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A Orquestra dos Inocentes Condenados e o peso de existir

A Orquestra dos Inocentes Condenados, de Milena Martins Moura, é uma leitura dura, mas a escolha dessa palavra para definir o livro vem como elogio. Lançado pela editora Primata, o livro contém poesias que — ao contrário do que se possa esperar da linguagem poética — não extrai a essência mais bela e leve do mundo.

A autora demonstra, sim, cuidado na escolha de palavras, nas combinações entre elas e nas referências do texto, mas a intenção não é revelar o belo e leve no mundo. Pelo contrário, as palavras tornam palpáveis algumas sensações fora do alcance do nosso entendimento racional e revelam a dureza e o peso de existir. A poesia aqui usa de suas minúcias para ser justamente o contrário de sutil e delicada. Os poemas são diretos, concretos e fortes. A minúcia, a delicadeza, a sutileza são aqui ferramentas para que os poemas pesem, como nos é anunciado no prefácio escrito por Bruna Mitrano.

O peso da poesia cai sobre nós como uma sentença: como o título nos lembra, somos inocentes condenados, fazendo parte de uma orquestra onde até podemos tocar no nosso próprio ritmo. Mas o que torna a escolha difícil para nós, que chegamos a escolher nossos instrumentos, é que esta não é a única decisão que podemos tomar. Afinal, além de instrumentistas, somos também espectadores e ouvintes. Então será que nós (isso inclui o eu e o outro) estamos dispostos a suportar o desconforto de assistir a um espetáculo em que se ouve outra melodia diferente daquela que a orquestra se propõe a tocar?

Tanto o desamparo de um realismo cru quanto a potência desse mesmo realismo vão se revelando à medida que lemos a poesia de Milena, que usa não só os significados mas também as formas, texturas e sons das palavras para construir retratos de uma relação singular com o mundo e com as pessoas. Essa relação vai se reafirmando, ao longo das páginas, como uma identidade cada vez mais certeira e ciente de si, mesmo diante (e por causa) de todos os atravessamentos: ser mulher, ser neurodivergente, ser parte da família Martins, ser brasileira, e tantos outros traços que compõem estes retratos escritos organizados poeticamente. De certa forma, lidar com essas características que nos são sentenciadas é escolher diariamente se acompanharemos o restante da orquestra ou não. E tais escolhas, intrínsecas à própria existência em sociedade, são pesadas e duras.

No filme Não Olhe para Cima, de 2021, a cientista Kate Dibiasky, vivida por Jennifer Lawrence, tenta alertar a população da chegada de um cometa que poderá destruir o planeta terra. Depois de rejeitada pela presidente dos EUA — que poderia ter criado um plano de contenção do impacto a tempo de salvar o mundo, mas que escolhe não o fazer por estratégias políticas e econômicas — Kate vai até um programa de notícias junto de seu colega, onde tudo é amenizado e tratado com humor e leveza, segundo a própria âncora do telejornal explica. Ao falar seriamente sobre a catástrofe por vir e ver seu alerta amenizado, Kate explode, questionando se, talvez, a reação que se deveria ter em tal situação seria exatamente chorar, se desesperar e entrar em pânico.

A cientista é ridicularizada publicamente e na internet e vira motivo de piadas, chegando a ser menos ouvida apesar de seu saber científico evidenciando a catástrofe que estava para vir. Em um contexto pandêmico, muitas vezes nos deparamos com situações parecidas, em que éramos — e ainda somos — o tempo todo levados a nos questionar o preço de não seguir a música que a banda toca, mesmo sabendo que nossa escolha era a mais própria para o momento. No filme e na vida, existir coletivamente é árduo, e se tornou ainda mais em tal contexto de isolamento, desespero e desesperança. Contexto este que também é um dos componentes de A Orquestra dos Inocentes Condenados.

Em post do seu Instagram do dia 17 de janeiro (de 2022), a autora revela que o livro “foi inteiramente escrito durante o isolamento social provocado pela pandemia da covid-19. Seus poemas falam de morte, luto, solidão e medo, e dos impactos de todo esse estado de coisas na pessoa neurodiversa, em especial autista leve”. Além de enxergarmos os efeitos da pandemia e suas consequências para quem tem autismo leve, como a autora, a poesia de Milena acaba contemplando todas as pessoas que querem de certa forma, ser acolhidas pela ideia de que não estão sozinhas nos dilemas da época. É óbvio que cada indivíduo reage e recebe os fatos de forma diferente, mas os impactos do isolamento de alguma forma, resvalam em todas pessoas, e é difícil não ver a si nas páginas da publicação, já que diante de todos esses sentimentos tão pontuais referentes ao momento que estamos vivendo, se torna ainda mais evidente uma questão que também pode funcionar como fio narrativo nos conduzindo nesta leitura: como é ser? E, em especial, como é ser quando não conseguimos — por algum motivo que nos atravessa e não podemos ou queremos abandonar — estar na mesma afinação, no mesmo tom, no mesmo ritmo dos outros?

Na abertura de Demian — clássico de Herman Hesse — nos deparamos com o seguinte questionamento:

Queria apenas tentar viver aquilo que brotava de mim mesmo. Por que isso me era tão difícil?”

A dificuldade e a dúvida se mostram outra vez no livro de Milena: é tão duro ser, e ainda assim vivemos — desde sempre — buscando formas de fazê-lo melhor. A indagação aparece em estão todos enganados, poema em que o eu-lírico nos confessa ter procurado na leitura respostas para essa pergunta inquietante. Talvez, a condenação que nos é imposta no título do livro seja justamente esta: eternamente buscar por respostas para essa pergunta, como se ao cumprirmos essa pena, pudéssemos nos libertar do peso de existir. Talvez não exista uma resposta só para a pergunta. E talvez seja por isso que precisamos de poemas diferentes que se proponham a responder à insistente dúvida: “como é ser?” Enquanto leitores, podemos seguir os passos do poema estão todos enganados e encontrar uma das possíveis respostas para a questão na leitura deste livro.

Isto porque A Orquestra dos Inocentes Condenados começa com uma voz feminina pedindo “POR FAVOR não” (um não cada vez menor), no poema “Eu Já Vi Esse Filme”. No entanto, ao longo de cada poema, seguimos por um caminho poético que termina em eu te agradeço, poema-afirmação-manifesto do eu lírico e quem ele é: não mais alguém que precisa se adaptar e pedir “por favor não”. Durante esta jornada poética, nos damos conta de que já somos, e não é preciso mudar nem pedir licença para ser — embora o mundo queira que estejamos sempre sob a batuta de um condutor invisível mas muito controlador.

Como inocentes condenados que somos, mesmo que sejamos plenamente, ainda temos que lidar com a dureza da vida: Depois de “Eu te Agradeço”, completamente consciente de quem é e do que não vai mudar porque simplesmente é assim que o eu-lírico é, temos um último poema que funciona quase como um posfácio ou um epílogo. O  livro se encerra, então, com a agonia inerente à vida de querer constantemente encontrar formas de existir mesmo que o tempo nos roube o acesso a todas as possibilidades de experimentar essas maneiras de ser. Venha rápido pois tenho pressa nos relembra o exato peso de existir e de saber que não há constância nenhuma nisso e que temos que seguir lutando contra o tempo dentro de uma batalha maior para tentarmos viver aquilo que brota de nós mesmos.

Milena Martins Moura nos lembra com sua orquestra de inocentes condenados que é duro tomar consciência das nossas limitações e também há um peso muito grande para se carregar quando escolhemos — ou não há outra alternativa a não ser — não acompanhar aos outros. Mas a tal consciência também parece ser uma sabedoria que nos reveste de força e  poder únicos. Afinal, o peso da pedra que nos faz afundar em águas profundas também é o que nos impede de sermos carregados pelo vento.

O exemplar foi cedido como cortesia pela autora.


** A arte em destaque é de autoria da editora Ana Luíza. Para ver mais, clique aqui!