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Oscar de Melhor Documentário: uma reflexão sobre diversidade

A 92ª cerimônia do Oscar, premiação da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas, acontecerá no início de fevereiro. O prêmio visa conceder, anualmente, aos profissionais da indústria, um prêmio em reconhecimento à excelência do trabalho na arte da produção cinematográfica. E, conforme uma aparente tradição da Academia, este é mais um ano em que não há qualquer mulher indicada no prêmio de Melhor Direção, bem como há apenas um filme dirigido por mulher dentro da categoria de Melhor Filme e apenas um dentro de Melhor Filme em Língua Estrangeira.

O que parece um choque, tendo em vista a quantidade de trabalhos elogiados e aclamados produzidos por mulheres no ano de 2019, como Retrato de Uma Jovem em Chamas, Atlantique, The Farewell e até mesmo Adoráveis Mulheres, em que Greta Gerwig foi excluída do prêmio de Melhor Direção, mesmo sendo indicada em todas as outras principais categorias da premiação, é na verdade mais um reflexo dessa política de exclusão de mulheres que é adotada pela maioria dos votantes. Mesmo com os milhares de argumentos em torno de “mulheres não foram indicadas em x categorias porque simplesmente não realizaram um bom trabalho”, há de forma bem nítida uma estratégia política de deixar mulheres fora dos maiores prêmios, e não meramente um caso de falta de qualidade desses projetos.

Essa estratégia política, que também se encaixa em outras premiações e associações dentro da indústria cinematográfica, representa de forma direta a estrutura social e política que visa a opressão e a dominação da mulher na sociedade, e isso de uma forma muito clara. Não se trata apenas de avaliar a qualidade de uma obra, mas de manter uma superestrutura de privilégios e dominação que enfoca o homem como o grande sujeito, ou melhor, o único verdadeiro sujeito de nossa sociedade. A falta ou a pequena parte de indicações e de premiações que as mulheres se inserem é uma decorrência de como a perversa lógica do machismo e do patriarcado atuam sobre elas dentro de qualquer espaço, e de forma ainda mais intensa nos espaços públicos.

Basta pensar a velha dicotomia do público e do privado, bem como também a divisão do trabalho, conceitos e estruturas que são determinantes para nossas vivências enquanto mulheres. Essas definições trabalham diretamente em uma lógica de separação-hierarquização. Primeiramente, separam-se os trabalhos ditos masculinos e femininos e, logo após, hierarquizam, em que trabalhos “masculinos” são superiores aos trabalhos “femininos”, bem como reservam ao homem o espaço do trabalho público, a atuação no mundo exterior, político e social, dotado de cidadania, enquanto a mulher é reclusa e custodiada dentro do espaço doméstico, o mundo privado, sendo responsabilizada por um trabalho reprodutivo, de sustentar o lar para sua família enquanto mãe, filha e esposa. E nessa lógica o cinema atua. As mulheres, em um primeiro momento, são afastadas e desencorajadas a estarem nesses espaços, fazendo com que haja desinteresse e até mesmo medo de entrarem nesses ambientes. E, além disso, as mulheres que conseguem afastar-se dessa lógica limitante e opressora, sofrem com a fugacidade, por estarem a todo momento em um espaço de constante intimidação e exclusão por papéis de gênero, mas também pela falta de reconhecimento, o que acontece com o Oscar e o Globo de Ouro, por exemplo.

Mesmo com as constantes mudanças e com o engajamento de milhares de mulheres para que sejam reconhecidas como sujeitos relevantes e capacitados para realizar obras primas cinematográficas, e também para que não sofram com a violência de gênero dentro desses espaços de produção, como o famoso Times Up, o Oscar vem concretizando mais uma vez a exclusão de mulheres desses espaços. Em 2009, quando Kathryn Bigelow, diretora de Guerra ao Terror, ganhou pela primeira vez na história da premiação, o prêmio de Melhor Direção, a sociedade pensou, ou melhor, as mulheres pensaram que era o momento certo, o caminho correto para uma verdadeira transformação de toda essa indústria. Mas não foi.

O que acontece é que, é apenas em categorias pequenas e que nem sempre são consideradas em sua importância e relevância, como Melhor Documentário, Melhor Curta Animado, etc, é que as mulheres conseguem se inserir e serem indicadas. Não é de qualquer forma rebaixando o trabalho dessas categorias, mas é de reconhecer que o mundo inteiro quando parar para fazer sua maratona pré-Oscar será priorizado, e muitas vezes o único contato que tem com a premiação, são as principais categorias: Melhor Filme, Melhor Direção, e Melhores Atores. As categorias técnicas e também as de Melhor Documentário, não são da mesma forma observados. E isso aconteceu em 2020 de forma gritante.

Em 2020, na categoria de Melhor Documentário, todas as indicações possuem pelo menos uma mulher em sua produção (lembrando que a premiação visa gratificar os produtores e não diretores) e quatro, dos cinco indicados, são dirigidos ou codirigidos por mulheres, o que é uma diferença gigantesca das categorias mais visualizadas, isto é, Melhor Filme e Melhor Direção, em que só há um único filme dirigido por uma mulher dentro de Melhor Filme, enquanto em Melhor Direção não há nenhum.

The Cave, de Firas Fayyad

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Dentre os indicados, The Cave é o único indicado que não há direção de uma mulher, sendo conduzido por Firas Fayyad, um diretor sírio já renomado por seu trabalho em Últimos Homens em Aleppo (2017), mas que não é o retrato simples de um homem branco cis que domina a premiação. Mesmo com seus privilégios de estar inserido nesse espaço, foi detido pela Polícia da Imigração quando ia aos Estados Unidos para o International Documentary Association’s Documentary Awards e é reconhecido como uma pessoa não-branca que não deveria estar lá. Para além disso, The Cave conta com duas produtoras: Sigrid Dyekjær e Kirstine Barfod, ambas dinamarquesas, consagrando uma grande diversidade dentro da categoria.

Democracia em Vertigem, de Petra Costa

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Passando para os dirigidos por mulheres, temos a grande surpresa do Oscar para nós, brasileiros, que é a presença do Democracia em Vertigem, documentário dirigido pela já conhecida e renomada Petra Costa, que se consagrou em trabalhos intensos e poéticos como Elena (2012) e O Olmo e a Gaivota (2014). Além de ser realizado por uma diretora brasileira, e também produzido por Joanna Natasegara, o que já é um feito e tanto para nosso país que coleciona históricos de destruição da Ancine e de não valorização da nossa produção cultural, o documentário fala diretamente sobre o flerte do Estado Brasileiro com governos autoritários e antidemocráticos, legitimando um golpe que depôs a então presidente Dilma Rousself em um processo repleto de machismo e homenagens a torturadores. Um filme necessário e relevante na conjuntura atual e um símbolo no Oscar para representar o que está acontecendo no nosso país.

For Sama, de Waad al-Kateab  

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O próximo indicado na categoria de Melhor Documentário é For Sama, dirigido por Waad al-Kateab, uma diretora síria que registra a sua própria vida durante cinco anos na cidade de Aleppo, em forma de vídeo-diário, explicando para sua filha, Sama, como resistiu aos ataques do ditador Bashar Al-Assad e lutou por uma Síria Livre. Documentando a violência que cercava aqueles espaços a diretora propõe um novo olhar sobre as atrocidades que se passam naquele lugar. É o primeiro longa da diretora e ainda sim foi premiado no Festival de Cannes e disputa um BAFTA, sendo um feito e tanto.

Honeyland, de Tamara Kotevska e Ljubomir Stefanov

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Honeyland, que além de estar indicado em Melhor Documentário, foi indicado em Melhor Filme em Língua Estrangeira, é codirigido pela talentosa Tamara Kotevska. A produção da Macedônia conta a história da última criadora de abelhas da Europa que tenta salvar os insetos para que eles retornem ao equilíbrio natural. No entanto, um grupo de apicultores chega ao local e ameaça o ecossistema desses animais. Um documentário que reflete a perversidade do capitalismo, a necessidade de repensar nossos hábitos e atuar por um ecossistema melhor e um filme que já fez história.

American Factory, de Julia Reichert e Steven Bognar

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Por fim, há o documentário American Factory, ou Indústria Americana, produzido pela Netflix e codirigido por Julia Reichert, uma veterana na premiação. Recebeu sua primeira indicação em 1978 por Union Maids e logo foi seguida de mais diversas indicações, como em 1984 por Seeing Red, em 2010 por The Last Truck: Closing of a GM Plant, e agora, em 2020, além de ter recebido um Emmy por seus trabalhos. American Factory conta o processo de recepção da alta tecnologia chinesa na indústria norte-americana. É um filme que fala bastante sobre diferenças culturais, como o capitalismo atua nesse novo mercado e como os trabalhadores sofrem com o processo de automação, gerando novos dilemas e problemas para a classe média dos Estados Unidos. Para complementar o documentário, a Netflix também lançou American Factory: A Short Conversation with the Obamas, que é uma conversa entre Barack e Michelle Obama com os diretores do filme, Julia Reichert e Steven Bognar.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Vieira.