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Sandy & Júnior previram tudo: a vida emocional de jovens adultos do terceiro milênio

O Brasil do fim dos anos 1990 e início do novo milênio foi um dos lugares mais perigosos para um ser humano construir as bases de seu caráter e firmar sua carapaça emocional. Essa conclusão — à qual cheguei tão somente observando vivências pessoais e sem qualquer embasamento teórico e metodológico — é confirmada principalmente se o ser humano em questão estava exposto à cultura de massas exaltada aos fins de semana em Domingões, Domingos Legais ou Sabadaços, e à arte em forma de capas de CDs dos irmãos Sandy & Júnior que devem ser trocadas sazonalmente.

A dupla de irmãos que posou em um cenário montado com estações marcadas que o Brasil jamais viu, já não era tão criança assim quando o fim dos anos 1990 batia em nossa porta. Nascidos na primeira metade da década de 1980, chegaram ao novo milênio adolescentes que transmitiam a nós, crianças, noções de amor romântico que destruiriam nossa vida emocional anos depois. Junte a isso narrativas altamente idealizadas encenadas por novelas infantojuvenis latino-americanas exibidas pelo SBT e chegamos ao segundo decênio de 2000 em um contexto em que jovens de 20 e alguns anos já se decepcionaram até o último fio de cabelo com a realidade e se dedicam a textões cobrando interesse ou a publicações em rede social de microblogging afirmando ter vida sexual ativa ou a estilos de relacionamento ainda alternativos ou a piadas autodepreciativas em que afirmam ser os únicos seres da Terra sofrendo as dores da rejeição.

Sandy e Júnior nos prometeram muito. Em 1993, cantaram “Meu Primeiro Amor”, canção em que o eu lírico foi estranhamente feliz em sua primeira paixão infantil e afirma: “eu te conheci, foi tão bom pra mim”. A letra apresenta profunda desconexão com a realidade, uma vez que a maioria das narrativas de amores de criança tem caráter unilateral e termina com o mini-ser apaixonado mandando uma cartinha para seu objeto de afeto, mas não obtendo resposta porque o significant other da pré-escola ainda não sabia ler (depoimento pessoal baseado em fatos reais).

“Com Você”, de 1994, e “Além da Imaginação”, de 1995, narram outros amores correspondidos e elevam as expectativas do ouvinte, que espera que suas fantasias românticas platônicas de escola se concretizem em uma dança em que o casal dá as mãos e gira em ritmo coordenado durante o recreio. Não aconteceu pra quase ninguém.

Em 1996, Sandy & Júnior ampliam as percepções do público acerca do amor romântico quando cantam sobre rompimento. Na faixa “Não Ter” do álbum Dig-Dig-Joy, demonstram o vazio (que “vira fantasia” — com quem meu amor perdido está agora? será que um dia me amou? “quanto de mim ainda resta em você?”) de um romance que chegou ao fim. O ouvinte, cuja idade não ultrapassa os 15 anos — talvez nem os 10 —, internaliza o desespero do eu-lírico que brada “minha vida é viver de você”. Não surpreende que a geração criada ouvindo esses versos seja a mesma que compartilha textos intitulados com “Por que nem sempre ficamos com o amor de nossas vidas” ou algo semelhante.

O medo de se entregar a novos relacionamentos aparece em “Inesquecível”, lançada no ano seguinte. Atormentado pelo encerramento da relação anterior, o eu-lírico se vê novamente apaixonado e sofre ao se confrontar com a possibilidade de finitude desse sentimento.  O medo — refletido em conversas de bar dos jovens que agora têm respaldo legal para beber — encontra bases no mesmo contexto social em que até mesmo certas vertentes da antropologia teorizam sobre “liquidez” das relações estimulada pela liberdade sexual, maior desprendimento de padrões de comportamento, inserção de mulheres no mercado de trabalho, flexibilização de fronteiras físicas e digitais — enfim, possibilidades. Chances de “dar errado” que, ao mesmo tempo, se confundem com o ideal romântico de um amor para toda a vida (ou “mais que uma história pra viver”) foram previstas pela dupla de irmãos e sua equipe de compositores ou pautaram o subconsciente do ouvinte?

Paralelamente a noções que confundiram a mente infantil dos ouvintes em relação ao amor romântico, Sandy & Júnior traçaram narrativas que no vocabulário de 2017-2018 são definidas como “empoderadoras”. Um exemplo é “Bye Bye”, de 1999, canção na qual a personagem Sandy resolveu mudar, por um fim, pois se tocou e decidiu/demorou, mas aprendeu. A canção alerta o público sobre reciprocidade — tema que também seria tendência anos depois: “só vou amar de novo assim se alguém demonstrar o mesmo amor por mim”. Não preciso dizer que tudo não passou de mais uma promessa frustrada e os romances seguintes desenrolaram em ghosting (“Desperdiçou”, de 2003) e obsessão por controle com pitadas de ansiedade (“Quando Você Passa”, de 2001).

Os filhos de Xororó, que hoje repousam tranquilamente nos seus consolidados casamentos, talvez nunca tenham refletido sobre os atravessamentos das letras que juntos interpretaram e a vida de jovens frustrados com noções de amor romântico construídas com ajuda da mídia mainstream dos anos 1990. O mundo de fantasia anunciado pelos irmãos, além de avivar urgências românticas nos corações nascidos em meados da década, previu — e pode ser usado como método de análise a observação de — questões que incomodariam essa mesma geração agora munida de textões, tweets e publicações no Medium.

Da primeira paixonite — que parecia vir para o bem, mas tratou de causar as primeiras marcas nesses corações —, ao grito de basta! “não me enrole, nem me use, fique longe, não abuse”, passando pela dor de ter que lidar com traumas românticos, o cancioneiro assinado pela dupla parece desenvolver a vida emocional de pessoas de classe média com a cabeça sempre às voltas com tantas emoções e que pegou mania de problematizar os mínimos aspectos da existência humana.

Previram a insegurança, o apego e a vontade de romper com situações que já não favorecem principalmente mulheres em relacionamentos amorosos? Talvez. Influenciaram o subconsciente de uma geração brasileira com suas letras sutis e simples sobre as emoções? Talvez. Sandy & Júnior, como bom fenômeno cultural, de entretenimento, público e vendas, fizeram mais que falar sobre amor e juventude: registraram definitivamente na história o modelo romântico de uma época que vem sendo amplamente questionado algumas décadas depois.

Resta a nós questionar: construiremos novos padrões, além de problematizar na internet o que está posto? A música da infância e juventude dos nossos descendentes terá mais pé no chão e as comédias românticas terão mais finais nem tão felizes — apenas reais? Assim terá graça? Confira nos álbuns digitais dos próximos fenômenos fonográficos brasileiros.

1 comentário

  1. Faltou comentar a exigência extrema da adolescente que aos 15 anos não aceita nada menos do que um amor perfeito e prefere voltar para as asas da mamãe e do papai do que encarar os percalços de um relacionamento sofrido em “Etc e tal”. A melhor parte, claro, é quando Sandy, absolutamente empoderada, manda uma banana para o pretendente fora dos seus padrões. Realmente eles previram tudo!

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