Recentemente renovada para a terceira temporada, One Day At a Time é mais uma das séries originais da Netflix que acabou caindo no gosto popular. Baseada em uma sitcom homônima que ficou no ar de 1975 a 1984, a série gira em torno da vida de uma família cubano-americana composta por Penelope (Justina Machado), uma ex-militar divorciada nascida nos Estados Unidos, que vive com sua mãe cubana, Lydia (Rita Moreno), e seus dois filhos adolescentes, Alex (Marcel Ruíz) e Elena (Isabella Gomez). Como personagem fixo central, temos também Schneider (Todd Grinnel), proprietário do prédio em que a família vive e que desconhece os conceitos de limites e privacidade, e acaba desenvolvendo uma relação íntima com a família Alvarez.
Apesar de ser, em teoria, um remake, o tema central da série acaba sendo completamente diferente da anterior, protagonizada por uma família branca estadunidense composta por uma mulher recém-divorciada e suas duas filhas adolescentes. Todas as questões políticas que fazem da produção da Netflix o que ela é e marcam sua importância social são originais, concebidas por Gloria Calderon Kellett e Mike Royce, desenvolvedores da série.
Atenção: esse texto contém spoilers!
A série já começa trazendo uma diferença possivelmente sutil, mas muito relevante com relação à representação de personagens latinas em produções estadunidenses: a família Alvarez não é apresentada pura e simplesmente como uma família latina, mas como uma família cubana. Cuba, de fato, faz parte da América Latina, mas a determinação exata da origem da família, com suas referências culturais próprias, vai contra a tendência geral de colocar todos os países de colonização latina como uma coisa única. Essa importante declaração, entretanto, é desmerecida pelo fato de nenhum dos atores que compõem a família ser, de fato, de origem ou descendência cubana — com exceção de Isabella Gomez, que é colombiana, todos são de descendência porto-riquenha. Apesar disso, a série com frequência denuncia e ironiza os estereótipos comumente associados a personagens latinos, e dá para dizer que tem o coração no lugar certo nesse quesito.
Outro ponto muito positivo de One Day At a Time, e único elemento que é de fato herdado da série original, é a centralidade das personagens femininas retratadas. Apesar de trocarem uma das filhas da série precedente por Alex, um menino pré-adolescente, o fato de a família ser composta por três gerações de mulheres autossuficientes e independentes é um dos aspectos mais importantes da produção. Sem cair no clichê de focar em “como uma mulher tem plena capacidade de chefiar uma família” — coisa que todas nós já estamos cansadas de saber —, a série foca nas dificuldades enfrentadas por mães solo ao ter que criar os filhos que elas não fizeram sozinhas e, paralelamente, manter uma vida pessoal e romântica fora do ambiente familiar. A composição da família também tem o benefício de mostrar personalidades completamente diferentes para cada uma das mulheres em questão e possibilitar a exploração de conflitos geracionais, além dos traços individuais de personalidade de cada uma. É por isso que é tão interessante o fato de o neto mais parecido com a avó em personalidade e em aparência física, e também o mais próximo dela, ser Alex, o menino, e não Elena, a menina.
É por meio de conflitos geracionais que podemos não apenas conhecer um pouco mais das personagens em si e suas formas de se relacionar, como também vê-las como seres orgânicos e mutáveis, capazes de crescimento e aprendizado dentro do que são suas personalidades originais. Também é muito interessante e atual ver como muitas vezes é Elena, a adolescente feminista, lésbica e politicamente engajada, que ensina lições à mãe e à avó sobre machismo, lesbofobia e militância política a partir de pautas identitárias, coisa que é tão marcante e difundido no discurso das gerações mais jovens da atualidade. Por outro lado, são as mulheres mais velhas, principalmente a avó — que reproduz uma feminilidade e papéis tradicionalmente femininos de forma mais marcada —, aquelas que são as maiores porta-vozes do discurso étnico de forma mais prática, uma vez que Elena, nascida nos Estados Unidos e de pele clara, não vive essa faceta de opressão de forma tão forte e evidente. Esse intercâmbio de vivências e realidades, especialmente por acontecer com frequência na forma de debates e argumentações, é um instrumento interessante de conscientização e formação política para as audiências que, com frequência, podem não ter interesse e/ou informação suficientes para buscar outros meios.
Se uma série protagonizada por mulheres latinas (cubanas) por si só já traz uma mensagem política forte, One Day At a Time dá ainda um passo adiante ao fazer com que uma das personagens centrais seja abertamente lésbica e militante. Na primeira temporada, vemos Elena tomar consciência de sua sexualidade em um momento extremamente simbólico — próximo ao seu aniversário de 15 anos, que em muitas culturas latinas, como no Brasil, é comemorado até hoje como um momento de transição entre a infância e a idade adulta —, e logo em seguida compartilhar a descoberta com o resto da família. O outro lado da moeda é igualmente interessante, uma vez que a família faz questão de que ela se sinta amada e bem recebida independentemente de sua orientação sexual. É bacana ver a preocupação de Penélope em demonstrar ostensivamente sua aceitação, mesmo que por dentro ela ainda tenha dificuldade em processar a informação, o que deixa claro a consciência da mãe de que a dificuldade de lidar com isso é um problema dela, e não da filha.
Alex, o primeiro a saber, age de forma natural, e guarda o segredo da irmã, que ainda não está pronta para compartilhar a notícia com o resto da família. A surpresa real é a forma como Lydia — idosa, conservadora e muito religiosa — recebe a informação: a personagem processa a novidade nos seus próprios termos e, em todos os estágios de assimilação, faz questão de acolher a neta como ela é, mesmo que a relação entre as duas seja difícil em alguns momentos. Durante a segunda temporada, esse tema só se desenvolve, com Elena militando ativamente em causas LGBTQ+ e arrumando sua primeira namorada, com apoio e ajuda da família.
O fato de Alex ser um menino é interessante porque ele traz uma masculinidade um pouco diferente do que estamos acostumados. Por exemplo, ele é muito mais preocupado com a aparência e com roupas do que é comumente visto em personagens masculinos heterossexuais. É também ele que tem a relação de maior proximidade e cumplicidade com a mãe e com a avó, e é quem assume a posição de cuidador quando é necessário — não na posição tradicional de macho alfa provedor, e sim de formas de cuidado mais tradicionalmente associadas a figuras femininas, como quando assume a frente da organização da festa de aniversário da irmã quando a mãe desmaia de exaustão ou quando pinta as unhas da avó internada e conversa com ela.
Com a personagem de Penelope, mais um discurso engajado politicamente vem à tona: a questão da saúde mental. A personagem sofre de Transtorno de Estresse Pós-Traumático por conta de seu tempo como enfermeira do exército na guerra do Afeganistão, e também de depressão. Apesar de trazer um discurso cívico de lealdade atrelado ao serviço militar que me é altamente incômodo, a abordagem sobre transtornos psicológicos de forma não-romantizada é bastante interessante. A princípio, Penelope se recusa a tomar os remédios prescritos pelo Dr. Berkowitz (Stephen Tobolowsky), médico para o qual trabalha, mas ela não demora a reconhecer a importância do tratamento e mudar sua postura. Lydia entra nessa questão como a voz do senso comum, que acredita que os remédios são desnecessários e terapia é coisa para “malucos”, mas até ela tem seu ponto de conversão mais à frente da trama, quando a filha resolve parar de tomar os remédios por conta própria e entra em uma crise depressiva profunda.
One Day At a Time também traz outras formas de discurso politicamente engajado, a começar pelo mais óbvio e mais ligado ao argumento central da série: imigração. Desde a chegada de Lydia aos Estados Unidos, aos 18 anos, até a geração de Alex e Elena, que são legalmente cidadãos estadunidenses por terem nascido lá, mas ainda são considerados estrangeiros e sofrem xenofobia. O assunto permeia a série de forma geral, mas é tratado mais a fundo em parte da segunda temporada, que faz alusão direta ao atual presidente do país e ao fortalecimento dos discursos conservadores e xenofóbicos que vieram com ele. Além desse claro posicionamento político-partidário, a série traz à tona a diferença de tratamento recebida por imigrantes de países periféricos e de países centrais, ao mostrar o tratamento recebido por Schneider — imigrante canadense — e pela família Alvarez em geral — imigrantes cubanos. O tema é aprofundado ainda mais ao tratar das diferenças de tratamento socialmente dispensadas aos membros da própria família, apesar de sua origem étnica comum, mostrando como Alex — de pele mais escura e características físicas “latinas” mais evidentes — é tratado de forma diferente de sua irmã Elena — que possui a pele branca e maior “passabilidade”.
Apesar de todos os muitos pontos positivos da produção, do ponto de vista político, somos com frequência levados a questionar se a Guerra Fria realmente acabou. O discurso anti-Cuba é muito presente e marcante na série, escondido por uma camada fina de orgulho patriótico. Apesar de a família Alvarez expressar orgulhosamente sua cultura e suas origens cubanas, são eles mesmos que difundem o discurso contrário, que traz Cuba como um país anti-democrático, repressivo e atrasado, em comparação com a “terra da liberdade e da democracia” que são, supostamente, os Estados Unidos. Nesse contexto sutil, recebemos não só a figura desgastada do “sonho americano” em sua forma repaginada e disfarçada por um suposto viés crítico que, em verdade, joga um governo no fogo para tentar salvar, por baixo dos panos, a imagem cuidadosamente construída do país como um todo. Os Estados Unidos são representados não só como o epítome da liberdade e das oportunidades iguais para todos, como uma nação solidária que recebeu as pobres crianças refugiadas do regime castrense, quando em verdade é — e sempre foi — um país institucionalmente avesso à imigração vinda de países periféricos, longe de ser o mais receptivo a refugiados políticos, como a política recente em relação aos refugiados sírios deixou bem claro.
É triste reconhecer essa propaganda velada em uma obra que tem tantos méritos, mas guardadas as devidas ressalvas, é uma série que traz discursos importantes e abre as portas, de maneira bastante didática, a muitas discussões que precisam sair de nossas bolhas da internet e ocupar espaços mais amplos. Talvez o formato palatável da série seja um começo, apesar de seu humor engajado correr um risco real de não atingir audiências mais amplas do que essa própria bolha. Ainda assim, para aquelas de nós sedentas por opções que nos permitam deixar nossas velhas sitcoms guardadas a salvo em nossas memórias carinhosas — porque certamente não sobreviveriam a uma análise minimamente crítica — One Day At a Time é a série de comédia familiar que estávamos esperando.