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One Day at a Time: uma falta que continua a ser sentida

Comédias familiares dificilmente dão errado. A fórmula, tão popular desde os anos 1950, já gerou verdadeiros patrimônios da cultura popular, personagens fáceis de se identificar e se apegar e, é claro, um humor característico, ideal para dias em que o público procura conforto de pouca duração em frente à televisão.

De Três É Demais, Family Ties, Um Maluco no Pedaço a Modern Family, o gênero se mantém um acerto mesmo seguindo uma receita básica, cujo destaque acaba sendo explorado por meio da personalidade de cada um dos personagens diante dos ocorridos em que são expostos ao longo das histórias.

Nos últimos anos, as sitcoms familiares aproveitaram o espaço para trazer assuntos de maior urgência para a tela misturados ao característico e infalível humor que já estamos familiarizados. É o caso de Black-ish, por exemplo, que traz a vivência e a realidade negra num bairro nobre de um Estados Unidos racista, ou Fresh Off the Boat, que marcou a maneira como a população asiática-americana é retratada nas telas.

one day at a time

Os exemplos são infinitos, mas entre tantas séries de comédias familiares que trazem pautas necessárias, há a injustiçada One Day at a Time. A série, exibido desde 2017, sofreu não apenas um, mas dois cancelamentos no período em que esteva no ar até, enfim, ser dado como encerrada. O fim, no entanto, não marca apenas o desfecho de mais uma sitcom familiar; seu cancelamento possui um peso muito maior.

One Day at a Time foi originalmente trazida pela Netflix, a qual disponibilizou suas três primeiras temporadas, mas encerrou a produção em 2019. Em 2020, após ser resgatada pela Pop TV e ter apenas sete episódios exibidos em sua quarta temporada (com dez minutos a menos cada), a emissora anunciou o cancelamento de todas as suas séries originais devido ao impacto da pandemia de Covid-19. Mais uma vez, One Day at a Time se viu sem uma casa, e os fãs, sem uma família.

A questão é: por mais que hoje existam diversas séries de comédia, tapar o buraco deixado pelo cancelamento de One Day at a Time exigirá muito mais do que apenas colocar uma família nas telas. A série — que, na realidade, é uma adaptação por Gloria Calderón Kellett e Mike Royce — resgata o clássico homônimo dos anos 1970, aproxima problemáticas e debates necessários para um contexto mais atual. A série funcionou muitas vezes como uma sátira sociopolítica de uma “America Great Again” que ainda mascara seus preconceitos com uma falsa política de boa vizinhança.

One Day at a Time

Os Alvarez nunca foram perfeitos, muito menos tradicionais; mas entregavam o melhor de si e isso bastava. A família descendente de cubanos é liderada por Penelope Alvarez (Justiça Machado), uma mãe divorciada e veterana militar. Sob o mesmo teto, vivem o caçula Alex (Marcel Ruiz), a primogênita Elena (Isabella Gomez) e a avó Lydia, carinhosamente apelidada de “abuelita”, trazendo Rita Moreno em uma de suas melhores performances da carreira. Há também Schneider (Todd Grinell), vizinho dos Alvarez e dono do prédio em que vivem, e Dr. Berkowitz (Stephen Tobolowsky), médico e chefe de Penelope.

Desde a primeira temporada, One Day at a Time se mostra uma série realista. O único ganha-pão da família é Penelope, que trabalha como enfermeira, mas não possui um salário tão alto por ainda não ter cursado a faculdade. Mesmo trazendo diversos temas em pauta, os episódios iniciais mergulham no controlado orçamento da família, o que além de trazer uma didática sobre planejamento financeiro, mostra Alex e Elena aprendendo o valor do dinheiro. Além disso, em nenhum momento a família se vê presa ao seu passado, embora ainda respeite e cumpra algumas tradições (como o café cubano de Lydia, a quinceñera de Elena e o Museu dos Alvarez), a família se adapta às muitas mudanças que o mundo moderno exige.

Ainda seguindo essa linha, One Day at a Time traz os personagens em seus próprios desafios e problemas, sem nenhuma timidez de abordar essas questões. Além de representatividade LGBTQIA+, da questão imigratória nos Estados Unidos e da xenofobia, a série ainda se concentra em questões de saúde mental com destaque para dois acontecimentos: a interrupção do uso de antidepressivos de Penelope e o alcoolismo de Schneider, em que ambos personagens encaram momentos de recaídas durante a série e um ajuda o outro a se reerguer.

Além disso, os filhos de Penelope também possuem suas histórias particulares. Elena, por exemplo, é uma adolescente que descobre ser lésbica logo na primeira temporada após tentar se envolver com homens. Esse processo de identificação e autoconhecimento tão importante já havia sido retratado pouquíssimas vezes na cultura pop, como com a personagem Santana Lopez (Naya Rivera) em Glee e Denise (Lena Waithe) em Master of None.

Mesmo assim, Elena não é resumida apenas a sua sexualidade. Engajada em causas sociais, sobretudo as de cunho feminista e ambiental, a presença da personagem de Isabella Gomez traz um embate geracional ideológico, principalmente com sua mãe e avó. Esta última, inclusive, que retrata uma das melhores cenas da primeira temporada ao se ver num dilema entre negar a sexualidade da neta e ser mal vista aos olhos de Deus.

O caçula Alex tem seu desenvolvimento cada vez mais explorado conforme sua idade avança, ao longo das temporadas. O único homem da família Alvarez tem o protagonismo em poucos, mas essenciais, episódios, trazendo discussões sobre a xenofobia sofrida na escola, uso de drogas e até mesmo abuso sexual — cujas ações são repreendidas pela sua irmã mais velha numa cena praticamente didática.

A personagem de Rita Moreno é capaz de ganhar o público pela entrega da atriz na cubana Lydia Alvarez, que chegou nos Estados Unidos aos 15 anos deixando sua família para trás no seu país de origem. É de aquecer o coração assistir Moreno num papel tão excelente após tantos anos na televisão, permitindo-se resgatar as dores vividas por Lydia, que sente saudades do marido, mas também vive de maneira independente. A cubana extrapola todos os limites cômicos e entrega aos fãs uma diversão responsável, com tiradas sarcásticas carregadas de sotaque e muito humor.

One Day at a Time é uma série sobre família, mas família em todas as suas formas, de uma maneira que ressignifica a palavra. Schneider e o Dr. Berkowitz são dois exemplos de pessoas que não são realmente relacionadas aos Alvarez, de nenhuma maneira, mas sempre foram bem-vindos no apartamento de Penelope, Lydia, Alex e Elena. Esse tópico, tão delicado em algumas casas, acaba sendo extremamente necessário num contexto atual, permitindo ao espectador redefinir sua percepção de família, tanto no personagem de Schneider, que não encontra refúgio em seu próprio pai, tanto com Dr. Berkowitz, cujas filhas não querem contato com ele.

É normal ver em sitcoms familiares interpretações muito estereotipadas de filhos, mães e avós, mas One Day at a Time subverte muitos desses estereótipos. Foi uma série muito à frente de seu tempo que lidou com dificuldades que não merecia. A série foi uma das poucas a retratar uma família latina e falar abertamente sobre identidade, entregando em cada episódio um motivo para refletir, ao mesmo tempo em que entretém o público. Seu cancelamento pode dar a entender que suas pautas não eram de extrema relevância, mas a realidade é que o mundo ainda sentirá muito a ausência dos jantares da família Alvarez, das terapias em grupo de Penelope e de abuelita puxando as cortinas da sala de estar — o que o fez pela última vez.


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