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Donzela: uma princesa no covil do dragão

Por mais batida que já esteja, a história da princesa que salva a si mesma ainda desperta a atenção do público. Em especial para quem cresceu com histórias de donzelas passivas à espera de um salvador encantado, submissas ao destino que os outros escolheram para elas. Desde as primeiras divulgações de Donzela, novo filme da Netflix que busca subverter os contos de fada, a mega produção se destacou pela abordagem moderna da clássica fábula. Porém, o longa-metragem peca ao apresentar um roteiro fraco e cheio de clichês ultrapassados.

A trama acompanha a princesa Elodie (Millie Bobby Brown), cujo reino passa por um período difícil de fome e miséria. Para sobreviver à crise, seu pai, Lord Bayford (Ray Winstone), faz um acordo com o próspero reino de Áurea, o tradicional cenário de contos de fada, com castelos magníficos e campinas verdejantes de tirar o fôlego. Assim, fica decidido que a jovem atravessaria o oceano para se casar com um príncipe desconhecido (Nick Robinson) e, em troca, sua família receberia ouro suficiente para se recuperar.

Donzela

Logo após o casamento, a princesa deveria participar de uma cerimônia tradicional em honra à memória dos fundadores do reino. Durante o ritual, a Rainha Isabelle (Robin Wright) explica que a origem de Áurea remonta a um trato feito séculos antes pelo primeiro rei com a criatura que habita o local. Neste momento, é revelado que o casamento era apenas uma farsa e Elodie é lançada no abismo como sacrifício ao dragão — que, na verdade, se trata de uma fêmea, como em Shrek.  Enquanto luta para sobreviver aos perigos da caverna, Elodie descobre que é apenas mais uma das muitas jovens que Áurea sacrificou ao longo dos séculos. Três por vez, elas eram enganadas com a promessa do matrimônio e depois oferecidas à criatura como pagamento do antigo acordo. Guiada por mapas e mensagens deixadas pelas antecessoras sobre o que seria ou não seguro na traiçoeira montanha, a princesa toma, então, as rédeas de sua própria história e passa a lutar por sua vida.

Embora não apresente nada de novo, ainda há espaço para enredos como o de Donzela. Não por acaso, tão logo a sua estreia, o filme rapidamente atingiu o primeiro lugar no Top 10 da Netflix em 79 países. Foram mais de 35,3 milhões de visualizações em sua semana de lançamento e é inegável que a atmosfera medieval, os elementos de fantasia e a proposta de reimaginar contos de fadas foram bem-sucedidas. O elenco de peso também parecia legitimar a qualidade da produção. Além de Millie Bobby Brown, estrelas como Angela Bassett, de Tina – A Verdadeira História de Tina Turner (1993), Robin Wright, de House of Cards (2013 a 2018), e Nick Robinson, de Com amor, Simon (2018), atuam no longa.

No entanto, o filme entrega muito pouco do que promete. Ou melhor: entrega um roteiro fraco, regado a um feminismo barato, com diversas falhas na história e atuações medianas. Há alguns anos, quando começaram a surgir as primeiras histórias sobre empoderamento de personagens femininas — princesas inclusas — Donzela, sem dúvida, teria causado alvoroço, mas hoje ele parece apenas ter perdido o timing para sua criação. Frente a histórias já criadas no mesmo gênero e estilo, o filme é apenas mais do mesmo; não existe nenhum elemento novo e, no final das contas, a trama consegue entreter, mas não inova e nem marca a audiência.

Donzela

Há um simbolismo interessante na princesa que sabe cavalgar, cortar toras de madeira com um machado para ajudar o povo que passa frio e que consegue transformar um intricado vestido de noiva em armas e curativos. Mas não passa disso. Os debates e as produções feministas avançaram muito nos últimos anos e a jornada de Elodie acaba sendo muito básica, já que não vai além de falar como “estou cansada de fazer o que mandam”. São ideias antigas e estereotipadas de feminismo no cinema, e atualmente já há espaço — e demanda — para engajar em debates mais profundos e representações mais complexas.

A direção de Donzela é do espanhol Juan Carlos Fresnadillo, de Extermínio 2 (2007) e Intacto (2001), enquanto o roteiro é assinado por Dan Mazeau, de Fúria de Titãs 2 e Velozes e Furiosos 10. Sem questionar a qualidade de trabalhos anteriores de ambos, nem afirmar que um homem não poderia produzir um filme feminista (com o repertório certo, é claro), acredito que uma voz feminina tenha faltado por trás das câmeras. É interessante que todas as personagens principais sejam mulheres com funções importantes na narrativa, mas os diálogos entre elas sejam tão rasos, ao ponto de perderem a oportunidade de trazer à tona debates sobre a existência feminina para a tela. São as frases de efeito que se sobressaem, o que acaba sendo um dos maiores defeitos do roteiro, pois, além de não significarem muita coisa, conferem um ar embaraçoso às situações. Parece uma tentativa de impactar o público de alguma forma, o que a história não consegue por si só, mas é uma tentativa fadada ao fracasso. Como consequência do roteiro, as atuações também não conseguem se destacar. Millie mergulha de cabeça na interpretação de Elodie e faz um bom trabalho no papel da protagonista, mas a produção não aproveita todo o talento da estrela em ascensão — ou de outros grandes nomes do elenco.

Apesar de tudo, o filme tem seus acertos, principalmente em relação à direção artística, que faz o mundo fantástico retratado em tela parecer real. Os cenários dos castelos e dos campos são belíssimos e os figurinos são lindos, assim como o trabalho de maquiagem e cabelo. É fácil acreditar que aquele universo existe, uma vez que tudo é muito coeso visualmente. Esses elementos convergem para a construção da atmosfera mágica do longa junto ao design do dragão e dos terrores de sua caverna. O ritmo também é bem gerido, os acontecimentos não se atropelam nem demoram a se desenvolver. Mesmo que seja previsível, a trama não é entediante, pois consegue envolver o público a partir de um bom equilíbrio entre momentos de maior e menor tensão. Por último, é impossível não elogiar a trilha sonora. Com a autoria de Hans Zimmer, de Duna (2021), Interstellar (2014) e diversos outros sucessos, as músicas arrepiam e envolvem até os mais fortes de coração.

Donzela

No conteúdo, um pequeno acerto foi a forma de representar a sororidade e a força feminina a partir da amizade. Elodie consegue escapar de diversos perigos a partir das mensagens e dos recursos deixados por outras meninas que passaram por aquela luta antes dela. Da mesma forma que recebeu ajuda, ao escapar da caverna, a princesa também salva aquela que seria a próxima menina sacrificada pela família real de Áurea. Apesar de sutil, a abordagem das amizades femininas, alvo antigo do patriarcado, encaixa bem na trama e na militância. Historicamente, o machismo busca enfraquecer a união de mulheres e meninas como forma de desarticular reivindicações feministas. Contudo, essa troca de experiências e apoio mútuo é a melhor maneira de lutar pela libertação de todas, assim como acontece com Elodie na ficção.

No geral, Donzela é um filme bom enquanto entretenimento. Ainda que tenha algumas falhas na trama, é possível se envolver na luta da princesa que busca escapar do covil do dragão. O visual medieval da produção consegue conquistar e a visualização é satisfatória esteticamente. No entanto, o filme tinha potencial para ser e provocar muito mais. Elodie podia ser uma princesa digna dos tempos contemporâneos e representar melhor as diversas camadas de empoderamento feminino, em vez de apenas reduzir o movimento a uma sombra estereotipada.