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Marighella e a urgência dos ideais revolucionários

Não é segredo que estamos vivendo um momento de autoritarismo repaginado: ainda não estamos sendo assassinados no meio da rua nem sumindo de nossas casas sem deixar vestígios, mas nos percebemos cada vez mais vigiados e regulados nas redes sociais e fora delas, sentimos medo de expressar muitas de nossas visões políticas em público, rompemos laços afetivos com assustadora frequência, e estudos comprovam que a saúde mental do brasileiro vai de mal a pior. São inúmeros sintomas de um período de absoluta caça aos princípios fundamentais da democracia (o que alguns diriam que é, na verdade, uma mera roupagem diferente da democracia burguesa).

Atenção: o texto contém spoilers!

Carlos Marighella, nascido na Bahia, em 1911, também teve sua vida marcada pelo autoritarismo de Estado. Abertamente comunista, viu sua trajetória ser alterada drasticamente no momento em que os militares tomaram o poder por meio de um golpe, instituindo um regime que vigoraria por 21 anos e promoveria, com o apoio dos Estados Unidos, torturas, assassinatos e censura de pensamento em prol de uma suposta destruição da ameaça comunista. O filme de Wagner Moura a respeito daquele que é conhecido como o principal revolucionário brasileiro, sem data de estreia prevista neste mesmo país, foi exibido domingo passado na edição de 2019 do LEFFEST (Lisbon & Sintra Film Festival), e contou com a presença do diretor e de Felipe Braga, com quem escreveu o roteiro.

Tendo por base em especial a biografia escrita por Mário Magalhães, lançada em 2013, o roteiro se desenvolve a partir dos quatro últimos anos de vida de Carlos Marighella (1964 – 1969, com especial foco nos dois últimos anos), o inimigo número um da ditadura militar, de modo que não é oferecido ao público grandes detalhes a respeito do que veio antes. Ainda assim, o período é retratado de forma a deixar muito claro quem ele foi, por meio da brilhante atuação de Seu Jorge. Indignado com o baixo grau de mobilização revolucionária de seus colegas de partido, Marighella acaba por ser expulso do PCB (Partido Comunista Brasileiro) em virtude do que o filme descreve ser um absoluto inconformismo com a ideia de buscar combater a ditadura por outras vias que não fossem a luta armada. É desta forma que Marighella mobiliza o grupo que depois viria a ser a Ação Libertadora Nacional, e a cena de abertura nada mais é do que um momento crucial em que o grupo organiza e executa um assalto a um trem comercial lotado de armas pesadas, ao som de “Monólogo ao Pé de Ouvido”, sem ferir nem um civil.

Algo que se percebe desde muito cedo é que o filme não se preocupa muito em apresentar todos os personagens, e, portanto, se você quer conhecer a fundo quem foram os membros da Ação Libertadora Nacional, os padres que apoiaram Marighella e até mesmo seus algozes, a sugestão que o próprio diretor dá é buscar a biografia escrita por Mário Magalhães na livraria mais próxima ou procurar algum dos muitos documentários a respeito da época. O roteiro aposta em elementos fictícios, ainda que seja majoritariamente fiel aos eventos históricos, e os personagens são abstratos de maneira proposital, muitos deles tendo os mesmos nomes dos atores que os interpretam, como Humberto (revolucionário, interpretado por Humberto Carrão) e Henrique (um padre, interpretado pelo brilhante Pastor Henrique Vieira). A intenção por trás da ideia, segundo Wagner Moura, era proporcionar ao público uma identificação mais com o que os personagens representam do que com determinadas figuras históricas, ampliando a experiência de assistir a algo que não parece assim tão distante no passado — e não é.

O filme, ao longo das duas horas de duração, não foge de detalhes importantes nem deixa de lado a parte demasiadamente humana do político, o que poderia ser uma saída fácil. Isto pois, em tempos de revolução e lutas armadas, por vezes é fácil esquecer que os envolvidos não deixam de ter família, vínculos de afeto e momentos em que se despem de toda e qualquer armadura que vestem como tática de sobrevivência direta. Afinal, o afeto também é, em si mesmo, uma tática de sobrevivência. Uma das cenas mais especiais é quando, logo no início, Carlos Marighella arrisca sua própria vida para levar o filho, ainda bem pequeno, para o mar. O episódio é narrado por uma carta escrita anos depois, em que o pai diz ao filho que ali, sim, se sentiu livre e vivo, mais livre e vivo do que nunca antes. E não é por momentos assim que a resistência deve existir, pelo direito de permanecer vivo e cada vez mais livre? E não são nesses pequenos atos que estabelecemos nossa teimosia? Em meio à repressão, conseguir ir à praia com o filho nos braços também é rejeitar o autoritarismo de quem está no poder.

Li uma vez que o que o fascismo mais quer, em essência, é nos matar, e matar tanto literalmente quanto aos poucos, de forma gradual, infestando nossos pensamentos, esmagando nossas subjetividades, muitas vezes não sendo sequer necessário assassinar nossos corpos físicos. Marighella diz não, rejeita, repele. E vai à praia. Mais tarde, seu filho também irá à praia, ao som de “Pequena Memória Para um Tempo sem Memória”, na voz do inesquecível Gonzaguinha, encerrando um ciclo muito bem construído ao longo da narrativa. Sua ida à praia tem o mesmo significado que a ida de seu pai, mas desta vez ele está sozinho.

Algo muito marcante no filme é a presença da juventude no grupo de comunistas. Marighella muitas vezes insiste que os jovens serão os protagonistas na transformação do mundo, e o próprio diretor verbaliza a mesma crença. O grupo de revolucionários se faz presente nas universidades e nos campos de estudo, ambientes em que o pensamento crítico tende a aparecer de maneira latente, característica que é melhor representada na personagem Bella (Bella Carnero), uma jovem branca, de classe média alta, cuja mãe é médica, e a quem o movimento revolucionário a princípio poderia ser opcional, mas que, por princípio, se torna pauta principal e da qual não se pode escapar. Ao mesmo tempo, a figura de Jorge (Jorge Paz), um jovem negro, pai de três filhos, cuja trajetória em muito se distingue da de Bella, nos relembra que a muitos a resistência é a única maneira de existir.

O interessante é observar, portanto, que o movimento é plural, multifacetário, e que escapar dos próprios privilégios, questionando-os enquanto tais, é papel fundamental para qualquer um que entenda que a transformação sócio-política deve ocorrer independente de onde você está localizado no corpo social. Bella personifica diversos jovens que, neste momento, estão brigados com a própria família por não compactuarem com o pensamento que isola, prende, mata e exclui, este pensamento que se resume no jargão “bandido bom é bandido morto”. Ao final do filme, ela é a única do grupo que sobrevive, e escolhe ir, sozinha, buscar mais armas — o que dá a entender que a revolução não apenas será jovem: ela será feminista também.

Mesmo sendo um filme tenso, o roteiro não deixa que o público escape a algumas risadas (com tiradas bem humoradas e inesperadas, mesmo que, por vezes, ácidas) nem a alguns fatos interessantes a respeito do baiano. Há um momento, no auge da perseguição, em que este é entrevistado por um jornalista francês, onde é mencionada a ligação entre Marighella e Jean Paul-Sartre, considerado o pai do existencialismo, que também possuía laços estreitos com Jorge Amado, a quem chegou a visitar em 1960. Marighella, que escrevia muito, no ano de sua morte teve quase dez artigos publicados na França, em uma revista cujo responsável direto era o companheiro de Simone de Beauvoir. Nesta mesma cena, o jornalista pergunta a Marighella “O senhor é maoísta, trotskista ou leninista?”, e recebe em resposta um mero “Eu sou brasileiro”. Parece uma resposta especialmente interessante no contexto atual, em que muitas vezes nos perdemos em nomenclaturas difíceis, importadas, e discussões já superadas, perdendo de vista questões que importam no Brasil de hoje, no agora, no já.

O patriotismo de Marighella é o que o motiva, mas este mesmo sentimento também move quem está do outro lado. Em uma das cenas, Lúcio (Bruno Gagliasso, cuja atuação dispensa comentários), delegado responsável por caçar e destruir o líder comunista, afirma categoricamente que tudo que faz é pelo Brasil, não pelos Estados Unidos ou qualquer outro lugar, e parece acreditar piamente no que diz. É o caráter complexo do patriotismo: em nome dele se pode fazer e justificar muita coisa. Essa ambiguidade dos personagens e dos sentimentos foi propositalmente inserida por Wagner Moura, a quem a identidade de uma pessoa ou de uma luta parece ser sempre recheada de nuances que por vezes parecem não dialogar entre si. Neste sentido, fica a cargo do espectador compreender a obra de acordo com o que lhe parece interessante, sendo a crítica recomendável, mas não explícita — uma das coisas mais incríveis que o cinema pode fazer por seu público.

Com uma fotografia linda e uma trilha sonora impecável, Marighella é um filme visceral e urgente, assim como falar da ditadura o é. Parece compreensível que Bolsonaro e companhia não queiram que o filme estreie no Brasil: é que as ideias ali retratadas são tão perigosas quanto eram à época, em que a censura constituía instrumento principal para a manutenção do que se tinha. Não foi sem motivos que, à época, a censura tenha se constituído como principal instrumento para frear a difusão de ideias e fatos que pudessem macular a imagem da ditadura, como não parece aleatório que o mesmo aconteça ainda hoje. Por muitos anos insistiram em apagar a nossa história, ignorar Marighella e Frei Betto, criminalizar o comunismo, não contar a história dos guerrilheiros, diminuir a gravidade dos eventos, dizer que morreram poucos e que a tortura era exceção, exaltar ganhos econômicos questionáveis, e hoje renasce, com força, a corrente que diz ter sido um “movimento revolucionário”.

A nós, não há outra opção que não seja rejeitar em absoluto essa narrativa e colocar os fatos como eles são, explicitar as mentiras, fincar o pé e bater com força, com a coragem que Marighella nos inspira. Divulgar a possibilidade da revolução deve ser o caminho da luta antifascista, rejeitando a mídia burguesa e os controles dos corpos que se mantém dóceis de maneira quase automática. Difundir os nossos ideais e ocupar ambientes que foram tomados e construídos contra o povo trabalhador é imprescindível. E aqui cumpre ressaltar que, ao apresentar a figura de um revolucionário que apostou na luta armada contra inimigos armados até os dentes, o filme também nos faz questionar nossos próprios meios, nossas próprias táticas, num cenário em que alguns dos que caminham conosco acham razoável sentar para dialogar com pessoas cujos ideias são abertamente autoritários e absurdos.

Os apontamentos que Marighella oferece são importantes porque não morreram: estão mais vivos do que nunca, eles de lá e nós de cá, e quem aprende História aprende também a revidar. Como o próprio Marighella diz, não temos tempo para ter medo, e o papel de todo revolucionário é fazer a revolução.

Rafaela Venturim é feminista, latina americana e anticapitalista. Mestranda em ciências criminais na Universidade de Lisboa, atleticana e abolicionista penal, gosta de ouvir sertanejo e Chico Buarque com a mesma intensidade. Não se leva tão a sério e sugere que os outros também não o façam.