nine são homens negros em posições de poder. Terry, sargento e superior direto dos detetives, e Holt, que ocupa a mais alta função de uma delegacia policial de Nova York — e também é gay assumido e casado.

Estereótipos desmantelados: o trunfo de Brooklyn Nine-Nine

Brooklyn Nine-Nine

Brooklyn Nine-Nine também encontra prestígio por desmantelar estereótipos típicos da TV. Amy e Rosa, por exemplo, não representam o estereótipo de Mulher Latina Sexy ou Mulher Latina Cabeça-Quente. As três personagens femininas de B99 não poderiam ser mais diferentes entre si. Gina Linetti é a assistente/secretária do comandante, viciada em redes sociais e aparentemente não liga pra nada. Sendo uma das personagens mais divertidas da série, Gina também não é nada disso: tem bom coração, é extremamente confiante em si mesma, conhece bem todos os membros da delegacia, é um membro que contribui de forma ativa para o bom funcionamento do seu local de trabalho, além de ser extremamente organizada com suas próprias finanças. Amy, Rosa e Gina são totalmente diferentes entre si, e com exceção dos comentários engraçadinhos que Gina dirige a Amy, mas também a todo mundo, nenhuma das personagens é colocada uma contra a outra.

O estereótipo da “rivalidade feminina”, seja ao brigar por um cara, por uma posição social, pelo direito de ser a mais notada ou por não suportar as diferenças da colega, ainda mais em um ambiente de trabalho tipicamente masculino, não se sustenta. No único episódio em que Amy começa a sentir ciúmes de Rosa e a relação entre as duas começa a se tensionar por uma discussão que não era válida, os roteiristas mostraram que, felizmente, a sitcom não veio ao mundo para usar mão de uma escrita preguiçosa e pouco original. “We work at a police force full of dudes, we got to have each other’s backs, okay?” [“Nós trabalhamos em um delegacia cheia de cara, nós precisamos cuidar uma da outra, ok?”], é um das frases ditas pela detetive Diaz, resumindo muito bem o posicionamento da série sobre o tema. Gina também faz parte desta equação e, mesmo que ela e Amy sejam como água e vinho e tenham seus atritos, o roteiro nunca precisou colocá-las uma contra a outra para tornar os episódios interessantes ou prender a audiência. Brooklyn Nine-Nine constrói mulheres com interesses reais e próprios, sem sexualizá-las, e coloca em voga conflitos pessoais e profissionais que trazem tridimensionalidade às personagens, fazendo-as existir por si e não em função de um homem, provando que não basta tornar a representatividade feminina e étnica apenas um número nas produções, mas que o trabalho precisa ser bem feito e desenvolvido para que seja válido.

Charles Boyle, hétero, branco, com interesses tradicionalmente não-masculinos, tem de tudo para fazer o papel do nice guy (cara legal”, em especial nas primeiras temporadas, em que sente atração por Rosa). No entanto, quando percebe que exagera na dose, ele volta atrás e pede desculpas por fazer com que a sua amiga — sim!, homens e mulheres são realmente amigos em Brooklyn Nine-Nine — se sinta desconfortável. Num geral, a série é muito competente em entregar personagens masculinos que externalizam seus sentimentos de forma verbal, inclusive entre si — Charles e Jake realmente discutem aspectos de sua própria amizade. Nesse viés, a frase “Terry loves yogurt” [“Terry ama iogurte”] faz ainda mais sentido. Afinal, com base nos estereótipos reforçados na TV, é de se estranhar que uma declaração de amor tão delicada venha de um homem super musculoso e negro. A figura de poder, força, liderança e provedor da família é padronizada como a do sexo masculino, e, por esse motivo, ter uma personalidade com atitudes e características que fogem a esse estereótipo e se assemelham em qualquer nível com o conceito de feminilidade causa uma retaliação para a figura masculina. No fim do dia, a masculinidade tóxica ainda é um traço do machismo. O personagem de Terry Crews em momento algum cai na figura do angry black man [homem negro raivoso], muito pelo contrário. Preocupado com sua própria vida pois quer estar seguro para poder criar as duas filhas pequenas, Terry Jeffords gosta de filmes estrangeiros, arte impressionista, dorme ao som do canto das baleias, é pai presente, dedicado e preocupado, e chora sem pudor.

O capitão Holt também quebra, mais uma vez, uma série de clichês. Autoridade unânime na delegacia, Holt é abertamente gay, mas está longe de ser comercial ou possuir características que remetam à feminilidade — ainda que existissem, vale frisar, não fariam dele inferior. É de se pensar que tal opção dos roteiristas reforça a ideia de “gays-dentro-do-armário”, que não estão livres para serem quem são. Não é o caso de Holt, no entanto, pois este sempre manteve a mesma postura, como podemos observar pelos flashbacks da série, e é quase replicada por seu marido Kevin Cozner (Marc Evan Jackson). Extremamente sério, direto e competente, não é com meias palavras que Holt admita que ter sido um homem negro e gay na academia de polícia nos anos 80 tenha sido uma tarefa difícil. Apesar disso, em momento algum o fato de Holt ser gay se torna a principal característica dele. No primeiro episódio da série, Holt não dedica mais do que cinco segundos ao fato de ser gay, antes de prosseguir para outros tópicos. Como o próprio ator Andre Braugher explica, “eu não estou fazendo o papel do ‘capitão gay’, eu estou fazendo o papel de um capitão policial que também é gay. A distinção entre esses dois papéis é enorme”.

É inevitável louvar Brooklyn Nine-Nine pela maneira descontraída e real com que desenvolve seus personagens e a relação entre eles. Todos os personagens de B99 crescem, são falhos, aprendem com seus erros e não ocupam um único papel — nem na delegacia, nem em suas vidas pessoais. Não são, em momento algum, reduzidos a uma única característica, nem servem unicamente para um propósito. As relações interpessoais que os personagens têm entre si se baseiam, primeiramente, em respeito e honestidade. Não há uma competitividade nociva entre os colegas, mas seus hiper-competitivos episódios de Halloween são demais. A relação romântica entre Amy Santiago e Jake Peralta é, sem delongas, uma das mais saudáveis da TV atual. É bem pavimentada, cresce organicamente (os fãs de slow burn vão adorar) e quando finalmente estão juntos como um casal, Amy e Jake apoiam um ao outro, querem ver o outro bem, e dialogam. Parece ridículo que algo tão simples e básico mereça reconhecimento, mas em um mar de relacionamentos abusivos e maus relacionamentos na TV, é como respirar ar fresco assistir um casal ser um pouco mais como os casais (heteroafetivos) deveriam ser.

Temas pertinentes e referências geniais

Brooklyn Nine-Nine

Não menos importante em uma série de comédia, Brooklyn 99 consegue se manter atual. A série, além de entreter, traz em sua tramas críticas e comentários que são pertinentes ao mundo em que vivemos. Para além de referências geniais a elementos da cultura pop — Taylor Swift (mais de uma vez), Rihanna, Nicholas Cage, Senhor dos Anéis, Friends e Duro de Matar, por exemplo —, B99 cumpre muito bem o seu papel quando faz humor tratando de temas importantes. Quando Rosa Diaz se assume bissexual, ela o faz de maneira que não abre espaço para dúvidas, e verbaliza sua orientação sexual de uma maneira que poucas séries são capazes de fazer. Mencionando mais uma vez o estudo do Where We Are on TV, de todos os personagens LGBTQ+ nas telinhas, apenas 28% são bissexuais, muitos deles tendo suas histórias e desenvolvimento amarrados à sua orientação sexual, e muitos sequer verbalizando sua própria orientação.

Terry Jeffords, em seu próprio momento, é responsável por protagonizar um dos melhores episódios de toda a série: “Moo Moo”, o décimo sexto episódio da quarta temporada, retrata o sargento sendo abordado por outro policial em seu próprio bairro, ao mesmo tempo em que Amy e Jake são responsáveis por cuidar das filhas de Terry por uma noite. Enquanto Terry lida com o racismo policial já muito conhecido pelos homens negros nos Estados Unidos, Amy e Jake lidam com perguntas difíceis vindas das filhas do sargento. Gina Linetti consegue expressar literalmente a melhor resposta para ambos os casos: “só explique o racismo profundamente enraizado que permanece dominante neste país até hoje”. 

Já mencionado anteriormente, no primeiro episódio da série o roteiro já vai até  e fala sobre orientação sexual e raça, com o Capitão Holt apontando sua sexualidade como o real motivo por ter levado tanto tempo para que ele assumisse o posto de capitão. Quando a relação de trabalho entre Rosa e Amy dá uma sacudida, não demora para que elas reconheçam que estarem juntas é melhor do que separadas. Jake Peralta bem que poderia perpetuar o posto de manchild [homem criança] da série, uma vez que é o mais infantil e bobalhão dentre os detetives, mas ele evolui, amadurece e cresce como pessoa, ainda que mantenha sua mais fiel característica: a de fazer piada. Ele aprende e passa a reconhecer que grande parte dos seus problemas afetivos tem relação direta com o sentimento de abandono que sente por parte do pai, e isso tudo adiciona camadas à sua construção. O personagem de Andy Samberg também tem alguma das melhores tiradas feministas da série — o que seria problemático se os roteiristas não reservassem às três personagens femininas momentos igualmente icônicos.

Veredito Final

Brooklyn Nine-Nine é facilmente uma das melhores e mais completas comédias dos dias atuais, senão a melhor. Seu elenco é talentoso e diversificado, de nomes conhecidos e novatos. Suas tramas são divertidas, sem nunca perder a mão em tiradas contemporâneas, pertinentes, e adoráveis. Baseada em um humor mais humano, mais real, que não usa a depreciação ao próximo em sua estrutura, B99 ainda se trata de uma série policial, mas está longe de ser quadrada. Brooklyn Nine-Nine tem um roteiro original, personagens regulares bem desenvolvidos, e personagens secundários e convidados igualmente interessantes e divertidos. A comédia tem consciência social, mas não faz o papel de palestrinha. As referências que a série traz, tanto sobre a cultura pop quanto sobre a sociedade num aspecto geral, são inúmeras, mas nunca cansativas ou demagógicas. Para os amantes do romance, até os casais são interessantes — Jake e Amy são, de verdade, um casal pelo qual torcer. Por fim, e acima de tudo, a série é verdadeiramente engraçada e, assim como as melhores comédias o fazem, ela aquece o coração, nos coloca para pensar e, vez que outra, ainda nos arranca umas lágrimas — tudo isso em momentos adequados para tanto. Se você, por alguma razão, ainda não assistiu Brooklyn Nine-Nine, aqui está nosso selo de aprovação.

Texto escrito em parceria por Ana Vieira e Debora.

4 comentários

    1. Oi, Carol! A quinta temporada da série está em exibição na FOX nos EUA. Acredito que assim que a quinta temporada for finalizada, ela entra na Netflix!

    1. Oi, Guilherme! A quinta temporada ainda está em exibição na FOX, só após para termos uma data de estreia na Netflix. A quarta temporada levou mais de oito (!) meses para entrar na Netflix depois que foi finalizada pela FOX. 🙁

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