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Lirismo e dor em O Peso do Pássaro Morto

Um romance escrito em versos: é dessa maneira que O Peso do Pássaro Morto, primeiro livro de Aline Bei (Editora Nós, 2017), é construído. O romance-poesia conta a vida de uma mulher dos seus oito aos seus 52 anos. Mas, para que não digam que não fui sincera e não preparei os leitores para o que acontece, de fato, nesta história, vou reformular a minha frase: este romance-poesia conta as dores de uma mulher. Porque página após página, são as dores de uma vida que encontramos. Porém, a forma, a cadência do texto que a autora nos entrega se faz tão envolvente que impulsiona a leitura, por mais tristes que algumas passagens venham a ser.

O Peso do Pássaro Morto começa de maneira lúdica, com a voz de uma criança que nos conta:

“seu Luís é um velho sabido com cheiro de grama.
       acho que o desodorante dele
é verde
e o corpo deve ter uns 100 anos de tanta ruga
na pele toda, um homem
tartaruga.
a casa que ele mora
parece uma toca
tem muita árvore antes de começar pela
Sala
de sofá
cinza e um eterno presépio
que fica o ano inteiro na mesa de centro
com o menino jesus fora
da manjedoura.”

Aos poucos essa criança nos mostra dores de sua infância. Dores pela perda de alguém querido. Dores que são compreendidas dentro de certa incompreensão, mas sentidas de maneira tão profunda que jamais são esquecidas.

A criança dá lugar a uma adolescente de 17 anos, que sente toda uma ânsia por viver, por ser livre. Mas esse romance fala sobre sofrimentos, assim, o que temos é uma quebra dos desejos, da liberdade.

“meu grito
estava a ponto de explodir quando
a Paula me puxou pro banheiro me pedindo
       calma.
que nojo me dava do amor
virando posse, das
pessoas virando cruas […]”

E, logo, a adolescente transforma-se em mulher adulta, e se vê envolta por uma maternidade complicada, imersa em lembranças que doem sem cessar.

Desde o princípio do livro, Aline Bei conduz a forma que lemos cada passagem através da maneira como distribui as palavras pela página. Elas se espalham; à direita, à esquerda. Ficam maiúsculas, minúsculas, em itálico. Por vezes as palavras se mostram soletradas, por vezes têm poucas companheiras na página. Os versos levam nosso olhar para cima, para baixo. Há pedaços de página em branco, vácuos de palavras. O jeito como o texto é construído nos faz ler rápido sem respirar e depois devagar. Segundo o crítico Terry Eagleton, em Como Ler Literatura (L&PM, 2019), “A poesia é um bom exemplo para mostrar que forma e sentimento não se opõem necessariamente. A forma pode abafar, mas também realçar o sentimento”. Aqui, neste romance-poesia, a forma realça todos os sentimentos de sua personagem e nos faz sentir junto com ela cada detalhe do que nos é narrado.

Dessa maneira, quando este texto nos fala coisas como “puta”, não é possível que a leitura seja assim, direta, que a palavra seja lida como todas as outras que formam o verso. Ele te diz “puta” com letras separadas, desenhadas, escorrendo pela página, com o som de cada letra ecoando em nossos ouvidos. E aí sentimos toda a carga do que é dito. Toda a dor gerada.

“[…]
eu ia te contar,
mas não assim. não desse jeito, Pedro,
escuta.
e ele fugindo de mim com o punho

cerrado, a boca
molhada enchendo os corredores
com as letras
P
U
T
A” 

Em contrapartida, nos momentos em que a personagem procura amenizar algumas das tantas dores da sua vida, a forma de escrita também ameniza. E, por vezes, sem que percebamos, somos, por exemplo, levados a cantar junto com a ela.

“você nasceu de uma noite, era verão.
que mais? tinha a lua
bem bonita no céu, não senti
medo.
então eu cantava pra ele
a música do
sabiá lá na gaiola fez um buraquinho
voou voou
voou voou
o menino que gostava tanto do bichinho
chorou chorou chorou
chorou
sabiá lá na gaiola fez um
buraquinho e o lucas no meu colo, a cabeça no
       peito,
voou voou
voou voou”

Conteúdo e forma, portanto, contam essa história. Sem a maneira como Aline Bei distribui suas palavras pelas páginas, a narrativa de O Peso do Pássaro Morto seria outra, teria outro impacto sobre nós. E, talvez, não acompanharíamos com tanto sentimento a cadência descompassada de uma vida.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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