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“Quantas vezes você já foi amado?”, pergunta Baco Exu do Blues

“Quantas vezes você já foi amado?” Essa é uma daquelas perguntas cruciais que não são feitas por nós e que pode se perder na luta pela sobrevivência. Ao pensar sobre isso, você pode concluir que poucas vezes na vida, ou mesmo nenhuma, recebeu amor. Na nossa sociedade, corpos envelhecidos, negros, indígenas, gordos, trans, com deficiência, entre outros, recebem menos amor. A lista é grande, por isso, vivemos na ordem do desamor. Dessa forma, o tema do disco de Baco Exu do Blues não podia ser mais pertinente.

Nas doze faixas, o poeta está desnudo. A própria capa sugere essa jornada interior, com vários ângulos e perfis de Baco, à meia luz. Ele confessa: “Foram 25 anos para me achar lindo”. Versa sobre como ao ser socializado para internalizar que não é merecedor de receber amor, carece de aprender o amor-próprio para então saber o que fazer quando for amado. Tratar de amor-próprio não é menor, é o ponto de partida da revolução, segundo bell hooks: “coletivamente, pessoas negras e nossos aliados somos empoderados quando praticamos o autoamor como uma intervenção revolucionária que mina as práticas de dominação.” Nisso ela e Baco Exu do Blues concordam, pois em “Sinto tanta raiva” ele diz que “cantar sobre amar talvez seja mais revolucionário”.

Em QVVJFA? (sigla do disco), semelhantemente ao disco Esú (2017), temos referências à religiosidade de matriz afro-brasileira, como o ponto de pombagira na faixa “Dois amores”: “Um amor faz sofrer/ Desamor faz chorar”. E esse choro é de “lágrimas negras”, que “caem, saem, saem”, no sample de Gal Costa. As palavras são as mesmas, o contexto é de Baco e de tantos outros, mas, ainda assim, se fazem compreensíveis. Assim, cada sample de peso está integrado ao álbum.

“Quando se está no contexto de um jovem negro que vive a violência de forma tão visível e na pele, numa música minha que fala sobre raiva e violência, e o refrão se torna Vinícius [de Moraes] cantando ‘bem melhor seria poder viver em paz, sem ter que sofrer, sem ter que chorar…’, poderia ser eu falando. É ele quem compõe, pelos motivos dele, mas faz sentido na minha vida, se integra na minha vida.” — Baco em entrevista para o Splash

É interessante que a pergunta “Quantas vezes você já foi amado?” surja na faixa “Sinto tanta raiva”. Baco afirmou recentemente que estava cansado de carregar essa raiva, e que durante toda a sua vida a utilizou como combustível. A raiva, para Audre Lorde, é uma reação a uma desigualdade sofrida, tal como o racismo. Ela não deve ser ignorada, temida, mas ser encarada com honestidade. A raiva devora por dentro enquanto permanece silenciada. É preciso saber orquestrar a fúria para não ser destruído por ela. Na raiva podemos encontrar informação e energia, que pode ser traduzida em ações em prol daquilo que acreditamos. “Acho que daí vem essa força de identificação que as pessoas estão sentindo, porque eu não estou só expulsando por expulsar, evidentemente, eu estou expulsando e direcionando”, Baco diz.

Em Esú (2017), Baco concluiu que queria se afastar de um estereótipo de homem negro agressivo, mostrar seu eu, com suas fraquezas e sensibilidade, sem medo. “Eu precisei ser agressivo para ser notado, mas ser agressivo é o que todos esperam que eu seja, automaticamente eu entro no estereótipo. Até quando eu vou ter que voltar e regredir quatro casas para ser agressivo e conseguir alguma coisa? Até quando eu vou ter que entrar no estereótipo para conseguir alguma coisa?”, disse. Há três anos, afirmou que as pessoas não o viam no direito de falar sobre amor, sobre si mesmo, mas sobre o que elas queriam que ele dissesse, que fosse violento em suas letras porque era como a sociedade o via. Por isso, ainda não tinha encontrado sua voz. Será que agora, ao falar de amor, ele a encontrou?

Nessa encruzilhada — já que Exu é reverenciado nelas, que são locais de confluência de saberes —, podemos aprofundar a relação de QVVJFA? com bell hooks, escritora que dedicou parte de sua obra à investigação sobre o amor. Ela diz que foi a sua ausência que a fez perceber o quanto ele é importante. Aos 40 anos, descobriu um câncer, e concluiu que não estava pronta para partir porque ainda não tinha encontrado o amor que procurava (espero que tenha, antes do seu falecimento em 2021).

Para bell hooks, “o amor é o que o amor faz”, ou seja, o amor é uma prática, um ato de vontade. Pouco tem a ver com o amor romântico fantasioso, dominação, abuso ou negligência. Esse conceito de amor assusta, pois nos faz perceber como ele nos escapa, o quão distante estamos de conhecê-lo. E Baco canta: “É que tudo que eu ouvi sobre esse tal amor me assusta”.

Certa vez, em um canteiro de obras, bell hooks se deparou por acaso com um grafite com a frase “a busca pelo amor continua, mesmo diante das improbabilidades”. Todos os dias, a caminho do trabalho, se deparar com aquela afirmação a fazia se sentir renovada. Infelizmente, o grafite foi coberto e rumores diziam que era em razão de o artista ser gay. Para bell hooks, a confissão pública do anseio por ser amado foi vista como ameaçadora. Depois, ela carregou consigo fotografias desse grafite em todos os lugares onde morou, sobre a pia da cozinha, para meditar naquela frase diariamente, um “lembrete de que todos ansiamos por amor — todos o buscamos —, mesmo quando não temos esperança de que ele possa ser de fato encontrado.”


Referências
bell hooks. Amando a negritude como resistência política In: Olhares negros: raça e representação. Elefante, 2021.
hooks, bell. Tudo sobre o amor. Novas perspectivas. Elefante, [s. d.].
LORDE, Audre. Os usos da raiva: as mulheres reagem ao racismo. In: Irmã Outsider. Ensaios e Conferências. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.


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