A premissa de Ted Lasso, a melhor e mais aclamada série da Apple TV, é a seguinte: o protagonista, o estadunidense que leva o nome da obra e é interpretado por Jason Sudeikis, acaba sendo contratado para ser o novo treinador de um time de futebol famoso da Inglaterra. O único problema é que Lasso, um estadunidense nato, que viveu sua vida inteira no Kansas e que carrega um forte sotaque e um bigode quase cômico, é completamente desqualificado para o seu trabalho. Isso porque, na sua terra natal, Lasso era treinador de futebol americano e não do futebol tradicional, como temos por aqui. Em um contexto mais cínico e problemático, talvez a série não tenha exatamente a melhor e mais convidativa trama do mundo. Afinal, quem em 2021 gostaria de ver a jornada de um homem branco que tem um cargo alto que conseguiu com basicamente 0 recomendações? Mesmo assim, é impossível não se apaixonar pela aura doce e gentil de um protagonista pouco comum.
Atenção: este texto contém spoilers!
Logo no seu primeiro dia de trabalho, Ted conhece Rebecca (Hannah Waddingham). Depois de se divorciar do marido, Rebecca acabou levando um acordo vantajoso na separação e ficou com o tão precioso clube do seu ex-parceiro, no qual a protagonista diz ser “a única coisa que ele realmente amou na vida”. Como diretora do clube, seu objetivo ao contratar Lasso é, inclusive, fazer com que ele desempenhe papel de bobo e destrua o time de futebol, causando dor e amargura para Rupert (Anthony Head, o Giles de Buffy, A Caça Vampiros). Andando pelos vestiários e apresentando a história do time para Ted, Rebecca pergunta se ele acredita em fantasmas. “Eu acredito, mas acho que eles devem primeiro acreditar em si mesmos”, é a resposta de Lasso. Algo tão absurdamente ingênuo saindo da boca de qualquer outra pessoa poderia facilmente ser interpretado como sarcasmo e ironia, mas vindo de Ted, que é a personificação da gentileza, parece ser algo genuíno. Algo que ele realmente acredita.
Rebecca e Ted estabelecem uma rotina divertida de acompanhar. Ted tenta dar o seu melhor e levar o time para frente, mesmo não entendendo muito bem o que está fazendo, enquanto Rebecca faz de tudo para que as coisas se encaminhem para o lado oposto. A parte mais interessante de assistir, no entanto, está longe de ser o jogo de gato e rato, mas o fato de Ted ser o tipo de pessoa que nota os outros ao seu redor. O que acaba mudando, aos poucos, a forma como Rebecca vê as pessoas e os acontecimentos no clube e na sua vida pessoal. A protagonista acabou de sair de um casamento conturbado em que seu parceiro praticava todos aqueles pequenos atos de violência e abuso que quase passam despercebidos, inclusive culpando-a, de forma sempre sutil, pelo fato de que eles nunca puderam ter filhos. Seus sentimentos nunca valiam a pena ser mencionados ou discutidos por Rupert e toda a sua frustração acaba sendo o grande motivador para a contratação de um treinador incompetente. Ainda assim, apesar de Ted ser essencialmente uma boa pessoa, ele não é exatamente ingênuo, percebendo que existe certa resistência por parte de Rebecca em aceitá-lo ou compactuar com as mudanças propostas por ele.
Para tentar conquistá-la, Ted faz o que sempre tenta fazer na sua vida: ele nota. Ao notar, por exemplo, que Rebecca gosta dos biscoitos que ele leva para ela em certa manhã, ele passa a fazê-lo todos os dias, ao mesmo tempo que tenta compartilhar um segredo ou outro sobre sua vida. Mesmo resistindo, sua leve persistência vai aos poucos atenuando a forma como eles se tratam, como Rebecca encara o clube, Ted e até mesmo os funcionários ao seu redor.
A mesma coisa acontece na forma como ele encara o próprio time. Quando chega, Jamie (Phil Dunster) é a jovem estrela do time, o melhor jogador em ação e em campo, enquanto Roy (Brett Goldstein) é um veterano que um dia foi considerado o que Jamie é agora. O contraponto entre os dois, que têm o maior potencial para se tornarem líderes e oferecer uma direção para os outros, é explosivo e ao invés de se ajudarem, estão constantemente em conflito, atrapalhando o desempenho do resto de seus colegas. Jamie é arrogante e vaidoso, enquanto Roy é rude e está sempre se isolando do mundo e das pessoas ao seu redor, como forma de proteção. No meio de tudo isso está Keeley (Juno Temple), uma influenciadora que antes namorava com Jamie e acaba se envolvendo com Roy. Como uma pessoa de fora, Ted vê Jamie como um menino abusado, que sofre as pressões do pai para se tornar sempre melhor, mesmo que tenha que dar o sangue para isso; enquanto vê Roy como alguém que tem tanta experiência que poderia ser um ótimo líder, uma espécie de aliado. Com a ajuda de Keeley, que tem uma personalidade parecida com a de Ted, ainda que mais pé no chão, ele consegue entendê-los e dar um direcionamento para seus talentos. A jornada de ambos ainda é um ponto de interrogação, mas existe potencial para que Jamie tenha um belo arco de redenção, e Roy possa se tornar um ídolo que vai além do futebol, alguém que possa estabelecer bons e saudáveis exemplos para uma geração inteira.
Keeley, que no começo parece ser apenas uma personagem coadjuvante sem muito desenvolvimento, também se mostra parte fundamental do clube em si, não só pela forma como cria uma amizade com Ted e Rebecca, ou por causa do seu relacionamento com Roy, que parece mostrar seu lado mais sensível ao seu lado, mas porque sua presença é naturalmente um incentivo para todos ao seu redor. Acredito que sua jornada individual deva ser mais explorada ao longo das próximas temporadas, já que sua personalidade parece ser um pouco mais complexa do que a apresentada no início, assim como a forma como ela lida com seus relacionamentos (principalmente com Jamie).
Apesar de ter uma alma que é essencialmente doce e quase ingênua, Ted Lasso tem sua leva de personagens complexos e complicados, que são explorados e embasados com base em sentimentos que não são necessariamente bons. A vingança de Rebecca, o egocentrismo de James e até mesmo a grosseria e necessidade de se fechar para o mundo de Roy, são coisas que nascem de sentimentos como a solidão, desespero e raiva. Mas mesmo que o protagonista seja intrinsecamente uma pessoa otimista, isso não quer dizer que ele tem um olhar determinista sobre o bem e o mal, sobre o que é certo e errado. O próprio Ted, que está passando por um divórcio complicado, é capaz de olhar para essas pessoas e ver que elas estão passando por dificuldades porque ele se encontra em uma situação parecida. Todas elas têm suas limitações e problemas, o que determina a forma como elas veem e respondem ao mundo, assim como determina a forma como Ted Lasso vê e responde a elas. Eles não a definem por suas ações, mas pelo o que elas podem ser.
Não existe palavra melhor para descrever Ted do que empático. O protagonista é, afinal, uma pessoa que tem uma sensibilidade maior na hora de entender os sentimentos que movem as pessoas com quem ele trabalha. O seu otimismo, que seria praticamente insuportável em qualquer outro contexto, não só é tolerável aqui, como também é facilmente admirado e querido pois sua capacidade de “acreditar nas pessoas e em si mesmo” não vem de um lugar superficial ou de fases prontas (apesar de amar usá-las e ter, literalmente, uma placa escrito “believe” [acredite] em seu escritório): ela vem, ao contrário, como algo que nasce genuíno e nem sempre com gentileza. Apesar de ser uma pessoa com o tipo de personalidade “perky” [entusiasmada], Lasso entende muito bem o peso das consequências e não parece ter medo de aplicá-las aos seus jogadores. Como treinador, ele gosta de oferecer segundas chances e um olhar menos tradicional a ambientes tipicamente masculinos, recheados de masculinidade tóxica, mas não necessariamente deixa que seus jogadores tenham ações detestáveis e saiam impunes. Toda ação tem uma consequência e é interesse ver isso não apenas como um estudo de personagem, já que todas as trajetórias se beneficiam da regra, mas também em séries de TV em geral, que nem sempre sabem como conduzir consequências com precisão.
Sou uma pessoa que tradicionalmente não gosta de esportes. Não assisto futebol, ou vôlei e uma vez tentei ficar interessada em rugby para ver se conseguia me adentrar nesse mundo, mas confesso que a obsessão durou pouquíssimo tempo e logo segui em frente. Mesmo assim, de tempos em tempos, consigo me apegar a uma narrativa onde o esporte é parte fundamental da história, como é o caso de One Tree Hill, onde o basquete é usado como catalisador para a junção de dois irmãos criados em contextos sociais diferentes; e Friday Night Lights, essa, por sua vez, uma série que acompanha a vida de um treinador de futebol americano que, muito como Ted Lasso, é uma pessoa fundamentalmente boa e tem o poder de mudar a vida daqueles que estão ao seu redor. Apesar das três séries citadas no texto terem poucas coisas em comum em trama, personagens e até mesmo em ambientação, todas elas usam o esporte como um denominador em comum entre pessoas que são muito, muito diferentes. Ted Lasso não entende de futebol tradicional. Ele não sabe os nomes dos jogadores dos principais times e nem sequer consegue bolar uma estratégia boa e duradoura, mas ele entende o principal e embora pareça o maior clichê de todos os tempos (porque na verdade é), Ted sabe olhar para as pessoas e encontrar o potencial escondido, sabe sobre as consequências das ações humanas e entende que cada um carrega mais peso do que aguenta. Entende sobre trabalho em equipe e como usar sua alma otimista não para afastar pessoas, mas para uni-las.
Mais do que isso, Ted Lasso oferece aquele tipo raro de escapismo que às vezes podemos encontrar em séries como Schitt’s Creek, The Good Place ou Parks and Recreation. Entre essas respectivas séries, os protagonistas tiveram oportunidade de crescer e se perguntar como eles podiam ser pessoas melhores não só pelo contexto em que viviam, mas também por si mesmos, consequentemente criando um mundo mais empático e tolerável, ainda que muitas vezes completamente utópico. É muito fácil se sentir atraído pelo mundo contemporâneo, imersivo e sensível da série de Jason Sudeikis, assim como querer saber um pouco mais sobre a trajetória dos personagens daqui pra frente. Por enquanto, o seriado tem apenas uma temporada mas já foi renovada por mais dois anos na Apple TV. Com isso, espero que a trama abra cada vez mais espaço para uma narrativa mais inclusiva e profunda, explorando a vida de jogadores de diversos lugares, culturas e sexualidades. O potencial está ali. Só basta, como diz o próprio protagonista, acreditar.