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Manifesto em favor do romance “água com açúcar”

Quando tinha meus quatorze ou quinze anos de idade, meu melhor amigo era muito fã de livros da Agatha Christie, e me lembro de discutir com ele sobre como alguns livros policiais perdiam completamente a graça depois de descobrirmos quem era o assassino. Como esse era o gênero preferido dele, ele não conseguia entender, por outro lado, como eu podia gostar tanto de livros e filmes absolutamente previsíveis, com casais que seguem um rumo muito clássico e que a gente sente o cheiro do final logo na música de abertura.

Confesso que eu mesma nunca reli nenhum livro policial enquanto lembrava como terminava, mas ao longo desses anos como espectadora e leitora, encontrei muitos romances complexos e cheios de camadas em que o amor entre os personagens era apenas um chamariz para muitas outras coisas. Alguns anos atrás, se alguém me perguntasse o que eu mais gostava de ler e assistir, talvez até respondesse algum livro ou filme muito cabeça e jamais um romance contemporâneo. Hoje, porém, não foi para isso que vim aqui, mas sim para defender a beleza de uma boa e velha história “água com açúcar”.


Talvez isso tenha muito a ver com a loucura dos dois últimos anos pandêmicos, mas faz um bom tempo que a minha busca tem sido um romance previsível, simples e muito direto. Me entreguei aos k-dramas e aos romances com a mesma facilidade com que anos atrás me entreguei às telenovelas e à fanfiction. Quando o mundo inteiro exige de você tantas estratégias de sobrevivência em meio ao desconhecido, chega um ponto em que até mesmo a sua mente pede um descanso, uma fuga, uma esperança de dias melhores.

Uma das principais características do que aqui defino como um romance “água com açúcar” é essa previsibilidade confortável. Muitas vezes, quando vemos um livro mal avaliado na internet, isso acontece porque a subversão do enredo aconteceu de uma forma que saiu muito desse conforto — e esse não é o objetivo principal de muitas das pessoas que pegam esse livro para ler.

Existe uma alegria inexplicável em ficar feliz porque algo deu muito certo da forma como você esperava. Na nossa vida cotidiana fazemos isso constantemente, ao nos alegrarmos quando nossos planos dão certo ou nos entristecermos quando vão por água abaixo. Uma história previsível muitas vezes evoca esse sentimento, e não é de se estranhar, também, que não nos incomode em nada que vez ou outra alguns artifícios mágicos apareçam (e, aqui, não vou chamá-los de Deus Ex-Machina, mas sim de Fada Madrinha).

Aqui no Brasil, ainda lembro o quanto crescemos assistindo telenovelas, e, muitas vezes, esperando o enredo da semana sair na revista ou no jornal, para então seguirmos para a nossa semana e assistir cada um dos capítulos sabendo o que aconteceria. Sempre escutamos muito a velha ladainha de que essas histórias são todas iguais e que essas fadas madrinhas são sempre as mesmas, mas acredito que quem ainda repete isso segue mal informado. A cada dia, as temáticas evoluem para diversos desdobramentos e subgêneros. Se lemos The Ex Hex, da Erin Sterling, e Teto para Dois, da Beth O’Leary, por exemplo, sentimos ali aquela premissa parecida de romance — e sentimos a diferença das temáticas e dos enfoques com muita força. Da mesma forma, não podemos dizer que os k-dramas Romance is a Bonus Book e Hotel Del Luna, ou mesmo o aclamado Pousando no Amor, sejam iguais.

Nessa parte, porém, tendo a acreditar que alguns elementos a mais talvez estejam à nossa disposição. Em geral, utilizamos “água-com-açúcar” como uma forma pejorativa de nos referirmos a algo, apesar de uma boa garapa ser capaz de acalmar os nervos como poucas outras bebidas conseguem. Em sua obra Um Teto todo Seu, Virginia Woolf discute sobre essa questão dos valores que são transferidos para a ficção: “Este livro é importante, a crítica presume, porque trata da guerra. Este livro é insignificante porque trata dos sentimentos das mulheres na sala de pintura”. Quantas vezes reproduzimos, sem querer, a ideia de que esses temas tradicionalmente tidos como “femininos” são fúteis e banais? Estamos constantemente sob o jugo de uma sociedade que condena pela aparência de algo sem analisar a profundidade. O que é, de fato, um bom livro, um bom filme, uma boa série? Para quem? E, principalmente, para que momento das nossas vidas? Apesar da resistência sempre presente em relação a esses temas, podemos observar o quanto o romance “água com açúcar” (aqui um adjetivo que cada vez mais ganha o meu carinho) tem ganhado novas roupagens e novos talentos.

Nesses espaços, observa-se que cada vez mais temáticas como abuso, problemas de relacionamento, ansiedade, dentre outras situações que acometem diversas pessoas, podem se fazer presentes e ser discutidas de forma saudável sem o peso do holofote. Se o tema principal do livro ou da série é um romance, e a personagem principal tem ansiedade ou teve um relacionamento abusivo, podemos mostrar a situação, alertar e mostrar cuidados sem que isso se torne uma cartilha do SUS. Podemos chegar mais rapidamente na leveza da discussão sem tabus, com responsabilidade, de um modo que muitas vezes outros espaços não permitem. Nesse aspecto, a arte continua (e ouso dizer que continuará) tendo um papel importantíssimo dentro da construção da nossa cultura.


Defender o romance “água com açúcar” torna-se ainda mais fácil quando lembro dos talentos que surgem a cada ano dentro dessa área. Existe uma habilidade gigantesca em utilizar um tema batido e refeito diversas vezes e inovar dentro do gênero. Muitas vezes, a verdadeira inovação não se trata de descobrir a pólvora, mas sim de trazer, com primazia, um ponto de vista. A cada ano, recebemos diversas mídias que têm novos rostos e corpos (não mais necessariamente brancos e magros), que ocupam espaços na sociedade. Quando abraçamos a beleza do entretenimento leve, da capacidade de relaxar, retiramos também essa necessidade constante da necessidade de ser produtivo — até mesmo com nosso lazer.

Conseguimos, então, ao tirar a roupagem do julgamento, verdadeiramente apreciar a beleza de uma boa garapa. E acredito que esse remédio de vó para os nervos ainda vai continuar sendo necessário enquanto for uma necessidade humana se conectar com a esperança de dias melhores.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

1 comentário

  1. Também senti que, por causa da pandemia, procurei cada vez mais tanto livros quanto séries mais previsíveis. É como você disse no texto, quando as coisas estão dando sempre errado e esse cenário da realidade não parece ter saída, é muito natural procurar por algo que se sabe que vai dar certo no final – e acho que isso explica, em partes, até o sucesso de Pantanal e outras coisas nostálgicas, como Top Gun. Adorei!

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