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COWBOY CARTER: o réquiem da música americana por Beyoncé 

Foi no longínquo ano de 2016 que Beyoncé, uma texana nascida em Houston, enfrentou a primeira parede de resistência do conservadorismo do country como gênero nos Estados Unidos. Mal sabiam eles a colmeia que haviam despertado.

Presente no disco LEMONADE, “Daddy Lessons” foi totalmente ignorada pelas rádios do nicho e, durante uma apresentação no Country Music Awards ao lado do grupo The Chicks, a cantora enfrentou olhares tortos e o ativo boicote da própria produção da premiação, que supostamente chegou a abaixar o volume de seu microfone durante a performance apoteótica. Mais tarde, após o pico de audiência e mesmo com alta nas buscas, a apresentação foi retirada nas páginas oficiais do CMA, como se não tivesse acontecido.

Ocorre, no entanto, que “Daddy Lessons”, repleta de camadas de blues, country e folk, se tornou um marco experimental na discografia altamente fincada no pop, hip hop e R&B de Beyoncé e o episódio marcou uma virada de comportamento e de interpretação de sua parte, além de ter ficado assinalado como um maiores episódios de boicote televisionado da indústria, motivado pelo racismo.

Cowboy Carter

De lá para cá, Beyoncé lançou um álbum com Jay-Z, entrou em turnê com o marido, a icônica On The Run II, e pegou o mundo de assalto com o álbum RENAISSANCE, o primeiro e arrebatador primeiro ato de um corpo de trabalho maior. E, se em 2022, ela entendeu que, na ressaca da pandemia, o mundo tinha que mergulhar na house music para levar as pessoas para fora de casa e dançar despreocupadamente, com o segundo ato, a cantora volta às raízes em sua jornada de heroína.

Ironicamente, fica claro que, ao mesmo tempo que está em busca de sua arte, não precisa provar nada aos que a questionam. Por isso, COWBOY CARTER não é definido como um álbum country, mas um “álbum de Beyoncé”: ou seja, a cantora é capaz de fazer o country que todos fazem, mas pode fazer mais, pode fazer da forma e no formato que quiser e, com o projeto, a artista deixa evidente que seu método não é comparável ao que é feito no gênero e nem o que todos esperam. Mostra-se, portanto, uma resposta mais do que eficaz àquela ocasião em que não se sentiu bem-vinda durante sua primeira cruzada no gênero, como explica em declaração no Instagram: “Este álbum está sendo produzido há mais de cinco anos. Nasceu de uma experiência que eu tive anos atrás, onde não me senti muito bem-vinda… E foi muito claro que eu não era. Mas, por conta dessa experiência que eu adentrei mais profundamente na história da música country e estudei nosso rico arquivo musical. […] As críticas que eu enfrentei quando entrei no gênero pela primeira vez me forçaram a encarar as limitações que foram colocadas sobre mim. […]”.

Como o primeiro ato, RENAISSANCE, COWBOY CARTER é uma viagem experimental pela música, sendo ideal que seja ouvido na ordem disposta pela artista, especialmente quando Beyoncé já começa endereçando o episódio na primeira faixa, “AMERICAN REQUIEM”, uma abertura que, além de tudo, condensa tudo o que o álbum essencialmente é: uma profunda exploração de suas raízes texanas e verdadeiramente americanas, um convite a ouvi-la realmente agora que adentra de vez no gênero, um chamado para unir aqueles que querem estar ao seu lado, independente de barreiras, um claro desafio aos resistentes:

“Olhe lá, olhe aqui na minha mão
A neta de um produtor de cachaça clandestina
Gadsden, Alabama
Tenho família em Galveston, raízes na Louisiana
Diziam que eu falava ‘country demais’
Então a rejeição veio, disseram que eu não era ‘country o suficiente’
Disseram que eu não iria subir na cela, mas 
Se isso não é country, diga-me, o que é?”

Cowboy Carter

No seu “recomeço”, Beyoncé canta que as grandes ideias em que estão fincadas as antigas crenças dos americanos estão enterradas e COWBOY CARTER se mostra uma pá de terra muito bem orquestrada para selar este túmulo (em um mundo ideal), uma vez que a artista vem subindo na sela e dando indícios de seu desafio desde a capa de RENAISSANCE — demonstrando como sua discografia tem sido intencionalmente intrincada e bem delineada desde então.

O disco não sofre de linearidades, conveniências e obviedades e, já na segunda faixa, conta com a ressignificação de um clássico. “Blackbird”, dos Beatles, que não tem nada de country, mas todo o simbolismo que Beyoncé necessita para se afirmar ainda mais como uma artista verdadeiramente livre e uma pessoa preta que, sem amarras, acaba de encontrar seu momento de ser livre.

Em entrevista à revista GQ, Paul McCartney revelou que a canção, uma das mais famosas da banda, foi diretamente inspirada pelo movimento por direitos civis nos Estados Unidos dos anos sessenta. Dessa forma, o pássaro negro é usado mais como uma metáfora de toda a intenção de liberdade por trás da luta, que ocorria do outro lado do oceano:

“Aqueles eram os dias do movimento pelos direitos civis, sobre o quais todos nós nos importávamos, então essa é realmente uma música minha para uma mulher negra vivenciando esses problemas nos Estados Unidos. Me deixe te encorajar a continuar tentando, mantendo sua fé, há esperança. […] Então, ao invés de dizer, ‘mulher negra em Little Rock’ e ser muito específico, ela se tornou um pássaro, se tornou um símbolo, então você pode aplicar à sua situação pessoal.”

Beyoncé, então, se apropria da canção, dando um toque a mais de grandiosidade aos clássicos acordes ao convidar outras quatro mulheres negras — Tanner Adell, Brittney Spencer, Tierra Kennedy e Reyna Roberts —, para tomarem para si seu verdadeiro lugar: de símbolo, sob a visão da cantora, elas passam à protagonistas no coro gentil e delicado em uma prova de que nem tudo é luta, mas tudo é afirmação, representação.

O início do álbum também é marcado por canções de cunho mais pessoal para Beyoncé, como “16 CARRIAGES”, a qual parece abordar a fama alcançada em idade tenra, quando deixou sua casa para se juntar ao grupo que a levou ao estrelato, o Destiny’s Child, citando uma certa perda da inocência ao encarar os problemas fora da proteção do lar, ao passo que, logo na faixa seguinte, “PROTECTOR”, conta com um áudio de sua filha, Rumi, pedindo por uma canção de ninar enquanto jura protegê-la e guiá-la — talvez, de um modo que ela não foi em sua própria jornada, uma vez que é de conhecimento público que a artista enfrentou problemas com o próprio pai na posição de agente de seu grupo.

Em seguida, “SMOKE HOUR X WILLIE NELSON” define o início de outro tipo de jornada, a imersão na programação de uma rádio fictícia intitulada KNTRY Radio Texas, com o lendário cantor do country como narrador. Afinal, se as rádios country afirmaram não tocar Beyoncé, ela pode criar sua própria rádio, uma forma de levar seus ouvintes aonde deseja: “Agora, para esse próximo som, quero que vocês se sentem, respirem fundo e vão para o lugar feliz ao qual suas mentes os levam. E, se não quiserem ir, vão procurar uma jukebox.”

O próximo bloco dentro do ato é iniciado pelo single, que atingiu o primeiro lugar da Billboard Hot 100 e da Hot Country Songs, “TEXAS HOLD’EM”, tornando-a a primeira mulher negra a ranquear em tal posição com uma música do gênero. A canção viral, que introduziu a “beyhive” (seu grupo de fãs) de maneira quase desacreditada à nova empreitada da cantora, representa quão bem sucedido COWBOY CARTER nasceu para ser e como a cantora estava correta em seu instinto de experimentação e autoprovação.

Como o country de Beyoncé é apenas dela, a continuidade chega com “BODYGUARD”, uma abordagem mais pop e elegante de outra faixa que aborda seu relacionamento com Jay-Z. Sua letra seria quase inofensiva, não fosse a sequência embalada por uma interlúdio na voz de Dolly Parton, que recorda a canção “Sorry” de LEMONADE ao citar o famoso, mas não nomeado affair do rapper, que motivou a breve separação do casal em meados de 2015, “Becky do Cabelo Bom”:

“Hey, Miss Honey B., é Dolly P.
Sabe aquela mulher de cabelo bom sobre a qual você canta?
Me lembra alguém que eu conheci há alguns anos
Só que ela tem mechas flamejantes de cabelo castanho-avermelhado
Deus a abençoe
Só um cabelo de cor diferente, mas dói do mesmo jeito”

A presença da considerada maior lenda viva do country é o aval necessário para Beyoncé mergulhar de vez no gênero, realizando sua própria versão da canção clássica de 1974, “Jolene”, que colocou Dolly Parton no mapa como cantora solo: novamente, uma afirmação e uma representação, exceto que, desta vez, o eu-lírico da narradora deixa de ser inofensivo, ativamente lutando para afastar Jolene de seu homem e proteger seu casamento.

Cowboy Carter

Como em diversas canções da mitologia de Beyoncé, subsiste nesta “JOLENE” um senso de perseverança e mérito, especialmente sobre as lutas que apenas um casal de anos compreende: “Eu cruzei aqueles vales / Por altos e baixos e tudo o mais entre eles / Você chegou como uma erva daninha / Bem e feliz, porque você não pode desenterrar as sementes que plantamos […] Eu fico ao lado dela, ela fica ao meu lado, Jolene”. 

A essa altura, fica claro que o tema familiar e religioso é ativamente explorado por toda a obra, inclusive em “DAUGHTER”, onde ela retorna às suas raízes e se compara com o pai um certo senso de vingança contra aqueles que foram perturbar sua paz e a obrigaram a cometer um verdadeiro crime — uma metáfora, talvez, para sua inserção no country em detrimento da resistência dos críticos. Aqui, Beyoncé volta a brincar com gêneros ao servir versos em ópera para entoar um coro de arrependimento e perdão religiosos. Mas, apesar de tudo, ela é filha de seu pai, ou seja, “mais fria do que as águas do Titanic”, se necessário: “Eu realmente tentei manter a calma / Mas sua arrogância perturbou minha solitude / Agora rasguei seu vestido e você está machucada e triste / Olhe o que você me fez fazer”. 

“SPAGHETTI feat. Shaboozey” é a prova de que Beyoncé, ainda que esteja em sua empreitada desafiante de autoprovação no country, não está atrelada aos seus códigos. Com uma interpolação de Linda Martell, primeira artista negra a alcançar o sucesso no country e a se apresentar na casa de shows mais famosa do país, o Grand Ole Opry, em Nashville, Tennessee, em 1969; a canção conta também o sample do funk brasileiro, “Aquecimento das Danadas” (DJ Mandrake), enquanto Martell reflete: “Gêneros são um conceito engraçado, não são? Sim, eles são. Em teoria, eles têm uma definição simples de se entender. Mas, na prática, alguns podem se sentir confinados.”

Ou seja, antes de Dolly, havia Martell, mas, em razão do racismo já muito arraigado no country, a cantora foi relegada ao R&B, um ritmo identificado como “tipicamente negro” — ao qual, a própria Beyoncé foi diversas vezes limitada, inclusive em premiações. Em 2022, a cantora e o álbum RENAISSANCE não venceram nenhuma categoria principal do Grammy, mas se sobressaiu em gêneros nichados, como dance/eletrônico e o próprio R&B, com as faixas, “Plastic Off the Sofa” e “Cuff It”.

Cowboy Carter

Na época, a mesma chegou a incrível marca de 32 vitórias na maior premiação dos Estados Unidos, porém, é necessário refletir sobre como, ainda que se trate de um número impressionante, que a consagra como uma das maiores artistas vivas da história, também são números que a colocam numa caixa de restrições reservada para pessoas negras. Enquanto Beyoncé não venceu nenhuma vez sequer a maior honraria da noite, a categoria de Álbum do Ano, Taylor Swift, que possui um tempo de carreira consideravelmente menor, se consagrou quatro vezes campeã.

Objetivamente, não é possível dizer que o trabalho de Beyoncé possui menos qualidade técnica do que o de Swift. De outro lado, subjetivamente é necessário apontar o histórico da Academia. Em quase setenta anos de premiação, apenas doze músicos negros venceram o prêmio de Álbum do Ano, dentre eles Stevie Wonder, Michael Jackson e Whitney Houston, uma das três mulheres que compõem a estatística ao lado de Natalie Cole e Lauryn Hill, sendo esta a última a vencer em 1999, com o álbum, The Miseducation of Lauryn Hill’.

Não dá para afirmar que outros homens e, principalmente, mulheres negras não realizaram trabalhos relevantes o bastante para serem reconhecidos pelo Grammy. Porém, essa é uma questão que a própria Beyoncé endereça mais uma vez em uma brincadeira bem sucedida de gêneros, “SWEET X HONEY X BUCKIIN’ (feat. Shaboozey)”, após falar sobre o assunto diretamente em “APESHIT”, parceria com Jay-Z do álbum THE CARTERS (2018), ao cantar:

“Álbum do ano, eu não ganhei
Eles não me afetam 
Enfrentei essa p*rra de cabeça erguida
Voltei e botei pra f*der com a caneta
Digo as coisas que eu sei que vão ofender
Uso aquilo que sei que vai começar uma nova tendência 
[…]
Eles estão sibilando, não os escute
Eles mordem de vez em quando 
Mas eles sentem o poder quando a gente 
Balança […]”

Assim, na segunda “hora” do programa Smoke Hour de sua rádio country, Beyoncé traz duas parcerias inicialmente surpreendentes, Miley Cyrus e Post Malone, em “II MOST WANTED” e “LEVII’S JEANS”. Contudo, sob uma melhor análise, é possível encontrar paralelos entre os artistas com o trabalho de Beyoncé e suas próprias histórias na indústria.

Além de partir de uma berço tradicionalmente country, sendo filha de Billy Ray Cyrus, voz de uma das maiores canções do gênero, o hit “Achy Breaky Heart”, dos anos noventa, e protagonista de um grande retorno da música às paradas com Old Town Road (2018), ao lado Lil Nas X, o qual também enfrentou resistência dos artistas do gênero por não soar “country o bastante” para figurar nas paradas nichadas até que contasse com o remix com o mais velho; Miley é afilhada de Dolly Parton, sendo responsável por voltar a popularizar a canção “Jolene” entre toda uma nova geração de fãs com sua versão e passado por sua própria empreitada no country com o álbum, Younger Now (2016).

Dessa forma, o gênero não é nada estranho para a voz de “Flowers”, porém, a artista sofre das mesmas limitações de Beyoncé, ainda que realize subversões — tendo organizado o especial, “Stand By You: Pride Special (Peacock)”, em comemoração ao mês do Orgulho LGTBQIA+, no, também histórico, Ryman Auditorium, em Nashville (TN), berço do conservadorismo americano, contando com a presença de artistas do gênero, como Little Big Town, Maren Morris e Orville Peck: a insistência em encaixá-la na generalidade de apenas um tipo de música e limitá-la à sua imagem do passado, desconsiderando qualquer evolução pessoal e profissional.

Se Beyoncé não é mais a cantora de “Single Ladies” (2009), uma canção pop perfeita em sonoridade e performance, mas, ainda assim, apenas uma canção pop, Miley há muito deixou de ser a persona caótica do “Bangerz”, de 2013, sendo muito sucedido em suas incursões no hip-hop e no rock, questões com as quais Post Malone também é capaz de se relacionar.

Acusado de não ser cantor de verdade, Malone tem o hip-hop como expoente, mas não consegue se restringir ao gênero. O artista tem em “Hollywood’s Bleeding” (2019) um grande exemplo da experimentação do artista em outras searas da música e em AUSTIN, seu último projeto, fica claro a influência country-rock do texano. Assim, especialmente por se tratar de um trabalho onde demonstra evidente vulnerabilidade, faz sentido o mergulho nas músicas que mais ressoam em sua essência.

Malone, em entrevista ao jornalista especializado, Zane Lowe (Apple Music), comentou que suas maiores influências foram o Fleetwood Mac e o Radiohead, o que fica bastante evidente em faixas não exatamente óbvias, como “Texas Tea”, “Don’t Understand”, “Landmine”, além da parceria com Noah Kahan, “Dial Drunk”, que bebe da fonte do folk. Com isso, após a utilização tímida de alguns elementos do gênero, o cantor confirmou que estava em Nashville para produzir um álbum inteiramente country, o que causou estranheza, afinal o público-alvo do cantor são jovens, mas também curiosidade.

Como Kacey Musgraves já citou anteriormente, “você pode tirar a garota do country, mas não pode tirar o country da garota”. O contexto do comentário da vencedora do Grammy com o aclamado, Golden Hour (2018), está relacionado ao “rebaixamento” de seu trabalho de 2021, o “star-crossed”, por não conter elementos suficientes do gênero para figurar nas categorias nichadas da premiação, por isso, ante tantas limitações, faz todo o sentido que um trabalho como o de Beyoncé chegue para arrebentar com todas essas barreiras contando com artistas que, como ela, não se podam pelas expectativas e/ou críticas dos demais.

Ao mesmo tempo, ela parece ser capaz de criar um equilíbrio perfeito ao se escorar em nomes clássicos e sonoridades conhecidas para reafirmar sua própria identidade, afinal, apesar de seus últimos projetos estarem sempre fincados em coletivos e princípios históricos muito bem delineados, é quase como se não houvesse pessoalidade o bastante para existir uma verdadeira aproximação de sua essência.

No início de mais um ato dentro do COWBOY CARTER, Linda Martell rememora os tempos das apresentações ao vivo nas rádios americanas com o interlúdio “THE LINDA MARTELL SHOW”, onde avisa que a próxima apresentação, “YA YA”, é uma experiência única. E ela não está errada. Na faixa, que conta com sample da super clássica “These Boots Are Made For Walkin’”, de Nancy Sinatra, e “Good Vibrations”, dos Beach Boys, a cantora emula algo que só poderia ser feito por Tina Turner, sua maior ídola, caminhando pelas diversas camadas da canção inspirada no rock-soul dos anos 60, ao reclamar propriedade sobre tal sonoridade:

“Minha família viveu e morreu na América
O bom e velho Estados Unidos (camarada EUA) 
Muitos tons de vermelho, depois de azul e branco, hein
A história não pode ser apagada 
Você está procurando por uma nova América 
Você está cansado? Trabalhando muito por metade do salário, yaya (há contas a pagar)
Só rezo para não sofrermos um acidente, mantenho minha bíblia embaixo do painel”

Da mesma forma que faz em “BREAK MY SOUL”, em RENAISSANCE, enquanto dança, Beyoncé não deixa os temas políticos de lado e chega a fazer uma brincadeira com o vermelho que estampa a bandeira americana, a cor associada aos comunistas e o sangue de negros discriminados e indígenas apagados na Terra da Liberdade, que sofre com tantos problemas sociais como as demais, agravados pela desigualdade.

A cantora já havia abordado as questões ambientais em “TEXAS HOLD’EM” ao comentar sobre tornados e ondas de calor chegando à cidade, mas volta a fazê-lo aqui ao mencionar diretamente incêndios florestais (que, frequentemente, tomam parte dos Estados Unidos) e problemas com a falta de infraestrutura em saúde pública no país, bem como o trabalho mal remunerado: “Um incêndio florestal incendiou a casa dele / O seguro Fannie Mae não vai cobrar nada, p*rra / Então segure essa mangueira ou sirva mais licor, por favor / Homens que trabalham duro não têm dinheiro no banco”. 

Apesar de tudo, as pessoas não deixam de ir para as pistas de dança, afinal o que sobra no mundo sem essas “boas vibrações”? Assim, “YA YA” encontra uma continuidade mais “fútil”, divertida e despreocupada no último terço do álbum, em canções como “DESERT EAGLE”, “RIIVERDANCE”, uma faixa dançante com elementos folk, e até “II HANDS II HEAVEN” e “TYRANT” (uma breve ode à antiga, “End of Time”, do álbum autointitulado de 2011), onde volta a cantar sobre seu casamento, a sintonia com Jay-Z e a própria sexualidade, um tropo bastante presente em diversas eras da cantora, que não poderia deixar de ser explícito em sua fase mais subversiva, por isso, a voz de Parton volta a anunciar: “Cowboy Carter, é hora de acender um fósforo e iluminar essa casa de shows”. 

Dessa forma, se havia algumas inconsistências no álbum de 2022, Beyoncé apaga todas com a última faixa do projeto. “AMEN” parece ser um prelúdio da primeira canção do primeiro ato, “I’M THAT GIRL”, mas é o fechamento perfeito para COWBOY CARTER. Nela, a cantora volta a entoar, “você poder me ouvir?” enquanto parece finalizar o recomeço iniciado em “AMERICAN REQUIEM” com uma prece de misericórdia pelos conservadores que inicialmente tentaram distanciá-la do gênero.

Em detrimento de tudo o que enfrentou, ela ainda consegue manter a misericórdia, emulando a imagem superior e sagrada que vem esculpindo para si mesma, ao menos, desde 2016, especialmente quando toma para si os visuais tradicionais do country e os mistura às suas raízes negras, como faz em uma das imagens promocionais ao se referir a si mesma como BEYINCÉ, real sobrenome do pai de sua mãe, que inspirou seu nome, e na própria capa do álbum, onde emula grandes retratos de líderes mundiais, buscando se tornar o “rosto da América” e, por carregar a bandeira na mão esquerda, clamando por seu próprio tipo de patriotismo, mas também referenciando as rainhas do rodeio americano. Responsáveis por carregar a bandeira do país nos eventos, essas mulheres são comumente representadas por americanas padrão, sendo que foi apenas em 2023 que o estado do Arkansas teve sua primeira Rainha negra.

Essa casa foi construída com sangue e ossos
E ela desmoronou, sim, ela desmoronou 
As estátuas que fizeram eram bonitas
Mas eram mentiras de pedra, eram mentiras de pedra
Trombetas soam, o silêncio alto
Preciso fazer você se orgulhar 
Me diga, você pode me ouvir agora? 
[…]
Faça uma oração por aquilo que tem acontecido
Nós seremos aqueles que purificarão os pecados dos nosso pais
Réquiem americano 
As ideias dos homens (sim) estão enterradas aqui
Amém 

Uma ode à música americana e uma moderna concessão de espaço aos negros em gêneros tipicamente popularizados por brancos, COWBOY CARTER, com mais de uma hora de duração, é um grande entretenimento comercial, uma vez que se sustenta perfeitamente quando esmiuçado do corpo de trabalho artístico, ao mesmo tempo em que é um protesto, um mergulho em temas políticos relevantes (afinal, seu próprio lançamento é político e poderoso), tanto visualmente como em sonoridade, sem deixar de lado a diversão, a sensibilidade, a genialidade e a grandiosidade de uma artista que, cada vez mais, molda a indústria musical aos próprios objetivos.

Com seus últimos trabalhos, Beyoncé determina pessoalmente os rumos coletivos de uma luta que possui em si mesma muita historicidade, muito simbolismo, muita dor e, como deixa claro nos ritmos e letras de suas canções, também muita leveza, muito potencial, muita grandeza, muita pessoalidade. Como no primeiro ato, ela demonstra através de seus projetos que possui um norte, uma ideia bem determinada do que deseja e, acima de tudo, que tem em quem se apoiar e com quem contar, clamando por companhia em um caminho que, apesar da grande aclamação, não pode — e não deve — ser solitário.

COWBOY CARTER é, provavelmente, o maior êxito profissional de Beyoncé, um trabalho inteiramente fincado na certeza sonora sobre o gênero base e as próprias raízes, antes tão questionadas em razão de seu tom de pele, pois, apenas alguém que conhecesse muito bem o território em que pisava, poderia impor a própria personalidade e subverter de forma tão brilhante algo tão inteiramente repleto de tradicionalismos quanto a música country. Mas isso apenas até o próximo ato, aquele que deve encerrar seu réquiem musical de forma arrebatadora e, até lá, há muito o que conhecer e explorar da persona de bota e chapéu.