Categorias: LITERATURA

Apatia política e a busca por felicidade em Caro Michele, de Natalia Ginzburg

Nos últimos anos sentimo-nos sugados para o passado. Seja pela sufocante pandemia atual, cuja administração e recepção pública tecem paralelos com a peste que assolou a Europa há quase três séculos; seja pela onda autoritária que vem ganhando força em vários países, Brasil incluso, fazendo-nos repetir a História ainda muito recente de governos fascistas. Em ambos os casos, uma cegueira branca encaminha a humanidade a se omitir ante as mortes relacionadas ao poderoso vírus e manifestações violentas de líderes e presidentes.

A apatia política e a melancolia, presentes também em nosso tempo, são temas do romance Caro Michele (1973), da italiana Natalia Ginzburg (1916-1991), publicado pela Companhia das Letras e com tradução de Homero Freitas de Andrade. Nascida em Palermo, Ginzburg integrou o Partido Comunista, foi ativista política e deputada. Autora de romances, poesias, peças de teatro e ensaios, obteve grande reconhecimento na Itália e no exterior. Entre suas obras mais aclamadas estão As Pequenas Virtudes e Léxico Familiar.

O romance composto de 42 capítulos, dos quais 37 são cartas, acompanha uma família na Roma do início dos anos 1970. Michele, destinatário da maioria das cartas, é um jovem de vinte e poucos anos que parte para Londres de forma súbita por razões políticas. Os protagonistas que lhe escrevem são sua mãe Adriana, sua irmã Angélica, sua amiga Mara, com quem pode ter tido um filho, e Osvaldo, seu amigo e provável amante. O contexto histórico da narrativa são os anos setenta na Itália, período conhecido como “anos de chumbo”, em referência ao clima político-social e, sobretudo, ao material dos projéteis usados ​​para cometer ataques violentos.

A violência política, no entanto, se apresenta no romance pelas beiradas. Com uma prosa minimalista e franca, Ginzburg foca em Caro Michele nas ações do cotidiano de suas personagens. Uma leitura rápida, carente de dedicação, certamente não dará conta de decifrar cada gesto, hesitação, contradição e silêncio contido na obra. Por meio do mundano, de acontecimentos comuns à muitas famílias, Ginzburg explora o universo íntimo de suas personagens e as entrelaça com os acontecimentos históricos do seu tempo. A autora desnuda a solidão e o vazio da pequena e média burguesia por meio do tédio e apatia das suas personagens. O silêncio e a indiferença em relação aos conflitos políticos e a violência traz à tona um mundo alienado e disperso. Até mesmo Michele, único personagem envolvido na militância, dá ao leitor muito pouco sobre suas filiações e atividades políticas.

Peças centrais do romance, as personagens que pertencem à burguesia de Roma têm o tempo livre — negado às classes mais pobres — que lhes permite se dedicar a atividades ociosas e prazeres como leitura, pintura e jardinagem. No entanto, o lazer, em vez de ser fonte de prazer, se torna a causa de suas tristezas. A falta de ocupações e o tempo livre faz com que se isolem em seus pensamentos, aumentando a falta de comunicação e falta de sentido em suas vidas. Adriana registra em palavras o vazio ao dizer:

“A gente se acostuma com tudo quando não resta mais nada.”  (p.120)

Em uma narrativa curta, Ginzburg costura o caminho de suas personagens por pontos de vista distintos, mostrando seu domínio sobre diferentes estilos. Entre as trocas de cartas, há segmentos narrativos com a apresenta de um narrador onisciente neutro em terceira pessoa. Em outros capítulos, são apresentados diálogos nos quais falas e ações são mostradas diretamente, sem a intermediação de um narrador. Essa estrutura fragmentada na forma compactua com o conteúdo da obra, que conta os pedaços de uma família em dissolução.

Personagem que dá título à obra, Michele é quase uma entidade ausente, e é sua ausência que une as demais personagens. O leitor acompanha boa parte da narrativa pelas cartas escritas por Adriana, portanto sabe sobre Michele tanto quanto ela, isto é, muito pouco. Em uma de suas cartas para o filho, ela escreve: “Às vezes, penso como ficamos pouco juntos, você e eu, e como nos conhecemos mal, e como julgamos superficialmente um ao outro” (p. 105). Apesar da distância, os mistérios e questões de Michele se tornam problema para toda sua família.

Outra personagem que se destaca é Mara, cuja relação com Michele é em certo ponto conflituosa. Assim como ele, é também dependente financeiramente de outras pessoas e toma atitudes questionáveis ao longo da narrativa, que denunciam sua falta de perspectiva e sua relação ante a ideia de felicidade. Em meio à tensões, perdas e emoções fugazes, as personagens se pegam refletindo sobre a natureza desse sentimento: “felicidade, admitindo que felicidade exista, coisa que não deve ser de todo excluída, ainda que raramente vejamos traços dela no mundo que nos foi oferecido” (p.106), escreve Adriana.

Ao terminar Caro Michele, não se encontra um senso de conclusão; a vida se mostra como uma série de eventos desconexos, momentos bons e ruins, numa constante busca pela felicidade, ainda que a definição para o que é felicidade também não pareça clara.  O título da obra em inglês (Happiness, as Such), traz luz à esse grande aspecto do livro de Ginzburg, a busca pela felicidade em vidas que são uma mistura de momentos com objetivos e valores incertos.

O exemplar foi cedido para resenha por meio de parceria com a Companhia das Letras.


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