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Uma análise de “Inácio da Catingueira”, de Emicida

Em resposta às críticas infundadas que recebe, Emicida escreveu “Inácio da Catingueira”, canção que resgata a história desse repentista e poeta paraibano do século XIX. Inácio da Catingueira é um dos pioneiros da literatura negra brasileira, sob a perspectiva da Oralitura, embora não conste na história oficial. Assim, numa encruzilhada de saberes, Emicida faz um paralelo entre o rap e o repente, cujas raízes estão na tradição oral africana.

Quem foi Inácio da Catingueira?

Inácio da Catingueira (1845-1879) foi homem negro, paraibano, escravizado, cuja história chegou até nós graças à batalha de repente que houve entre ele e Romano da Mãe d’Água, fazendeiro e escravista.

Embora analfabeto, Inácio demonstrou capacidade de improviso, habilidade para a rima e oratória numa velocidade que Romano não era capaz de acompanhar, o que o imortalizou no imaginário popular. Ao longo do tempo, suas cantigas foram preservadas pela tradição oral, e, posteriormente, transcritas, desse modo, sofreram alterações.

Estima-se que a batalha tenha durado oito dias. Além de enfrentar o cansaço, Inácio da Catingueira teve que lidar com a possibilidade de represálias por parte de Romano da Mãe d’Água ou de seu público. Inácio não tinha nada mais do que seus versos e a afirmação da sua identidade.

Da batalha de repente entre Inácio e Romano, observa-se que esse tenta menosprezar Inácio por não ter tido acesso à educação formal e pela sua condição de escravizado, até mesmo de forma ameaçadora, com referências à prática de tortura, a fim de evitar a derrota em público. Por outro lado, Inácio não se esmorece nem rebaixa a sua rima a uma troca de ofensas, mesmo tendo passado pouco mais de uma semana ouvindo ameaças e provocações. Para tocar seu pandeiro, Inácio teria permanecido de pé na presença de Romano, ou apenas apoiado com o pé em um banco.

Assim como Luiz Gama, Inácio da Catingueira foi um dos fundadores da literatura negra brasileira, a partir da sua poesia oral. Não se tem notícia de que ele tenha sido alforriado e a causa provável de sua morte foi pneumonia. Sua memória foi resgatada por Emicida, na música de mesmo nome, em resposta às críticas infundadas que recebe. Assim, ao invés de ingressar numa discussão que alimentaria polêmicas vazias, Emicida visualiza o todo e entrega-nos uma canção que traz ao nosso conhecimento a existência de Inácio da Catingueira e a relação entre o rap e o repente.

Já de início, em sua canção, Emicida traça um paralelo entre as falsas polêmicas e as provocações sofridas por Inácio da Catingueira, as quais tinham como objetivo fazê-lo perder o controle e reafirmar o estereótipo de negro agressivo. Declara que muitos de seus críticos, em realidade, ressentem-se com o fato de ele não estar em posição de subserviência e reafirma a importância de sua trajetória, não só do ponto de vista da representatividade, como da geração de oportunidades para outras pessoas negras e periféricas.

Rap, Repente e Griôs

Rap e repente têm mais em comum do que possamos imaginar. As suas características são a roda, o desafio, a improvisação poética e o retrato da realidade. Além disso, apresentam elementos da cosmovisão africana, como a oralidade, circularidade, coletividade e musicalidade.

Isso ocorre porque pessoas negras foram massivamente sequestradas do continente africano para o Brasil, e aqui tiveram a sua história e cultura negadas, até mesmo a existência de suas almas. Após a abolição, sem qualquer política reparatória, viram-se nas ruas e abrigaram-se em favelas. Houve a concentração de terras nas mãos dos latifundiários, os coronéis, aliada à seca, que fez com que houvesse um movimento migratório em direção ao Sudeste. Esses nordestinos também habitaram as favelas; o rapper, muitas vezes, é filho desse migrante.

Tal contingente, formado por negros e nordestinos, em sua maioria analfabetos, conceberam uma forma de manifestação da sua memória, história e tradições. Repentistas e rappers denunciam a desigualdade, o preconceito e a violência no meio rural ou urbano. As origens dessas manifestações são diversas, o repente do trovadorismo europeu, o rap do movimento hip hop. Contudo, ambos também têm raízes na tradição oral africana, por exemplo, dos griots ou griôs, guardiões da memória e história da África Ocidental, os quais eram poetas e musicistas.

Oralitura

Aquelas pessoas africanas sequestradas, apartadas de seus grupos étnicos para dificultar a comunicação, apropriaram-se do idioma do colonizador e, a partir de suas tradições, desenvolveram a sua própria linguagem e literatura oral, a Oralitura.

Esse termo foi criado por Ernst Mirville, em 1971, e tem sido aprofundado, no Brasil, por Leda Martins. Segundo ela:

“…a modernidade europeia e os colonizadores que desqualificavam africanos e afrodescendentes, por serem sujeitos ‘sem história’. Nem pensavam que tínhamos humanidade. As oralituras vêm, então, traduzir o pensamento dos intelectuais africanos e das práticas performáticas que nos mostram que os saberes não se escrevem e se inscrevem apenas pela letra. A letra alfabética é um dos instrumentos de inscrição da memória. Há outros meios, dentre eles, a imensidão dos saberes africanos, que são transportados e transcriados, reterritorializados nas Américas.”

Na Oralitura, a palavra não é estática, grafada em uma página, mas é dinâmica, corporificada. Mente e corpo não estão cindidos, trata-se de um “corpo que canta e conta”. Ela utiliza como aspectos narrativos não somente a palavra, como também o gesto, a musicalidade, a sonoridade e a visualidade. Encontra-se isso, hoje, na performance e poesia corporal dos rappers e repentistas.

A oralidade é orgânica, é indissociável do corpo — gesto, dança, canto — pela sua complexidade, é mais difícil de ser institucionalizada. Por outro lado, a produção escrita esteve (e está) principalmente nas mãos do poder hegemônico, que historicamente negou a cultura afro-brasileira e indígena, ao tempo que difundiu valores e crenças do colonizador.

A escrita não está em posição de superioridade em relação à oralidade, tampouco é a única fonte de conhecimento. Essa falsa oposição entre escrita e oralidade está assentada numa visão colonialista, eurocêntrica, cuja lógica divide e hierarquiza tudo entre civilizado e selvagem, corpo e mente, antigo/arcaico e moderno/tecnológico.

Dos mais velhos para os mais novos, de boca a ouvido, a história, memória, narrativas, modos e concepções de vida da população negra foram transmitidos. É o que se percebe, por exemplo, nos terreiros de candomblé, e em como a própria batalha entre Inácio da Catingueira e Romano da Mãe d’Água chegaram até a nós.

Diz Leda Martins: “Essa memória do conhecimento grafa-se, também, como aletria, nas pautas do papel e do corpo. Um saber que se borda pela fina lâmina da palavra ou no delicado gesto. Littera e litura. Gravuras da letra, do corpo e da voz.” Por essas razões, Inácio da Catingueira pode ser considerado um dos poetas fundadores da literatura negra brasileira. Personagens como ele foram apagados da história oficial, mas a sua voz se faz ouvir até os dias de hoje. Parafraseando Conceição Evaristo, um canto que não é canção de ninar os da casa-grande, mas sim de incomodá-los em seus sonos injustos.


Referências

 EVARISTO, Conceição; MARTINS, Leda. Instituto de Arte Tear. Escrevivência, Oralitura. YouTube, 3 set. 2021. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GMse92ubeXY&t=3145s

LIMA, Gustavo Henrique Alves de. Inácio da Catingueira: o trovador escravo. In: Ao repique da marimba e do pandeiro: A voz e o verso de Luiz Gama e Inácio da Catingueira como “discursos fundadores” da poesia negra brasileira. Dissertação de Mestrado – Universidade Estadual Paulista (UNESP), Faculdade de Ciências e Letras, Assis, 2021.

MARTINS, Leda. Performances da oralitura: corpo, lugar de memória. Letras n. 26 – Língua e Literatura: Limites e Fronteiras, [s/d].

MONTEIRO, Deborah. Oralidade e oralituras: e eu falo mais de três línguas In: Corpos negros e seus saberes no chão da escola: oralitura e escrevivência por uma educação decolonial. Dissertação (Mestrado em Educação). Universidade de São Paulo, São Paulo, 2019.

RODRIGUES, Queila Cristiane de Lima. GEPHOM USP. Microaula: Apontamentos sobre oralitura. YouTube, 26 set. 2022. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=u9V5sorhKnc

TOLENTINO, Andréia Ramalheiro. Rap e repente: do tecer das rimas ao canto falado. Dissertação (Mestrado em Educação, Arte e História da Cultura) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2009.