Categorias: LITERATURA

As pessoalidades compartilhadas de Joan Didion

“Innocence ends when one is stripped of the delusion that one likes oneself” (“A inocência acaba quando alguém é despojado da ilusão de que gosta de si mesmo”, em tradução livre). Me deparei com essa frase ao acaso em uma rede social. Não lembro ao acerto em que ano, mas lembro da sensação: queria gravar essas palavras no peito, se possível, no ponto mais profundo do coração. Era tanta verdade em uma única frase que não consegui aguentar. Precisava saber quem a havia escrito.

Foi então que conheci Joan Didion. Nascida em Sacramento, capital do condado da Califórnia (EUA), Didion marcou o jornalismo americano escrevendo sobre um mundo parado em uma sociedade em constante transformação. Imaginem a minha tristeza ao descobrir que a vasta obra de uma das principais ensaísta estadunidenses ainda encontrava um pequeno mercado editorial no Brasil. E como parte do grupo de brasileiros que ainda não dominam a língua inglesa, me vi limitada a curtas traduções de um ou outro texto seu.

Até o final de 2020, as únicas obras de Didion com traduções recentes para o português eram O Ano do Pensamento Mágico (2005) e Noites Azuis (2011), ambos publicados pela HarperCollins. Os livros apresentam relatos pessoais e reflexões de Didion sobre a perda e o luto pelo marido, o escritor John Dunne, e sua filha, Quintana Roo, os quais morreram em um intervalo de dois anos.

Em 2012, a premiada jornalista brasileira Eliane Brum publicou em seu site um texto sobre a profundidade da obra de Didion. Na publicação, ela diz: “Com 1 metro e 56 centímetros e meio de altura e a silhueta de quem poderá ser levada embora na primeira brisa, Joan Didion é uma escritora feroz. Examina a si mesma sem autopiedade ou pieguice e entrega-se ao leitor com todas as suas marcas. A grandeza de seu texto está na capacidade de entrelaçar a tragédia às pequenas delicadezas do cotidiano”. E, realmente, Brum estava correta em sua análise. A fragilidade externa de Didion pode nos fazer ignorar toda a sua potência. Uma característica de poucos. Ser capaz de observar de forma crua cada ação, percepção e dor para buscar compreender as transformações da vida sem temer as palavras que estarão no papel.

No momento em que o Brasil ultrapassa os 390 mil mortos pela Covid-19, uma frase de Didion crava o sentimento de luto que encobre o país, além de exemplificar a simplicidade de sua eloquência. “A vida muda num instante. Você se senta para jantar e a vida que você conhecia acaba de repente”. Com um domínio tão intenso das palavras, como as obras de Joan Didion ainda não estão espalhadas pelas bibliotecas brasileiras?

Felizmente, o ano começou com a publicação de uma de suas obras mais populares: Rastejando até Belém (Todavia, 2021), publicado originalmente em 1968. A obra, além de apresentar um panorama dos Estados Unidos em meio ao movimento hippie e as transformações sociais daquela década em reportagens e perfis, traz reflexões sensíveis e pessoais de Didion em ensaios, publicados nas principais revistas de jornalismo literário da época.

“Eu estava paralisada pela convicção de que escrever era um ato irrelevante e de que o mundo, como eu o compreendera, não existia mais”.

Com 20 ensaios, o livro se divide em três partes: a primeira reúne reportagens que constroem um panorama dos Estados Unidos — principalmente da Califórnia — ao longo da década de 1960; o segundo traz reflexões sobre o amor-próprio e os “eus” internos dos indivíduos; e a terceira parte se desdobra em ensaios autobiográficos de Didion.

Joan Didion

Apesar de ser uma ensaísta e escritora premiada, com um documentário Joan Didion: The Center Will Not Hold (2017), disponível na Netflix, Didion é pouco lembrada no mercado editorial brasileiro e até mesmo nas graduações de jornalismo do país. O documentário é um bom resumo de sua trajetória e contribuições para o jornalismo com uma leitura analítica da sociedade norte- americana.

Em “Rastejando até Belém”, um dos ensaios que dá nome ao livro, Didion apresenta uma reportagem em que revela uma San Francisco de 1967 como berço do LSD. No texto, a autora descreve crianças sob os efeitos do ácido e jovens perambulando pelas ruas pedindo esmolas para irem comprar drogas, se colocando como um ponto observador no texto enquanto mostra os bastidores de sua apuração. Um relato cruel que entrega uma verdadeira aula de jornalismo documental.

“As pessoas e as histórias de que mais gostamos tornam-se nossas favoritas não por alguma virtude inerente a elas, mas porque ilustram, nos detalhes, algo profundo, algo que não admitimos”.

Em todos os ensaios, a necessidade do escrever está presente. Ao abordar fatos jornalísticos ou reflexões internas, Didion consegue condensar em parágrafos pontuais a relevância da escrita para a sua compreensão de mundo. Seus papéis são partes viventes dela, mesmo ao serem amassados ou esquecidos em cadernos antigos.

No ensaio “Sobre Ter Um Caderno”, Didion não aborda apenas o que escrita pode revelar sobre nós, mas como ela pode nos fazer entender nosso próprio caminho. Escrever é memória. Uma memória por vezes fragmentada e sem todas as peças do quebra-cabeça e que podemos abrir um caderno e lá encontrar um relato esquecido “com juros acumulados, a fatura paga da passagem de volta para o mundo”.

O que conquista nas palavras de Didion são suas interpretações, capazes de ler a sociedade global do século XX e XXI e a solidão e inseguranças que cercam os indivíduos. A segunda parte do livro, que trata dos ensaios “pessoais” é a que melhor representa essa consideração.

“Acho que é aconselhável continuarmos aceitando as pessoas que um dia fomos, quer as consideremos companhias atraentes, quer não. Caso contrário, elas vão aparecer sem avisar e vão nos pegar de surpresa, batendo sem parar na porta da mente às quatro da manhã de uma noite mal dormida, e exigindo saber quem as abandonou, quem as traiu, quem vai fazer as pazes”.

No ensaio “Sobre o Amor-Próprio”, por exemplo, Didion pondera sobre as escolhas que fazemos e como escolhemos lidar com as consequências dessas decisões. Amor-próprio, aponta ela, depende do respeito que atribuímos a nós mesmos. É uma reflexão interna que podemos deixar escapar, que ignoramos como se a resposta não estivesse ali.

Joan Didion

Neste ensaio é interessante observar as alegorias que Didion faz com o momento em que dormimos, quando finalmente deitamos a cabeça no travesseiro. Quantas vezes não passamos madrugadas adentro acordados com mil cenários e cobranças fazendo barulho enquanto buscamos um sono que escorre feito areia de nossas mãos?

“No fim, acabamos deitados sozinhos naquela cama notoriamente desconfortável, aquela que arrumamos para nós mesmos. Se dormimos nela ou não, depende, é claro, se nos respeitamos ou não”.

Joan Didion consegue traçar o perfil de uma América descobrindo uma juventude que foge da moralidade vigente enquanto pondera sobre o hábito da escrita e das inseguranças que destroem o amor-próprio. Ela olha para si e vê um mundo de transformações, mas sua obra capta comportamentos internalizados na sociedade capitalista universal que vende a solidão do abandono como um modelo de vida.

“Nos libertar das expectativas dos outros, nos entregar de volta a nós mesmos — aí reside o poder imenso e singular do amor-próprio”.