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O Mal Que Nos Habita e a disseminação do mal em um mundo sem fé

O sobrenatural está presente no cinema de horror desde a sua gênese. Em A Mansão do Diabo, curta-metragem de George Mèlies feito em 1896, vemos Mefistófeles assombrando dois cavaleiros desavisados que entram em um castelo. Ainda que o filme não seja assustador para quem o assiste em 2024, diversos elementos que se tornaram populares no subgênero se fazem presentes nos seus três minutos de duração, como o simbolismo católico. Isso porque esta religião está diretamente ligada ao medo, seja ele do que acontece após a morte ou da própria doutrina. Tais temores podem ser compreendidos quando observamos o maniqueísmo presente na ideia de céu e inferno, algo que resume a existência humana a dualidades e ignora as zonas cinzas. Logo, dentro desse tipo de narrativa, a fé funciona simultaneamente como um alento e uma fonte de intimidação.

Quando se fala sobre as produções comerciais estadunidenses, a religião também surge em tela como ferramenta de controle. Isso pode ser ilustrado pelo fato de que as histórias de possessão são quase sempre protagonizadas por mulheres que transgrediram alguma regra e acabaram “pagando o preço” pelo seu pecado, como O Exorcismo de Emily Rose (The Exorcism of Emily Rose, 2005). Também não é incomum que a pureza e a virtude se materializem em padres, freiras e outros membros da Igreja Católica, colocados na posição de salvadores dessas “almas perdidas” mesmo quando questionam a própria fé, como no caso do Padre Karras (Jason Miller) em O Exorcista (The Exorcist, 1973). Assim, as histórias que lidam com esses temas acabam sofrendo de certa previsibilidade nos dias de hoje.

O Mal Que Nos Habita

Por outro lado, quando elas são contadas fora dos Estados Unidos, existe uma tendência a extrapolar o cânone e usar outros elementos para provocar. Em geral, os diretores se dão espaço para criar e experimentar porque o caráter desconhecido das ameaças permite que muito seja imaginado. Exemplos disso são os excelentes A Chorona (La Llorona, 2019), de Jayro Bustamante, e O Mal Que Nos Habita (Cuando Acecha la Maldad, 2023), de Démian Rugna. Embora ambos os filmes abordem assuntos populares, eles fazem escolhas formais e discursivas bastante surpreendentes.

Em O Mal Que Nos Habita, os irmãos Pedro (Ezequiel Rodríguez) e Jimi (Demián Salomón) descobrem um corpo cortado ao meio em uma mata próxima à sua propriedade. Ao investigarem mais profundamente, acabam encontrando um apodrecido, palavra usada para se referir a pessoas possuídas pelo demônio. Uriel (Pablo Galarza/Gonzalo Galarza), o homem em questão, está definhando há um ano e prestes a “dar a luz” ao mal que vive no seu interior. Frente ao descaso das autoridades locais, que questionam o que um apodrecido estaria fazendo em uma cidade erma como aquela, Pedro e Jimi decidem transportar Uriel para fora do local acompanhados por Ruiz (Luis Ziembrowski), o proprietário de boa parte das terras da região. Entretanto, a “carga” acaba escapando da caminhonete e a “doença” começa a se espalhar de forma rápida, dando início a um dos filmes mais impiedosos e frenéticos dos últimos anos.

O Mal Que Nos Habita

Não existe espaço para respirar em O Mal Que Nos Habita. Tudo acontece de maneira acelerada, o que serve bem ao senso de urgência da trama. Essa decisão de Démian Rugna também se mostra um acerto porque elimina diálogos expositivos e flashbacks, recursos comuns em histórias nas quais dos realizadores tentam criar um universo regido por regras próprias. Desse modo, o que precisamos saber é inserido orgânica e gradualmente. Por exemplo, depois que uma das cabras de Ruiz aparece manifestando sinais de possessão e a sua esposa pede para que ele não atire no animal. Quando esse pedido não é respeitado, ela acaba matando o marido com golpes de machado e, em seguida, tirando a própria vida. Somente conforme o filme avança e os protagonistas chegam à casa em que vive Sabrina (Virginia Garófalo), a ex-mulher de Pedro, descobrimos que as armas de fogo ajudam a propagar o mal. É também conforme a narrativa segue o seu curso que se torna claro porque um filme que lida com possessões é tão despido de símbolos católicos.

Em uma cena de O Mal Que Nos Habita, Pedro afirma a Igreja está morta. Portanto, estes elementos não têm mais efeito ou lugar. O mal é algo cotidiano, que se espalha com facilidade e sem seguir nenhum tipo de lógica. Assim, não há nada que uma pessoa comum possa fazer para contê-lo além de seguir as regras estabelecidas pelos limpadores, os únicos qualificados para lidar com a possessão. Diante disso, as cidades isoladas e desoladas começam a fazer sentido, visto que as pessoas estão desassistidas. Isso não acontece porque não existem mais leis. Démien Rugna é inteligente o bastante para fugir de discursos batidos a respeito de civilização e barbárie. Na verdade, o diretor prefere usar o seu filme para discutir um abandono extremamente reconhecível em tempos pós-pandemia e, eventualmente, percebemos que pode até existir um governo, mas ele não está preparado para lidar com a concretude da “doença” e com o fato de que os apodrecidos são parte de um problema coletivo e de saúde pública, não algo que depende das crenças de cada um, como o delegado dá a entender depois da tentativa de obter socorro de Pedro e Jimi.

O Mal Que Nos Habita

Porém, vale ressaltar que, embora O Mal Que Nos Habita conte com esse subtexto social forte, não é isso que torna o filme um dos melhores de 2023. O trunfo da produção está no seu entendimento de que não se faz cinema de gênero sem o absurdo. Portanto, ao andar na contramão de uma visão higienizada do horror, algo que infelizmente tem encontrado espaço atualmente, o longa consegue se destacar por mostrar que não é preciso sacrificar o grotesco e os sustos em prol do discurso. Muito disso pode ser condensado na maquiagem de Uriel e nos efeitos práticos, mas também encontra ecos na atmosfera opressora, marcada por recursos como o trabalho de luz e sombra e o uso dos closes. Outro ponto extremamente importante para o longa é a sua raiva mal direcionada, que culmina em sequências gráficas e de uma violência abrangente, exatamente como deveria ser em uma história que fala a respeito da disseminação do mal e dos seus efeitos na vida de pessoas comuns.

Com um desfecho desolador, O Mal Que Nos Habita consegue deixar quem assiste exatamente no mesmo ponto em que os seus protagonistas estão: não existe para onde ir ou o que salvar depois que tudo foi maculado por aquilo que existe de podre no mundo. Essa falta de esperança é coerente com a história, além de ser um respiro em uma indústria que se alimenta de “finais felizes” pela possibilidade de continuar a explorar um universo que funcionou para o público em momentos anteriores.