Categorias: CINEMA, COLABORAÇÃO

48 e Retratos de Identificação: documentários que registraram a dor de duas ditaduras militares

A lente de uma câmera possui um grande poder: o de congelar em frame o momento. Às vezes as imagens são felizes, modeladas, espontâneas, engraçadas, mas em outras, como é possível perceber nos documentários 48, de 2010, e Retratos de Identificação, de 2014, podem ser políticas. As cineastas Susana de Sousa Dias e Anita Leandro utilizaram a fotografia como objeto de rememoração de acontecimentos atrozes.

É interessante refletir em como as cineastas estavam atentas aos vestígios, resíduos, restos, signos aleatórios e não intencionais do passado que inicialmente foram tomados como insignificantes — apenas como identificação —, e produziram o convertimento das fotografias para o formato de montagem. Ambas atualizaram e ressignificaram o próprio objeto, demonstrando que há muitos rastros, sentimentos, ressonâncias, colisões e histórias por trás de cada captura. Para compreender o avesso das imagens, uma vez que nos contam outras histórias através de suas identificações, é preciso analisar o material de cada idealizadora para nos darmos conta do que está presente, mesmo quando se está aparentemente ausente.

Já adianto que este não é um texto pop, mas sim político, e tem como objetivo analisar como cada uma das produtoras utilizaram o dispositivo com o objetivo de trazer à tona os rastros e vestígios de momentos do passado que não devem ser esquecidos e muito menos comemorados. 

48: Imagens que falam

A proposta da cineasta Susana de Sousa Dias é não apagar o vestígio da memória ao optar por conta as histórias de presos usando fotografias de cadastro e depoimentos. Inicialmente, 48 pode passar a ligeira impressão de que se trata sobre a dor dos indivíduos, mas vai além disso, pois também retrata o sistema.

É possível, ao seu fim, concluirmos que sem as fotografias do núcleo de cadastro de prisioneiros políticos da ditadura portuguesa (1926-1974) não haveria filme; Suzana não teria tido a ideia e as pessoas não teriam o objeto incitador da memória. As entrevistas com as pessoas fotografadas resultam em relatos rememorais compilados em 93 minutos que aparecem no momento preciso e exato, ouvidos uma única vez.

Para compreender a complexidade de 48 é importante pensar na minuciosa montagem produzida pela diretora, como pesquisa de arquivos políticos, busca pelas pessoas fotografadas, convite e autorização para serem filmadas enquanto observam seus retratos de identificação da época em que foram presas, idealização de uma construção vertical — organização dos elementos narrativos para a costura de relatos feitos por Susana —, produção de uma construção horizontal — a narrativa que o telespectador vê e ouve —, seleção dos trechos dos relatos que aparecem em voz over, cuidado com o áudio e os ruídos produzidos pelas pessoas entrevistadas, seleção das fotografias, fade, paralisação/congelamento, movimentação e sobreimpressão das imagens.

O documentário se constitui nas fotografias que reforçam a relação da palavra com a imagem porque é a narrativa que revela o que as imagens escondem. Susana construiu uma narrativa intensa e gradual que não possui uma cronologia, guiando-se apenas pela intensidade e temática do relato, como a questão da identidade, da forma como as pessoas foram feitas prisioneiras, da temporalidade e como isso refletiu no próprio corpo e imagem.

Entretanto, com o passar das narrativas, não é possível que o telespectador esteja confortável com o que está escutando. E, pensando na angústia que o telespectador poderia sentir na sequência de fotografias e relatos — e na evocação de imagens na própria mente —, a cineasta insere um efeito para abrandar a narrativa implantando respiros — 16, no total — para que possamos digerir o que ouvimos, vemos e imaginamos. Engolir o nó na garganta e tentar se recuperar para ver a próxima imagem que vai ganhando luminosidade até inspirar profundamente para ouvir o próximo e triste relato.

Uma sábia decisão que Susana opta é a de não mostrar no documentário as imagens das pessoas rememorando o que foi vivido, porque prefere que a fotografia ilustre o passado — o vestígio do tempo, o buço e o cabelo crescendo, assim como a perda do cabelo e o aparecimento de rugas ou a dor refletida no olhar. Seu objetivo é fazer o telespectador olhar os detalhes registrados nas fotografias. É olhar através do olhar de quem está narrando o que lembra ter vivido para se concentrar na imagem, na lembrança, no relato pessoal da triste experiência que a pessoa viveu e que consegue exprimir através das palavras depois de vários anos. Palavras que ressaltam muito do que está oculto nas imagens, pois é o que estava por detrás da câmera, no jogo de força do olhar, da “boca de pato”, do sorriso da prisioneira para o policial, da roupa suja que estava vestindo, do psicológico e emocional, o ambiente num todo.

Retratos de Identificação: Do passado ao presente

Algumas páginas da história do Brasil foram seladas durante e pela ditadura militar. Visando algumas dessas páginas, Anita Leandro produz Retratos de Identificação, documentário elaborado a partir dos acervos fotográficos produzidos pelos órgãos de repressão do Estado entre 1964 e 1985.

A cineasta escolhe três pessoas para narrar os vestígios: Maria Auxiliadora — através de imagens de arquivos, uma vez que já falecera —, Antônio Roberto Espinosa e Reinaldo Guarany. O relato de Espinosa e Guarany se desenvolvem a partir da rememoração ao verem, pela primeira vez, as fotografias tiradas pelo Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) no momento em que foram presos e, mais tarde, quando exilados. Anita Leandro diz em Imagens para a História que:

“O encontro com as fotografias é a base do método que desenvolvi […]. O personagem principal é a imagem, o arquivo, que desencadeia a fala.   

Antônio Roberto Espinosa é o primeiro a ver as fotografias do que dia que fora preso com Maria Auxiliadora — chamada carinhosamente de Dôra — e Chael. Espinosa dá seu depoimento sobre a repressão e as torturas que se passaram quando fora preso pelos militares, além da trágica morte de Chael, que não conseguira sobreviver nem ao menos 24 horas depois de ser preso. Intercalado com sua fala são apresentadas fotografias de Dôra, além de vídeos onde ela relata, com um olhar muito marcante, tudo o que acontecera. O segundo a rememorar é Reinaldo Guarany, que revela sobre seu exílio no Chile, ao lado de Maria Auxiliadora. É através dele que ficamos sabendo que Dôra sobrevivera e que foi banida para o Chile em 1971, e que após o golpe militar, ela obtivera asilo político no México, passara pela Bélgica, até se fixar na Alemanha, onde suicidou-se um ano depois, quando estava prestes a concluir o curso de Medicina que interrompera no Brasil.

Através dos recursos que utiliza, Anita Leandro consegue atingir uma montagem (des)contínua, uma perspectiva das personagens, elaboração narrativa — mesmo que fragmentada pelas emoções dos narradores —, enfoque nos nomes e identificação. Um recurso importante no filme é o som que imita sistemas de arquivos e máquina datilográfica, em meio ao silêncio de uma fala e outra, aflige, impacta, e por vezes assusta. As fotografias são exibidas ao telespectador na mesma ordem e sequência que foram apresentadas aos narradores. O recurso na montagem foi o fade, congelamento/paralisação logo após o apagamento das fotografias.

Através do filme, dos relatos de amigos, Anita trouxa vida e voz à Dôra, e, uma atitude admirável da cineasta, já que trouxe a vida pessoal de Dôra ao público, foi respeitar sua nudez e a opressão vivida, optando por não demonstrar uma fotografia em que ela está completamente nua, apenas fragmentos como seus pés, mãos, pernas e ombros. Há um grande respeito às mulheres no filme, já que além da tortura, muitas também foram violentadas.

Diante da dor pessoal do outro

48 e Retratos de Identificação são obras que demonstram que há sangria na História, e que ainda há coágulos, traumas e rastros que nunca serão superados. Os arquivos utilizados, assim como todos que existem, fazem parte de uma história que não deve ser esquecida; são registros que resistem. Susan Sontag, crítica de arte, reflete em Diante da Dor dos Outros que:

“Não é um defeito o fato de não ficarmos atormentados, de não sofrermos o bastante quando vemos essas imagens. Tampouco tem a foto a obrigação de remediar nossa ignorância acerca da história e das causas do sofrimento que ela seleciona e enquadra. Tais imagens não podem ser mais do que um convite a prestar atenção, a refletir, aprender, examinar as racionalizações do sofrimento em massa propostas pelos poderes constituídos. Quem provocou o que a foto mostra? Quem é responsável? É desculpável? É inevitável? Existe algum estado de coisas que aceitamos até agora e que deve ser contestado? Tudo isso com a compreensão de que a indignação moral, assim como a compaixão, não pode determinar um rumo para a ação.”

A imagem produzida pela câmera é, literalmente, um vestígio de algo trazido para diante da lente, pois é um registro pessoal do sofrimento que está refletido nos corpos e nas imagens das pessoas, no registro não verbal que testemunha o real.

Em uma era sobrecarregada de informação, essas fotografias oferecem um método de recordar os crimes e crueldades, e optar não observar com atenção, tentar refletir, lutar para abolir o que causa esse morticínio e amnésia social, recordar a dor do outro é ignorar uma atitude política porque, ainda segundo Sontag:

“Recordar é um ato ético, tem um valor ético em si mesmo e por si mesmo. A memória é, de forma dolorosa, a única relação que podemos ter com os mortos.” 

Lorena Camilo é bacharel em Letras, revisora de textos, feminista, lufana; viciada em podcast, música, seriado, filme, literatura e em escrever. Ama chá e detesta café, tirando isto é uma típica Gilmore. Não interage muito nas redes sociais, mas tem um Twitter