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The Act: a linha tênue entre zelo e sufocamento

Onde começa e onde termina a linha tênue entre precisar de ajuda e realmente depender de outra pessoa para viver? Seria essa uma questão física ou também psicológica? Perguntas como essas aparecem na mente dos espectador de The Act, série lançada em março deste ano pela Hulu que trouxe ao grande público uma narrativa inspirada em um crime real — a grande premissa da produção, que a cada temporada contará a história de alguma barbárie que de fato aconteceu.

No primeiro episódio, somos apresentadas a Dee Dee (Patricia Arquette) e Gypsy Rose Blanchard (Joey King). Mãe e filha estão gravando um comercial onde agradecem pela graça alcançada de terem uma casa própria, construída e doada a elas a partir de uma entidade beneficente. Dee Dee, a mãe, é uma mulher extremamente atenciosa e muito batalhadora, que cuida da filha, Gypsy Rose, uma menina de 13 anos com múltiplos problemas de saúde. Com um histórico de leucemia na infância, Gypsy tem um corpo franzino e delicado, utiliza uma cadeira de rodas para se locomover, usa óculos fundo de garrafa e se alimenta através de um tubo ligado diretamente ao seu estômago. As condições severas de saúde, no entanto, não a impedem de ser uma garota sorridente e alegre, que entende suas limitações, mas não permite que elas a impeçam de ser uma jovem normal que, na mãe, encontra todo o apoio e força de que precisar.

Quando a série tem início, as duas vivem em uma vizinhança amigável, onde os vizinhos são participativos e entendem que as condições de vida de mãe e filha se baseiam em cuidarem uma da outra. Dee Dee está constantemente envolvida em eventos de caridade de órgãos que ajudam crianças doentes, sempre mostrando o cuidado diário que tem com a filha, e em busca de financiamento e doações que possam aliviar as contas de hospitais e remédios no final do mês.

Atenção: este texto contém spoilers!

A história da família, no entanto, tornou-se mais conhecida em 2015, quando Gypsy foi condenada a 10 anos de prisão por ser cúmplice em um assassinato ao lado do seu então namorado, Nick Godejohn (Calum Worthy). O crime chocou não apenas a comunidade local, com quem mãe e filha conviviam e que muitas vezes as ajudaram, mas toda a população estadunidense, onde o crime aconteceu, e para além das fronteiras dos Estados Unidos, quando o caso ganhou maior atenção da mídia internacional. Para que se entenda o que aconteceu e como Gypsy, uma garota com uma saúde frágil envolveu-se em um crime, sendo posteriormente condenada por ele, entretanto, é preciso voltar alguns anos na vida de mãe e filha.

The Act

Ao longo de oito episódios, somos colocados no dia a dia da família Blanchard que, pouco a pouco, revelam detalhes que não ficam evidentes para quem as observa a uma certa distância. O primeiro deles é que Gypsy, na realidade, não precisa de cadeira de rodas. Ela consegue andar, se abaixar, levantar peso, se locomover livremente, mas só pode fazer isso quando ninguém está por perto. Mais tarde, ela também descobre que a suposta alergia que a mãe diz ter de açúcar é, na realidade, uma mentira; o que ela só conclui quando escuta o médico falar com Dee Dee que ela não possui tal problema. Do contrário, talvez jamais soubesse.

A partir daí, a menina começa a prestar mais atenção ao que sua progenitora explica sobre suas condições. Ela diz que não é possível que Gypsy se alimente a não ser pelo tubo em seu estômago; então, em uma noite, a jovem testa comer salgadinhos, pizza, toma refrigerante e tudo é digerido normalmente pelo seu corpo — prova de que ela é capaz de se alimentar sozinha. Outra descoberta acontece quando Gypsy, que menstrua e tem o corpo de uma mulher adulta, embora sua mãe afirme que ela tem apenas 13 anos, vê sua carteirinha do plano de saúde e vê que, na realidade, tem 18 anos.

Logo, fica claro que medicações, tubo de ar, nada disso era realmente necessário para a sobrevivência de Gypsy. Sua mãe, contudo, continuava lhe tratando como uma criança — e ao ser questionada, ela se vitimiza, diz que faz o que pode para manter a filha saudável; uma filha que, ao fazer aquelas perguntas, apenas mostrava que não a amava. Gypsy, por sua vez, se sente culpada ao duvidar de Dee Dee, ainda que não entenda porque a mãe a mantém em um estado constante de dependência. Quando os dentes de Gypsy apodrecem devido à ingestão secreta de doces, por exemplo, a mãe manda que o dentista lhe arranque todos os dentes e a deixe assim por um tempo, quase como se a punisse por fazer perguntas, ao mesmo tempo em que continua a mantê-la sob controle. Somente quando ela recebe o prêmio por ser a Criança do Ano de uma instituição de caridade é que recebe novos dentes — para poder sorrir em público.

À medida que a história avança, somos surpreendidas a cada novo episódio que mostra como o psicológico de Gypsy é abalado todas as vezes que a mãe se vitimiza ao ser questionada. Em todo esse período, fica muito claro que o amor de Dee Dee vai muito além de um cuidado maternal e que sim, passa para um aspecto patológico em que ela precisa que a filha dependa dela. Por isso Gypsy tem 13 anos, mesmo que na realidade tenha 18, e usa roupas infantis; por isso ela é proibida de conversar com rapazes ou de ter um celular; por isso ela está sempre doente, incapaz de fazer o que quer que seja por conta própria. Para Dee Dee, além disso, ter uma filha doente lhe dava um propósito tanto quanto pagava suas contas: Gypsy era, afinal, uma grande vencedora por tudo que enfrentou durante a vida.

The Act

Quando uma das médicas de Gypsy começa a prestar atenção em alguns sinais de sufocamento da mãe para com a filha, ela tenta reunir todos os históricos médicos da jovem para entender o que a menina realmente tinha. Até aquele momento, a mãe era a única que respondia aos questionamentos dos médicos e que trazia diagnósticos prontos feitos por ela mesma. Eventualmente, a médica percebe que não havia muitas comprovações de que Gypsy sofria daquelas doenças e que os diagnósticos poderiam, na realidade, estar sendo criados pela mãe. É então que surge a suspeita de que Dee Dee sofria de Síndrome de Munchausen por Procuração, uma doença mental em que um dos pais simula sintomas na criança de modo a mantê-la ao seu redor, sempre precisando de ajuda.

Não é a primeira vez que a doença é abordada por uma produção televisiva, no entanto. Mais recentemente, Sharp Objects, minissérie da HBO (que também já havia produzido o documentário Mommy Dead and Dearest, sobre a história de Dee Dee e Gypsy), trouxe para as telas a personagem de Adora Crellin (Patricia Clarkson), uma mãe que adoece as filhas propositalmente para que elas se tornem dependentes — por vezes, até para se levantar da cama. Em The Act, Gypsy começa a se dar conta de que vive no mundo criado pela mãe, mas não sabe como escapar dele. Mesmo depois de admitir que a filha tem 18 anos, Dee Dee sente por perder seu controle e a obriga a assinar uma procuração que garante que ela continue a ser sua guardiã e pessoa capaz de garantir os cuidados da filha. Mas a jovem começa a viver uma vida escondida da mãe, que desenvolve diabetes e passa a necessitar da ajuda da filha. Em um chat na internet, Gypsy conhece Nick (Calum Worthy), um jovem que a aceita como ela é e a apresenta a um novo mundo de sexo virtual e múltiplas personalidades. Com ele, Gypsy passa a se sentir segura e encontra uma oportunidade de viver a vida que sempre quis. Dee Dee, porém, descobre e não permite que o relacionamento continue, gerando um ódio na jovem que a faz tomar uma medida drástica: matar a mãe para finalmente se libertar.

Com um plano em mente, Gypsy coloca Nick dentro de sua casa para que ele possa dar prosseguimento ao plano. Após o assassinato, os dois fogem juntos para a casa de Nick, em outra cidade. Porém, o sentimento de deixar a mãe morta em casa, sem que ninguém soubesse que ela estava lá, consome a garota, que acaba por se incriminar sem ao menos perceber. Em seu Facebook, ela faz uma publicação ofensiva, como se representasse que sua conta havia sido hackeada por quem cometeu o crime — publicação que, até hoje, é mantida na rede social. Gypsy, contudo, mantém o localizador da postagem e, quando a polícia dá início às investigações, logo encontra o local onde ela estava escondida por meio da plataforma.

Mais tarde, durante o julgamento, a jovem afirmaria que não havia matado a mãe; ela coloca a culpa em Nick que, por sua vez, não consegue lidar com a situação. Diagnosticado com certo nível de autismo, o rapaz se mantém alheio à convenções sociais e éticas de modo que, para ele, o que fez com Dee Dee não foi um crime em si, mas a salvação de Gypsy. Ao mesmo tempo, fica evidente que, para Gypsy, a morte da mãe era sua única opção; contar para alguém o que estava acontecendo impactaria diretamente no relacionamento das duas: aos olhos da mãe, ela se tornaria uma menina mal agradecida, alguém que não valorizava os esforços daquela que a havia gerado; uma filha ingrata e incapaz de honrar a conexão que existia entre as duas.

The Act

Mas a história vai além. Em 2015, logo após o crime chocar a população, a repórter Michelle Dean, do Buzzfeed, fez uma extensa matéria investigativa sobre a vida de Dee Dee e Gypsy. Conversou com vizinhos, parentes, médicos, conseguiu registros com a polícia e montou uma história que se não fosse real, seria o perfeito plot de um filme de terror.

Mais do que investigar a vida de mãe e filha, a repórter também descobriu um pouco mais do passado da própria Dee Dee — como, por exemplo, que ela também foi uma filha sufocada pela mãe, ainda que de maneira diferente, e que esse relacionamento tóxico prejudicou seu desenvolvimento e formação como pessoa. Ao longo de sua vida, Dee Dee também cometeu pequenos delitos: fraudou cheques, fez pequenos furtos, abriu diferentes contas com derivações de seu nome. Quando Gypsy nasceu, completamente saudável, a mãe de Dee Dee tomou a criação da menina para si, concluindo que Dee Dee não seria capaz de ser uma boa mãe. Segundo investigações, Dee Dee deixou, então, a mãe morrer de fome, impulsionada pela raiva e pela manutenção da filha ao seu lado, ocupando-se dos cuidados com a menina daí em diante.

As complexas relações entre mães e filhas

Como explica Daniela Sopezki no artigo O Impacto da Relação Mãe-Filha no Desenvolvimento da Autoestima e nos Transtornos Alimentares, a relação entre mães e filhas sempre foi um tema amplamente discutido. Bleichmar (1988), por sua vez, observa que as mães tendem a vivenciar a criação de suas filhas de maneira diferente aos filhos homens, em uma relação tanto de identificação quanto de simbiose. Assim, se a primeira ideia do que é amor em uma criança é criada a partir da relação com a figura materna, para as mulheres esse complexo transborda para outros vieses. A menina cria laços efetivos com a progenitora que moldam sua personalidade com base na identificação e projeção geradas no microcosmo familiar, espelhando-se em comportamentos conhecidos e moldando-os em busca de sua própria individualidade nos anos seguintes, sobretudo na adolescência. A busca por individualidade, por sua vez, é relativamente mais difícil para as meninas: a aquisição de autonomia é, consciente ou inconscientemente, um terreno perigoso, e o distanciamento da mãe é, também, uma traição ao relacionamento entre ambas. Assim, ter um namorado, mudar-se de casa ou menstruar são quebras de vivências naturais ao desenvolvimento da mulher e que podem ser experienciados tanto com apoio quanto com dor e culpa.

Uma relação bastante famosa entre mãe e filha na ficção é a de Lorelai (Lauren Graham) e Rory Gilmore (Alexis Bledel), de Gilmore Girls. A série explora o desenvolvimento de ambas as mulheres e, com seus altos e baixos, vai além da relação de muita parceria e amizade estabelecida por mãe e filha, e que também é muito distante do lugar-comum da ficção. O poder de influência que Lorelai exerce sobre Rory é perceptível em muitos padrões de comportamento e gostos absorvidos e espelhados pela menina, ou apenas incentivados pela mãe. Isso faz com que se crie uma expectativa de como ela será no futuro: será seguindo as mesmas índoles ou fugindo completamente do que vê? Ao longo da série, Rory ao mesmo tempo se apropria e nega os ensinamentos passados por sua mãe — o que tanto as aproxima quanto afasta.

É possível, porém, encontrar exemplos práticos em outras produções que exploram o tema de maneiras diferentes. Em Mom, por exemplo, Christy (Anna Faris) começa sua fase de sobriedade tentando prover uma vida melhor para os filhos, em parte porque não quer seguir o exemplo de sua mãe, que também tinha problemas com álcool e acabou por criá-la em um ambiente inadequado. Em Gossip Girl, Lily Van Der Woodsen (Kelly Rutherford) tenta, por muito tempo, manter seu passado escondido. À medida que Serena, sua filha, descobre as mentiras que sua mãe lhe contou em busca de uma vida que ela julga mais adequada à criação dos filhos, ela parte em uma jornada de autoconhecimento em que também se recusa a seguir os passos da progenitora, muito embora jamais consiga se distanciar inteiramente dela.

Diferente das relações já citadas, no entanto, em The Act o que vemos é um contato de extrema dependência e vitimismo entre Dee Dee e Gipsy, deliberada pela própria Dee Dee, o que torna mais fácil identificar quando o envolvimento entre as duas passa a não ser mais saudável. A rotina de atenção e cuidados exagerados sufocam a filha, que passa a sentir o oposto do que era esperado pela mãe: raiva e ressentimentos que culminam no posterior assassinato de Dee Dee Blanchard.

Os exemplos de relações saudáveis ou não preenchem uma grande lista de personagens, mas também muito da vida real. São casos em que filhas enxergam na mãe um exemplo a ser seguido ou um ideal a ser quebrado já que sua experiência com o mundo é outra. Muito importante destacar os movimentos de desconstrução de maternidade perfeita que também têm ganhado força, ao mostrar por completo como é ser mãe e, a partir disso, criar uma rede de apoio e empatia com quem vive do mesmo momento.

Criar uma criança é uma grande responsabilidade que não é somente da mãe e isso deve ser tão naturalizado entre as relações quanto a antiga imagem da figura materna que não sofre, não cansa e não é mais mulher porque é mãe. Como padrão dos exemplos televisivos aqui abordados, nenhum ou apenas um continha a presença de uma figura paterna ativa. A maternidade e a construção de ideais de amor foram criados de mãe para filha, fortalecendo também a ideia de que uma tem somente a outra. E tornando, muitas vezes, difícil o momento de separação para o mundo real. Assim como Gipsy, que mesmo depois do assassinato sua mãe, sente que somente assim conseguiria se ver livre de uma relação tóxica com a mãe, mas sente culpa e acredita que todo o seu sofrimento foi importante e essencial para que ela vivesse o amor em casa. A linha tênue entre zelo e sufocamento.

The Act recebeu 2 indicações ao Emmy nas categorias de: Melhor Atriz Principal em Minissérie ou Filme para TV (Joey King) e Melhor Atriz Coadjuvante em Minissérie ou Filme para TV (Patricia Arquette).