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Big Little Lies, uma história sobre mulheres

Para quem leu Pequenas Grandes Mentiras, romance da australiana Liane Moriarty lançado em 2014, a qualidade de Big Little Lies, minissérie da HBO baseada no romance, bem como sua boa acolhida pela crítica, não chega exatamente como uma surpresa. Bem humorado na superfície, o romance explora com responsabilidade e complexidade temas difíceis que vão desde os desafios da maternidade e o bullying escolar até estupro e violência doméstica — e sua capa original, de um colorido e vibrante pirulito explodido, representa o conteúdo perfeitamente. Ainda assim, nem sempre a transposição do literário para o audiovisual é um trajeto suave, especialmente quando falamos de conteúdos pesados e delicados na mesma medida, por isso um bom material de origem não era necessariamente garantia de uma boa série de televisão.

Big Little Lies poderia ser um whodunit, uma expressão usada para se referir às histórias de mistério em que alguma coisa acontece e o resto da trama é dedicado a desvelar quem foi, quem fez. Em Big Little Lies, afinal, alguém foi assassinado, e nós não sabemos quem foi, nem quem fez. Mas o mistério não funciona como o centro da trama, e sim como uma espécie de moldura. Cenas que se passam em uma sala de interrogatório, protagonizadas sempre pelos personagens secundários da trama, entremeiam àquelas dedicadas às suas protagonistas. Embora o assassinato se faça constantemente presente nos dois cenários, na delegacia de polícia e na pouco pacata vida comum de Monterey — com imagens constantes de todos os personagens observando uns aos outros à distância, através de janelas, ou então treinando tiro e checando o estado de suas armas de fogo —, o verdadeiro centro da história não é esse, mas as vidas mais ou menos comuns das mulheres.

Transferida da fictícia península de Pirriwee, na Austrália, para Monterey, Califórnia, Big Little Lies tem como principais protagonistas três mulheres bastante diferentes, mas que, ainda assim, constroem uma forte e genuína amizade. Madeline Mackenzie (Reese Witherspoon) está em seu segundo casamento, trabalha meio expediente no teatro da cidade e tem duas filhas; uma delas adolescente, fruto de seu primeiro casamento, com quem tem uma relação complicada. Celeste Wright (Nicole Kidman) é dona de casa, ex-advogada, mãe de gêmeos, e tem um casamento aparentemente perfeito — os dois são bonitos e têm muito dinheiro, afinal. Jane Chapman (Shailene Woodley), por sua vez, é bem mais jovem que as outras duas, mãe solo e recém-chegada a Monterey, uma mulher em busca de trabalho e de um lugar para chamar de lar. São três realidades muito distintas, o que, por si só, já seria suficiente para construir um enredo complexo. Contudo, numa decisão acertada de David E. Kelley, criador e roteirista da minissérie, a versão para televisão transforma em personagens principais, explorando o ponto de vista delas, também Renata Klein (Laura Dern) e Bonnie Carlson (Zoë Kravitz). Renata seria, em uma produção mais simplista, a maior antagonista da história, enquanto Bonnie, atual esposa do ex-marido de Madeline, seria só isso: um empecilho na vida de outra mulher. Muito embora, no livro, elas não sejam “só” isso, adotar seus pontos de vista como parte da narrativa só a enriquece, humanizando essas mulheres ainda mais.

O que entrelaça a história dessas mulheres em um primeiro momento é que todas são mães e têm filhos da mesma idade — filhos esses que estudam na mesma turma de uma pequena escola local, um lugar seguro e tranquilo até que se prove o contrário. O primeiro dia de aula, cenário do episódio piloto da série, trabalha justamente essa percepção contrária, quando, entre os beijos de até logo entre pais e filhos e crianças entusiasmadas, o conflito começa a se desenvolver.

É interessante o destaque que o ritual de levar e buscar as crianças na escola ganha na série: presente na abertura e em quase todos os episódios, esse compromisso estrutura a rotina das personagens, que vivem suas vidas nos intervalos das obrigações com os filhos. É possível olhar para o gesto de duas formas: os minutos que viram horas que passamos no carro com nossos pais (mães, principalmente) e é, provavelmente, o maior tempo que pais e mães têm com seus filhos no dia a dia, particularmente no contexto de crianças privilegiadas, com rotinas carregadas de aulas e brincadeiras programadas, além do tempo passado em quartos fechados e aparelhos eletrônicos. No carro, são discutidas as questões cotidianas, banais ou não, e é também o momento que mães, desejosas de um contato mais próximo — como é o caso de Madeline com Abigail (Kathryn Newton), sua filha mais velha — tentam saber mais sobre a vida dos filhos.

Em um segundo momento, quando as ações da série começam a se desenrolar no intervalo entre o momento em que filhos são deixados na escola e quando são levados para casa novamente, Big Little Lies argumenta que existe algo mais na vida dessas mulheres além da maternidade. Madeline, Celeste, Jane, Renata e Bonnie são mães, mas não só isso. Para além da rivalidade em banho-maria entre as mães donas de casa e mães que trabalham fora, e mais importante que seus empregos, é a carga de vida que cada uma delas carrega, que toda mulher carrega. Isso é válido também quando olhamos para fora da tela: a indústria do entretenimento, principalmente a estadunidense, sofre de um severo problema de etarismo. É o preconceito contra a idade, que joga para escanteio pessoas, principalmente mulheres, mais velhas — e por velhas estamos falando a partir da faixa dos 40 anos.

O tempo é cruel para as mulheres em Hollywood; para além da pressão de parecer sempre jovem, tendo seus rostos e corpos expostos para o escrutínio popular, à medida que envelhecem as mulheres sofrem com a diminuição de seus salários e da oferta de trabalho. Com o passar dos anos, suas oportunidades são reduzidas a papéis de… mães. Não há nada pejorativo em interpretar uma mãe, mas isso se torna um problema quando mães e avós são sempre personagens pouco desenvolvidas, um acessório na vida de um personagem mais jovem de destaque. Reese Whiterspoon fala há tempos sobre como Hollywood subestima as mulheres e sua produtora nasceu como uma resposta a essas deficiências da indústria, para realizar filmes ou séries com personagens complexas, interessantes, humanas. Big Little Lies é um projeto da Pacific Standard, adaptada de um livro escrito por uma mulher, estrelando a própria Reese, 41 anos, Nicole Kidman, 49, Laura Dern, 50. Elas são mães, mas não são coadjuvantes na vida de ninguém. Não é uma coincidência que as performances nessa série podem facilmente ser consideradas como as melhores de suas carreiras.

Big Little Lies é, em sua essência, uma história sobre mulheres. Isso ainda é revolucionário: em artigo para o Sidney Morning Herald, a jornalista australiana Matilda Dixon-Smith fez um levantamento sobre as críticas negativas que a série vinha recebendo e é decepcionante, mas não surpreendente, ver que todas vêm de homens, homens que rapidamente classificaram Big Little Lies como uma série novelesca. A classificação é ainda mais pejorativa no exterior, onde as novelas geralmente são melodramas caricatos, que recebem preconceito extra por serem atrações voltadas majoritariamente para o público feminino. Isso é, obviamente, um reducionismo e só mostra a forma como histórias focadas na vida cotidiana de mulheres é vista por aí, o que molda a percepção que a sociedade tem da vida das mulheres no geral.

“Big Little Lies é o que é considerado prestige TV: é produzida por uma rede de TV a cabo de ponta; estrelada por um elenco de alto calibre, incluindo quatro atrizes indicadas ao Oscar; é dirigida por Jean-Marc Vallée, indicado ao Oscar. É cara, bem produzida e adaptada com competência para a televisão. Para homens que não estão acostumados a histórias de mulheres, ou ainda personagens femininas, desse porte, (porque elas costumam ser relegadas atrações consideradas medíocres que críticos não se sentem obrigados a acompanhar) o único jeito de responder a ela é tratá-la como um seriado de ‘personagens e situações estereotipados’ ou ainda um ‘melodrama mais irritante do que interessante’. (…) A série traz o prestígio como armadilha para fazer algo radical, trazendo histórias subestimadas de mulheres para a frente da alta crítica, limitada por ser composta majoritariamente por críticos homens, que funcionam como guardiões [do que é considerado alta cultura].” (Tradução nossa)

Existem também homens na série, é claro, mas eles ficam em segundo plano; nessa história, como em não tantas outras, sua principal função é servir de aporte para as narrativas das personagens femininas. E isso pode tomar diversas facetas: desde servir como apoio para elas, ainda que com rupturas, como é o caso de Ed (Adam Scott) ou Tom (Joseph Cross), a fazer o papel de seus maiores algozes, como Perry (Alexander Skarsgård). Big Little Lies não se vende como uma narrativa universal — estamos falando de um universo limitado de mulheres, privilegiadas em maior ou menor escala (não é por nada que as casas que servem de cenário tenham chamado tanta atenção). Ainda assim, ela se propõe a discutir temas que são pertinentes às mulheres, independentemente de classe social ou nacionalidade, como a maternidade — que é sempre imposta, mesmo que algumas mulheres desafiem essa imposição — e a violência de gênero, além de discutir a competição entre mulheres.

Atenção: este texto contém spoilers!

O livro de Liane Moriary opõe o lema da escola de Pirriwee — “Não praticamos o bullying. Não aceitamos sofrer bullying. Nunca escondemos o bullying” —, que abre o romance (e, na série, aparece em diversos cartazes nas paredes), a uma realidade em que o bullying está não só sendo praticado dentro da escola, como também pelos pais dos alunos, os adultos que, em tese, deveriam ser mais conscientes e estar acima disso. Quando Amabella Klein (Ivy George) é estrangulada e aponta Ziggy Chapman (Iain Armitage) como o responsável, as mães de Monterey são postas em guerra aberta. O estopim não é inveja, mas os filhos. Jane e Renata — mãe de Ziggy e Amabella, respectivamente — encabeçam o conflito, duas mulheres completamente diferentes, mas cujo amor que sentem pelos filhos é o mesmo.

É evidente que já existia uma competição velada entre as mães antes, especialmente entre Renata e Madeline. Renata é a muito bem sucedida CEO de uma empresa (o que, sabemos, é uma raridade). Madeline tem um emprego normal, durante metade do dia. De todas as interações de Madeline com as filhas, fica claro que ela gosta da maternidade e que é uma tarefa que realiza com prazer. O que não quer dizer que ela não gostaria de fazer mais ou algo que fosse puramente dela — porque os filhos vão para a escola, crescem, saem de casa, tornam-se ausentes. Renata, por sua vez, parece ter o fabuloso tudo. Mas ela vive uma luta constante para ser a mãe perfeita. Porque ela sabe que, se Amabella sofre bullying, não tiver a melhor festa de aniversário, o problema, aos olhos dos outros, será a ausência de Renata. Porque ela não conseguia conciliar carreira e família, porque deve ter priorizado a carreira à filha. Do outro lado há Jane, jovem e sozinha, criando um filho que não tem pai, um convite para que qualquer um projete seus preconceitos nela. O fato de a série optar por resolver esse conflito a partir de uma conversa franca e sincera entre Jane e Renata sobre quão difícil é ser mãe em um cenário que cobra a perfeição, em que as duas se solidarizam com as dores uma da outra, parece ser quase revolucionário diante de uma sociedade que diz que mulheres nunca podem ser amigas.

Big Little Lies apresenta vários focos de tensão entre mulheres e é bonita a maneira como a série mostra que os conflitos não surgem porque mulheres são naturalmente rivais, mas por questões que carregam dentro de si e projetam umas nas outras. Renata e Madeline rivalizam porque representam uma dicotomia que pesa sobre qualquer mãe: a que opta (ou precisa optar) pela vida doméstica e se sente inferior por não ter uma carreira; e a mãe que tem uma carreira e se culpa por se dedicar ao trabalho e se sente inferior diante do ideal da mãe perfeita e abnegada. Jane e Renata rivalizam porque tanto o bulllying sofrido por Amabella quanto aquele supostamente praticamente por Ziggy parecem sinais de que elas estão falhando como mães, e o desespero de proteger seus filhos as levam a combater uma à outra.

A situação entre Madeline e Bonnie, por outro lado, propõe uma exemplo mais clássico de rivalidade feminina: Bonnie, afinal, é a atual esposa do ex-marido de Madeline, Natal (James Tupper), que é para ela e para a filha dos dois um marido e um pai que ele nunca foi para Madeline e Abigail — o casamento acabou justamente por ele ser um pai e um marido ausente e desinteressado. O problema da personagem de Reese Whiterspoon não é com Boonie em particular, mas com a rejeição que ela representa. Obcecada com a ideia de perfeição e impecabilidade, a temida Madeline Mackenzie se sente insegura diante de Bonnie uma vez que, na cabeça dela, a regeneração de Natan só pode significar que o que havia de errado com ele antes era a própria Madeline, que talvez não fosse digna ou merecedora daquela atenção. Nada disso faz sentido, claro, mas é uma armadilha em que caímos com facilidade quando somos ensinadas a ter nosso valor medido a partir dos homens em nossas vidas.

A maternidade também é um foco de insegurança para ela: enquanto Madeline luta para se aproximar de Abigail, Bonnie tem mais acesso à adolescente, que confia à madrasta coisas que esconde da mãe, da mesma forma que acata com maior facilidade suas opiniões e modo de vida, enquanto parece rejeitar tudo que vem de Madeline. Mais uma vez, o problema de Madeline não é com Bonnie, mas reflete nela porque Bonnie é um estandarte para suas inseguranças mais profundas, e é muito mais fácil projetar no outros os próprios problemas do que encarar a missão de olhá-los de frente.

O casamento aparentemente perfeito de Bonnie e Natan também é um lembrete constante para Madeline de que o seu próprio não é. Para todos os efeitos, Madeline e Ed vivem um casamento pleno e feliz: os dois se amam profundamente, têm uma filha maravilhosa, moram numa ótima casa à beira-mar e não têm problemas grandes o suficiente para ultrapassarem as quatro paredes da casa em que vivem. Seus problemas, no entanto, vão muito além da adolescência de Abigail ou da peça de teatro que Madeline briga para fazer acontecer. Como qualquer casal, Madeline e Ed possuem problemas que não conseguem resolver sozinhos e são esses problemas que, em algum momento, a fazem iniciar um caso extraconjugal com seu colega de trabalho. Quando Big Little Lies tem início, Madeline não mantém mais o affair, mas a culpa continua a persegui-la: pela traição, por ter traído o marido quando ele nunca a deu motivos para que ela duvidasse do seu amor, por não ser a esposa e mulher perfeita que deveria ser; expectativas que, em suma, a desumanizam. Madeline sofre por saber que nunca vai amar Ed da forma como ele a ama, da mesma forma que sabe que Ed ama uma mulher perfeita que não existe. Talvez ela só quisesse alguém que a enxergasse por trás da perfeição e amasse o que existisse para além dessa imagem.

É depois de um almoço com Bonnie e Natan — uma tentativa frustrada de fazer com que as duas famílias possam dividir um momento agradável — que Madeline permite que todas as suas frustrações venham à tona, em uma conversa franca com a filha mais velha. Aos 16 anos, Abigail está construindo a própria identidade e tenta a todo custo não crescer à sombra da mãe que, para ela, também parece perfeita. Essa imagem é desconstruída quando Madeline expõe seus erros para a filha, e é ao assumi-los que uma cumplicidade genuína surge entre as duas. Abigail entende que a mulher à sua frente é, antes de mais nada, humana, e essa percepção faz com ela finalmente possa enxergar a mãe como uma pessoa passível de erros, tanto quanto ela própria. Tudo o que Madeline deseja é proteger a filha dos erros que ela pode se arrepender mais tarde e, em uma virada sensível do roteiro, Abigail compreende. As duas não se entendem de forma milagrosa: suas diferenças continuam existindo, mas finalmente é possível que empatia e paciência se tornem palavras presentes em seu relacionamento — que deixa de ser sobre uma mãe e sua filha rebelde, para ser sobre duas mulheres que só estão em busca do seu melhor.

Melhor amiga de Madeline, Celeste também pode ser vista como uma mulher perfeita em um casamento perfeito: lindos, ricos e apaixonados, Celeste e Perry são respeitados por todos, a joia de Monterey. Só que Perry é violento. Mais do que isso, Perry é um marido controlador e ciumento, que agride Celeste verbal e fisicamente, e faz com que ela se sinta culpada por seus ataques de fúria. Como outras mulheres em situação parecida, Celeste tem dificuldade em reconhecer que está em um relacionamento abusivo, tanto porque as percepções ficam enevoadas quando se está em um ciclo de violência, como porque existem camadas em histórias como essa que são esquecidas para dar lugar a representação simplista, em que tudo se resume a terror e violência. Em seus dias bons, Perry se comporta como um bom marido; é carinho, dá presentes a Celeste, parece adorá-la. Ao que tudo indica, ele também é um bom pai para os gêmeos. A vida sexual do casal é intensa. Celeste é agredida por Perry, mas bate nele também — sempre para se defender, mas é uma relação que ela enxerga como fúria compartilhar, o que pode ser excitante.

Celeste também se esforça para manter a imagem de perfeição que as pessoas projetam sobre ela, mas é algo que a agrada tanto quanto sufoca. Mesmo num contexto degradante de violência, é nas brigas com Perry que ela perde o controle e extravasa os sentimentos negativos que reprime. É difícil para ela reconhecer-se como vítima de uma relação abusiva, porque isso significaria expor suas fragilidades. Visualizamos isso, principalmente, no fato de Celeste nunca confessar para suas amigas o que acontece entre ela e Perry; ela tenta, mas quando Madeline demonstra o primeiro sinal de que o que ela está dizendo é estranho, Celeste se retrai. Mesmo na terapia, sua postura é defensiva — um comportamento condizente com a realidade da pessoa que vive um trauma e está sujeita a violência dentro da própria casa, mas também se trata de uma mulher que se digladia com a quebra de expectativa da vida perfeita que aquele relacionamento problemático representa.

Big Little Lies oferece uma representação complexa para uma situação que exige esse mesmo dia de complexidade. É frequente que a violência doméstica seja retratada em extremos — do relacionamento sem amor, com homens violentos e mulheres frágeis, a restrição da violência ao ataque físico. Na vida real, a violência doméstica coexiste com a agressividade, a raiva, a manipulação emocional, onde homens não são vilões caricatos e mulheres não são vítimas frágeis e indefesas. A violência tampouco se resume à violência física, podendo ser também emocional e psicológica, todas em ordem de igual gravidade. Big Little Lies ajuda a construir em nosso imaginário uma noção mais realista do que é viver um relacionamento abusivo, e o torna mais facilmente identificável como o relacionamento tóxico e perigoso que é.

Talvez o mais comovente, no entanto, seja ver o surgimento de uma amizade genuína, forte e real entre as três mulheres que estampam os materiais de divulgação. Madeline e Celeste adotam Jane rapidamente como parte de sua amizade e de suas vidas, incluindo-a em suas atividades, certificando-se de que Ziggy, o acusado de praticar bullying que nega veementemente as acusações, teria com quem brincar, certificando-se de que não deixariam Chapman, mãe e filho, se tornarem párias em Monterey quando coisas como abaixo-assinados para expulsar o garotinho da escola começam a circular. Ao longo dos sete episódios, as três mulheres conversam sobre seus filhos e sobre seus relacionamentos, sobre trabalho e como ele as estimula, as faz se sentirem vivas; vemos Jane conseguindo se abrir sobre a violência que sofreu, vemos Madeline garantir a ela que não a deixaria ir atrás de seu suposto estuprador sozinha. Vemos preocupação e apoio vindo de todos os lados, de cada uma com as outras; a lembrança constante de que nenhuma delas está sozinha.

Em uma cena particularmente bonita da série, Jane recebe um telefonema sobre mais um problema na escola. Ela está na beira da praia, completamente sozinha em frente ao mar — um lugar que é, ao mesmo tempo, uma lembrança recorrente, eternamente ligada à noite em que foi estuprada, mas também o lugar em que Jane busca exorcizar os demônios que a atormentam. É ali que ela corre todos os dias, sempre sozinha com seus fones de ouvido e sua música altíssima. Dessa vez, no entanto, Celeste e Madeline se unem silenciosamente a ela. O cenário continua exatamente o mesmo, mas todo o resto já não é. Jane não está mais sozinha; Madeline e Celeste também não.

Jane se destaca de Celeste e Madeline porque, diferente destas, sua vida não é considerada ideal: ela é jovem, mãe solo de uma criança concebida durante um caso de uma noite só (sobre o qual Jane não dá muitos detalhes), não tem um emprego fixo, não é rica, não tem família na cidade e não parece ter grandes ambições para o futuro. Eventualmente, a reticência com que trata a paternidade de Ziggy se mostra uma forma de mascarar a violência sofrida na noite em que o filho foi concebido, e que marca Jane para sempre. Na superfície, Jane é uma mulher comum, mas, por baixo da imagem que cria para si mesma, é uma mulher que dorme com uma arma embaixo do travesseiro, que fantasia sobre a morte do seu algoz e que não pode contar ao filho que o pai é um estuprador. Todas essas nuances são trabalhadas pela série, que constrói para ela uma trajetória não necessariamente definida pela violência, mas sobre uma pessoa que tenta viver, aos poucos, para além dela.

Em seu material de divulgação, Big Little Lies diz que uma vida perfeita é uma mentira perfeita, afirmação que nunca antes pareceu tão verdadeira. Os sete episódios da minissérie apresentam a vida aparentemente impecável de muitas famílias, mas também expõe sua imperfeição, o que as tornam infelizes à própria maneira. Mais do que um retrato social, que compara os bastidores da vida ao espetáculo  que apresentamos, uma história como essa, chancelado por um canal como a HBO, é praticamente uma forma de dizer que histórias de mulheres importam, que são relevantes, que merecem fazer parte do zeitgeist televisivo. O final feliz possível em Big Little Lies não é a perfeição idealizada de um comercial de margarina, mas aquele em que as cinco protagonistas e seus respectivos filhos se divertem na praia, unidas por um acordo tácito de proteção mútua, ao som da velha canção que diz que você pode ter sempre tudo o que quer, mas pode descobrir que tem aquilo que precisa. Talvez, olhar para as mulheres que estão todos os dias ao nosso lado, numa luta diária, nos possibilite descobrir tudo o que precisamos também.

Texto escrito em parceria por Ana Luíza, Anna Vitória e Fernanda.

4 comentários

  1. Oi, meninas. Eu acabei a série nesse fim de semana e estou tão cheia de vontade de falar sobre ela que fiquei feliz de ler esse texto. Também escrevi sobre a série aqui http://camacarimulher.com.br/todos-os-filmes-mulheres-envelhecem-homens-nao/ Toquei só na questão geracional e relacionei com Feud, mas é tanta coisa pra falar que parece que em mais 2, 3, 10 textos não se esgotariam. É maravilhoso ver como essa série subverte o que costumávamos assistir antes. De coadjuvantes, ela passa as mulheres para protagonistas, tão complexas e multifacetadas quanto somos na vida real. Espero que seja só o começo da presença dessa abordagem na TV e no cinema. Que só tenha a ganhar mais espaço porque representatividade importa muito!

    Bjs

  2. Oi, Ana, Anna e Fernanda!

    Uau, que análise incrível! Li várias desde que a série acabou, escrevi a minha também (http://confissoesesincericidios.com/big-little-lies/) e, de verdade, acho que essa de vocês foi a mais completa.

    Acho que ter sido exibida em um canal do porte da HBO, ter um elenco estelar (consolidando a tendência de grandes atrizes do cinema vindo para a televisão) e, principalmente, ter a quantidade e qualidade de personagens femininas (não sendo mais um exemplo da síndrome de Smurfette, como a Reese ressaltou em entrevistas) fizeram de Big Little Lies incrível. Foi tão bom ver vários assuntos importantes sendo discutidos sem aquele didatismo e simplicidade irritantes. E, mais ainda, foi ótimo acompanhar várias personagens femininas complexas, diferentes e cheias de nuances juntas! Mal acabou e já estou querendo maratonar de novo. hahaha

    Bom, era isso! Obrigada pelo texto! Um beijo e vida longa à Valkirias! <3

  3. Incrível. Terminei o livro essa semana e comecei a ver a série ontem. Como sempre vcs falaram tudo o que tava embaralhado aqui na minha cabeça e eu nunca poderia expressar tao bem quanto isso. Essa tal de sororidade é tão plena. Fico feliz ver que mesmo lentamente a mentalidade, a percepção das coisas, estão mudando. 🙂

  4. Terminei a série agora e adorei o texto de vocês! Série fantástica, excelente, altíssima qualidade e importantíssima. E o texto de vocês se mantém no mesmo nível. Parabéns!

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