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O Peso do Pássaro Morto: quantas perdas cabem na vida de uma mulher?

É com essa pergunta provocadora do título que nos deparamos logo na primeira frase da orelha de O Peso do Pássaro Morto, romance de estreia da jovem escritora paulistana Aline Bei. Publicado em 2017 pela Nós Editora, o livro fino, de cara minimalista e sem sinopse na quarta capa pode acabar passando despercebido nas prateleiras — mas jamais passará despercebido por quem o ler.

Com uma proposta contemporânea de prosa desestruturada, muito diferente do convencional, Aline concebe uma narrativa que mistura a ideia de diário com fluxo de consciência — uma ideia que, recentemente, lhe rendeu o prêmio São Paulo de Literatura na categoria destinada a estreantes com menos de 40 anos. De fato, é possível dizer que seu livro é um pequeno romance de formação subjetivo em que acompanhamos a protagonista — cujo nome desconhecemos — em diferentes idades, dos 8 aos 52 anos, e é perceptível, pelo tom de sua voz, o cuidadoso trabalho técnico da escritora: o texto realmente parece ser contado por pessoas em idades diferentes.

Dito isso, porém, é necessário ter estômago. E uma caixa de lenços. Afinal de contas, se me permitem ainda nessa parte do texto um pequeno spoiler que responda a pergunta do título, muitas são as perdas que cabem na vida de uma mulher.

Atenção: este texto contém spoilers!

Em seu livro Fazes-me Falta, Inês Pedrosa nos presenteia com um trecho tão dolorido quanto verdadeiro:

“Morri tantas vezes antes de morrer. Morri sempre que o amor parava, e o amor estava sempre a parar dentro de mim.”

Foi ele que ecoou em minha cabeça durante toda a leitura de O Peso do Pássaro Morto, a começar pela orelha e passando, inclusive, pela dedicatória. Aline tem a coragem e a sensibilidade de dedicar seu trabalho “ao canário que, assustado em caber na palma, morreu em sua mão” — uma passagem real da vida da autora que, durante a infância, acabou por apertar demais o passarinho que gostaria de salvar. O peso do pássaro morto que escreve no título fica claro desde então, mas para além de sua experiência pessoal, ele representa uma importante guinada na vida da protagonista.

Perder a melhor amiga aos oito anos de idade pode significar, também, perder um tanto da infância e da inocência. Em suas singelas palavras, a protagonista conta ter perdido o cuidado. Depois que Carla morreu, ela atravessou a rua sem olhar para os dois lados, porque isso já não parecia mais ter tanta importância. Ao elucubrar sobra a morte, ela primeiro pensa que pode ter sido sua culpa: a amiga nunca ficava doente, e ela sugeriu que arranjasse uma gripe porque, assim, poderia conhecer o seu amigo curandeiro. Será que Carla teria, então, desafiado um cachorro de propósito só para ser curada depois? Ao pensar insistentemente na situação da morte da amiga, ela se pergunta se “existe vida durante a mutilação ou já se morre de pronto só por saber que seu corpo ficará em pedaços”; mais uma grande metáfora que se relaciona com a história geral do livro, das perdas e, até, com Inês Pedrosa: a gente morre em nossa primeira perda ou vivemos enquanto elas acontecem?

Se a primeira perda que temos na vida abre uma porteira, não é possível saber — mas que depois da morte de Carla a vida da narradora se tornou um trágico check list, isso lá é verdade. Mesmo é também verdade que a autora tem uma capacidade brilhante de transformar dor em poesia. Passando por problemas de bullying na escola até por parte dos próprios professores, no fim da adolescência a personagem vivencia um dos piores momentos de sua vida: um estupro extremamente violento que lhe deixa uma eterna lembrança personificada por Lucas, seu filho, com quem ela jamais vai conseguir se conectar de verdade. Por muitas das próximas páginas (e anos), acompanhamos os desencontros entre mãe e filho; nenhum dos dois tendo culpa de nada, os dois sendo obrigados a conviver com o peso um do outro. É em um desses momentos que o peso do pássaro morto retorna com a toda a sua expressividade: certa vez, Lucas brincava com seus amigos de atirar com estilingues nos pássaros. Ao pegar na mão uma das aves mortas, sua mãe fica extremamente incomodada, ao passado que todos na vizinhança dizem que aquilo é só coisa de criança.

“Isso é tudo
menos coisa de criança.
Isso
é o lugar onde nasce
a dor.
Isso é
tudo o que destrói a possibilidade de um mundo
um pouco menos cruel
com os mais fortes abusando dos
mais fracos e o pai do lucas
dentro dele
e o pai
do lucas
dentro de
mim.”

O peso do pássaro morto na mão da mãe do menino lhe relembrou de tudo o que havia de errado e horrível no mundo, e a relação com o menino só foi ladeira abaixo. A partir daí, mais encontros desconexos e algumas tentativas frustradas, ora de um, ora do outro, de fingirem que são uma dupla de mãe e filho normais. A maternidade compulsória e solitário é muito presente em toda a vida adulta da protagonista e, portanto, retratada no livro sem muita demagogia. Não é uma visão do assunto que estamos acostumados a encontrar e, por isso mesmo, é uma visão à qual também precisamos conhecer e entender.

Já em idade mais avançada, é em um cachorro de rua, preto e enorme, que a personagem vai descobrir uma verdadeira companhia e dividir o carinho que tanto tinha para compartilhar. Metaforicamente, ele pode ser encarado como a depressão, no entanto: existe uma tirinha na internet que compara a depressão a um grande cachorro preto, e no livro, ele meio que toma conta de toda a vida da personagem. Mas metafórico ou não, o animal possui um nome bastante significativo — Vento — e se torna uma grande presença na história, apresentando para a narradora (e seus leitores) um novo capítulo. Por fim, fica a pergunta: será que ele também se vai? E o que aconteceria se ele se fosse? Muitas são, de fato, as perdas que cabem na vida de uma mulher.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!

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1 comentário

  1. A mãe dela quando era pequena dizia que “o amor era um vento”, acho que daí surgiu o nome para o cachorro.w

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