Entre outubro e novembro de 2020, a HBO nos presenteou com mais uma minissérie sensacional: The Undoing. A produção foi dirigida pela cineasta dinamarquesa Susanne Bier, roteirizada por David E. Kelley (responsável também pelo roteiro de Big Little Lies) e estrelada por ninguém menos que Nicole Kidman e Hugh Grant nos papéis de Grace e Jonathan Fraser. Tem mistério, tem assassinato na alta sociedade novaiorquina, tem julgamento e, eu juro por tudo o que é mais sagrado, entrega o que promete. O texto a seguir vai conter todos os spoilers importantes, então para quem não assistiu a série ainda, deixo já aqui o único recado que importa: vá assistir. E depois volte. Ou então siga com a leitura por sua conta e risco.
Atenção: o texto definitivamente contém spoilers importantes.
A obra é uma adaptação do livro originalmente publicado sob o título You Should Have Known (“você deveria saber”, em tradução livre), escrito por Jean Hanff Korelitz. Tudo começa com uma família rica e branca “normal”, que vive sua vida rica “normal” em uma casa chiquérrima “normal” bem em frente ao Central Park, região nobilíssima da ilha de Manhattan, em Nova York. Essa é a realidade de Grace Fraser, psicóloga, seu marido Jonathan, oncologista pediátrico, e seu filho único adolescente Henry Fraser (Noah Jupe).
Como não podia deixar de ser, Henry estuda em uma escola particular caríssima da região, e Grace, como a boa mãe que é, participa das atividades sociais da escola. É em uma dessas atividades, um comitê de levantamento de fundos que planeja uma festa beneficente, que Grace conhece Elena Alves (Matilda de Angelis). Elena não se encaixa naquele ambiente. Jovem e pobre, mãe de Miguel (Edan Alexander), um aluno bolsista, ela não tem a aparência certa, os modos certos, e muito menos a conta bancária certa. Como era de se esperar, Elena é recebida no círculo com uma hostilidade velada por todas, menos Grace. Ou é o que somos levadas a acreditar, já que o segredo do sucesso de The Undoing e peça central de todo o funcionamento da série é justamente o fato de testemunharmos tudo pelo ponto de vista de Grace, mas só conseguirmos ter certeza disso no final.
Ainda no primeiro episódio, presenciamos o comportamento estranho de Elena, que parece perseguir Grace em algum nível, mas é sempre tratada por ela com uma cordialidade distante. Até que, logo após a festa beneficente, Elena é assassinada. O corpo é encontrado pelo próprio filho da vítima em seu ateliê na manhã seguinte e nos deixa com a questão: quem matou Elena Alves?
A primeira e possivelmente única surpresa real da série é que muito rapidamente as suspeitas se concentram em Jonathan Fraser. Para surpresa de sua esposa, o médico foi demitido meses antes do hospital em que trabalhava após denúncias de assédio contra a mãe de um paciente. A vítima desse assédio: ninguém menos que Elena Alves. Supresa! Os dois tinham um caso. É Jonathan quem paga a escola de Miguel. Ele é pai da filha mais nova de Elena. Esses são só alguns dos segredos guardados pelo médico e pai de família com reputação ilibada, e eles caem sobre a cabeça e sobre a vida perfeita de Grace como uma bomba. Será que o assassino é realmente Jonathan? Nada disso faz sentido com a imagem do homem com quem ela é casada há 17 anos.
A minissérie é composta por 6 episódios de aproximadamente uma hora de duração, que foram liberados semanalmente entre 25 de outubro e 29 de novembro de 2020. A produção é perfeita para esse sistema de lançamento porque não existe nenhuma chance de o espectador perder o interesse entre uma semana e outra, muito pelo contrário. A história é envolvente, bem contada e entregue da melhor forma possível por um elenco tão milionário e consagrado quanto os personagens que interpretam. Além de Nicole Kidman e Hugh Grant, indicados a melhor atriz e ator na premiação do globo de ouro, The Undoing conta com Donald Sutherland no papel do ricaço pai de Grace, também indicado ao prêmio na categoria melhor ator coadjuvante. Todos os três são muito merecedores das indicações e não seria nenhuma injustiça se terminassem ganhando as respectivas categorias.
A grande verdade é que o que motivou a grande maioria das críticas à série acaba sendo o ponto mais positivo da história: o mistério que na realidade não é nenhum mistério. Tudo é exatamente como parece ser desde o começo. Jonathan realmente matou Elena, e o título do livro e da série entregam isso de cara. O livro, “você deveria saber”, faz isso mais claramente; a série lança mão de um termo psicanalítico obscuro para dizer mais ou menos a mesma coisa de forma mais enigmática e elaborada. Undoing, em português: anulação (retroativa). Segundo o Vocabulário de Psicanálise de Laplanche e Pontalis:
“Mecanismo psicológico pelo qual o sujeito se esforça por fazer com que pensamentos, palavras, gestos e atos passados não tenham acontecido; utiliza para isso um pensamento ou um comportamento com uma significação oposta.”
Grace não deixa de enxergar a culpa óbvia do marido porque é burra ou inocente ou ignorante. A psicóloga não enxerga porque isso vai contra tudo o que ela passou quase duas décadas escolhendo acreditar e enxergar naquele homem. Porque a cada coisa ruim feita, o médico fazia várias outras boas, que sustentavam a imagem que a esposa tinha dele e do relacionamento. Grace enxerga, mas por que deveria acreditar nessas novas descobertas que vão contra tudo o que pensava saber sobre aquela pessoa? Jonathan, o homem que ela ama. Jonathan o pai do seu filho. Não é absurdo que a personagem tenha usado todas as defesas psicológicas disponíveis para acreditar no que queria que fosse verdade — é muito compreensível e um fenômeno psicológico amplamente documentado. E nós acreditamos junto porque o óbvio parece fácil demais. Não é o trabalho das histórias de crime tentar enganar o espectador?
Às vezes o mais surpreendente é que não haja nada de surpreendente. Estamos tão viciados em plot twists e histórias mirabolantes para explicar coisas óbvias que achamos ruim quando algo acaba sendo exatamente o que parecia ser o tempo todo. Nem todo homem branco com “cara de bonzinho” está sendo injustiçado, nem sempre existe uma grande conspiração para incriminar alguém. Já temos muitas histórias sobre isso e precisamos aprender a aceitar que algumas coisas apenas são exatamente como mostram ser desde o começo. E não é só porque uma pessoa tem formação e experiência como psicóloga que ela tem que ter um olhar objetivo e infalível sobre a própria vida o tempo todo, ou nenhum analista precisaria de análise.
O trunfo de The Undoing é se valer da roupagem de mistério para tratar da nossa incapacidade fundamental de enxergar e aceitar os lados mais sombrios daqueles que a gente ama. Isso, claro, levado ao extremo. Não é que todas as pessoas que amamos seriam capazes de cometer o assassinato cruel que assistimos explicitamente na série, mas em escala menor essa cegueira é algo que afeta a maioria de nós todos os dias.
Não existe uma realidade objetiva, a realidade é uma representação e é isso que vemos na minissérie. Até as poucas imagens que temos de Elena Alves em vida muito possivelmente estão afetadas pela lente da interpretação inconscientemente preconceituosa de Grace. O mesmo mecanismo é usado para gerar dúvidas sobre a possibilidade de o marido dela ser o verdadeiro responsável pelo assassinato. Fernando Alves (Ismael Cruz Cordova), afinal de contas, corresponde muito mais ao estereótipo do criminoso do que Jonathan, ele demonstra um comportamento supostamente raivoso ao descobrir que sua mulher recentemente assassinada o traía, e que a criança que ele acreditava ser sua filha não é biologicamente sua. Esses traços e a seletividade penal são inclusive usados pela defesa de Jonathan para tentar redirecionar a culpa durante o julgamento.
A verdade evidente em The Undoing desde o começo é que Jonathan é um grande macho bosta, que mente descaradamente para a esposa em diversos momentos enquanto mantém a fachada de bom moço e cidadão honesto, e usa do choro e da manipulação emocional para tentar se eximir de culpa sempre que é pego. É só ao final, entretanto, que descobrimos que essas características óbvias são acompanhadas por traços psicopáticos mais profundos. Ponto para a atuação de Hugh Grant, que em determinado momento passa por um péssimo ator, até que descobrimos que na verdade ele é um ótimo ator interpretando um péssimo ator. Mas Grace é psicóloga, Grace “deveria saber”. Mas será que deveria mesmo?