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A maternidade em diferentes obras de ficção

A ficção sempre esteve repleta de exemplos do que significa ser mãe. Porque nuances nem sempre foram a regra na representação de mulheres na ficção, só mais recentemente o contato com obras que abordam a maternidade de forma mais densa foi possível, jogando luz sobre particularidades da maternidade em contextos distintos e demandas igualmente distintas, apesar dos lugares comuns que permeiam o ato de maternar.

Esse novo olhar sobre uma experiência exclusivamente feminina fez, por exemplo, com que séries como Big Little Lies fossem produzidas, cujo enredo gira em torno de diferentes famílias e as mães que estão na linha de frente dessas famílias, tornando possível o diálogo sobre o papel da maternidade em suas vidas. Mas ela não foi a única: séries como Call The Midwife, que acompanha a vida de um grupo de parteiras no final da década de 1950, apresenta a cada episódio uma perspectiva multidimensional sobre a maternidade — o que significa ser mãe adolescente, ser mãe negra, ser mãe pobre, ser mãe imigrante, ser mãe solo — não apenas na Inglaterra, onde a maior parte dos episódios é ambientada, mas em outros lugares do mundo, como no belíssimo especial de Natal de 2016, em que as mulheres africanas e seu olhar tão único sobre a maternidade são o foco.

Mas é preciso mais, e é preciso rápido, porque a produção cultural ainda exerce um papel muito importante dentro da nossa formação como seres humanos, e também como futuras — se assim desejarmos — mães. Tão importante quanto desmistificar a maternidade é chamarmos a atenção para produções preocupadas em desconstruir os extremos unidimensionais nos quais essas mulheres foram por tanto tempo enclausuradas. Se somos tão complexas e multifacetadas, não há dúvidas de que a maternidade também pode (e deve!) ser.

Lorelai Gilmore, em Gilmore Girls

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Lorelai Gilmore (Lauren Graham) não se tornou uma das mais icônicas mães da ficção por acaso: após engravidar na adolescência, ela consegue não apenas construir uma nova vida para si mesma e criar sozinha a filha, Rory (Alexis Bledel), sem qualquer ajuda de seus pais ou do pai da criança, mas mantém uma relação com a filha que para muitas mães e, principalmente, para muitas filhas, seria facilmente considerada invejável. Lorelai é mãe, mas é também amiga, o que significa que muito mais do que a figura responsável que é chamada apenas quando estritamente necessário, ela é a pessoa a quem Rory — e, muitas vezes, suas amigas — recorre em qualquer situação, que vai zelar não apenas pelo seu bem-estar, mas garantir que ela tenha o futuro que ela mesma não teve, ainda que isso custe colocar em segundo plano seus próprios desejos. Ao seu próprio modo, Lorelai e Rory cresceram juntas, o que em grande parte possibilitou que pudessem ser mais amigas do que mãe e filha, diferente do que acontece com Lorelai e a mãe, por exemplo, cujo relacionamento é bastante conturbado.

Amy Sherman-Palladino, criadora da personagem, não perde de vista que mesmo uma relação aparentemente perfeita esconde dificuldades muito particulares, e que Lorelai não é uma figura inabalável ou alguém que não está suscetível a cometer erros. Ao longo das sete temporadas da série, sua relação com a filha não apenas passa por altos e baixos — alguns naturais, outros nem tanto —, como ela também sucumbe a determinadas situações e age de forma imatura, ou apenas inadequada. O que não a torna, tampouco a reduz, a ser uma péssima mãe, trazendo à tona aquilo que existe de mais humano em sua personalidade. A série também permite que Lorelai seja mais do que apenas mãe — da gerente e depois dona de uma pousada, até a mulher cuja sexualidade não passa a ser ignorada após a maternidade, passando pelos papéis de filha e amiga. Lorelai possui uma liberdade incomum às mães na ficção, e cresce de forma exponencial sem jamais abandonar seu papel como mãe, de fazer o que for preciso para que Rory seja feliz, de ser o pilar da família que construiu sozinha com a filha ou deixar de ser uma referência positiva para ela.

Penelope Alvarez, em One Day At a Time

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Americana de nascimento, porém criada sob influência da cultura cubana de sua família, Penelope Alvarez (Justina Machado) é uma mãe super protetora, rígida, mas que não mede esforços para garantir uma vida estável para seus filhos, Elena (Isabella Gomez) e Alex (Marcel Ruiz). Recém-liberada do exército americano, onde serviu como enfermeira no Afeganistão, Penelope trabalha em uma pequena clínica durante o dia e é mãe (e filha) em tempo integral. No início de One Day at a Time, ela ainda está aprendendo a lidar com a separação do seu marido, Victor (James Martinez), que optou por permanecer no Afeganistão trabalhando como segurança. Sua mãe, Lydia (Rita Moreno), criada aos moldes tradicionais e católicos dominantes da cultura latina, não consegue enxergar como a filha poderá viver sem o apoio e proteção do marido, e todos os dias Penelope não falha em provar para a mãe — e qualquer pessoa que duvide — que, sim, ela pode.

Embora possa facilmente entrar como exemplo na lista de super-mães, a série não comete o erro de representá-la como uma figura inabalável, o pilar da família que nunca pode ceder, e talvez por isso hoje tem potencial para ser considerada uma das representações mais saudáveis da maternidade na televisão. Como ex-militar, Penelope sofre de depressão e tem dificuldade de buscar tratamento médico pelo forte estigma social que a afeta e é reforçado pelo pensamento antiquado de Lydia. Eventualmente, ela aceita que cuidar de sua saúde mental é essencial para que possa desempenhar todos os papéis que precisa na nova fase de sua vida. Por sorte, Penelope pode contar com o apoio dos seus filhos adolescentes — o fervente feminismo de Elena abre os olhos para situações de desigualdade que elas vivem, e o afeto de Alex é como um bálsamo na alma — e da sua mãe, que embora não entenda os pensamentos divergentes, faz um grande esforço para respeitá-los. Em tempo, Penelope volta a ser mulher, paralelamente a ser enfermeira, mãe e filha, e arrisca um encontro às cegas (que termina com sua desistência e uma ida ao cinema para assistir a um chick-flick no mais perfeito “me time”), uma nova faculdade e até um relacionamento. Muitas pessoas ainda estão para entender que uma mãe que também pensa em si não se torna menos mãe, mas está tomando medidas de ser sua própria pessoa e, assim, construir um alicerce mais forte para aqueles que a cercam. I got you.

Edith Crawley, em Downton Abbey

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Filha do meio do Conde de Grantham (Hugh Bonneville), Lady Edith Crawley (Laura Carmichel) torna-se mãe em uma infeliz sucessão de fatos: após envolver-se com o dono e editor da revista para a qual escreve, Michael Gregson (Charles Edwards), que se apaixona por ela tanto quanto ela por ele, Edith é pedida em casamento, que ela aceita sem hesitar. Para oficializar a união, no entanto, é necessário que Gregson consiga o divórcio de sua primeira esposa, uma mulher doente que não o reconhece mais — o que não é visto como razão suficiente para a dissolução da união pela lei britânica. A única chance de Michael é viajar até a Alemanha para conseguir uma nova cidadania e, então, o divórcio. À época, porém, a Alemanha vivia um período conturbado, sendo vista com maus olhos por toda a Europa, que havia recém saído de uma guerra. Edith receia por Gregson se tornar cidadão “da nação mais odiada do mundo”, mas ele não dá grande importância ao fato desde que possa se casar com ela.

É somente depois da partida de Michael que Edith descobre estar grávida — o que não seria um problema para uma mulher casada e só se torna um problema para Edith quando o Gregson desaparece do mapa, deixando-a a mercê da própria sorte. Eventualmente, Edith descobre que Michael foi, na verdade, morto em um motim organizado por Adolf Hitler e é nesse momento que, com a ajuda da tia, ela vai até a Suíça para ter o bebê e entregá-lo para uma família adotiva que não revelaria sua verdadeira identidade. Não demora para ficar claro, porém, que o arranjo jamais serviria à própria Edith, e por mais cheia de percalços que fosse ser uma mãe solo em meados da década de 1920, ela decide ficar com o bebê.

Por algum tempo, Edith mantém a verdadeira identidade da menina em segredo, tratando-a apenas como protegida. Ela, no entanto, jamais deixa de priorizar a pequena Marigold. Quando a chance de um novo casamento surge no horizonte, a maternidade permanece sua prioridade, mesmo que reduzisse suas chances de viver um relacionamento pleno. À essa altura, é de conhecimento da família que a menina é, de fato, filha de Edith, e não apenas uma criança à qual é afeiçoada, mas revelar seu segredo ou não para Herbert Pelham (Harry Hadden-Paton) não deixa de ser um motivo de angústia. É apenas ao garantir que o casamento não a impediria de viver ao lado da filha, e que Bertie amaria a menina como se fosse sua própria filha e que cuidará de ambas, que Edith se permite construir uma vida ao seu lado, tendo o final feliz que sempre mereceu.

Eva Khatchadourian, em Precisamos Falar Sobre o Kevin

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Provavelmente o nome mais polêmico da lista e, também, de grande parte das produções literárias e audiovisuais mais populares, Eva (Tilda Swinton) é a narradora do livro e protagonista da adaptação cinematográfica Precisamos Falar Sobre o Kevin. Ao longo da história, ela escreve cartas ao marido, Franklin (John C. Reilly), pai de Kevin (Ezra Miller), contando tudo que está relacionado ao menino e sua realidade como mãe. Desde o princípio, Eva deixa claro que não queria ser mãe e, quando Kevin nasceu, não conseguia se sentir adequada para desempenhar a função, tampouco próxima do menino. Kevin, por sua vez, parece sentir as questões da mãe de maneira profunda e torna-se uma criança tão difícil quando possível quando está perto dela.

A trama principal da história é conhecida: houve um atentado na escola; alunos foram mortos, assim como alguns professores, e Kevin foi o responsável. Eva, como sua mãe, tenta com as cartas analisar cada passo da história e entender o motivo que levou o filho a cometer tal crime. Será que toda mulher nasce mesmo com o instinto da maternidade? Será que ela tinha culpa no que havia acontecido? Kevin nasceu daquele jeito ou sua criação turbulenta o havia corrompido? Lionel Shriver, a autora, traz em seu ambicioso e irretocável romance uma visão  da maternidade quase inexplorada e bastante necessária. No filme, por sua vez, a roteirista e diretora Lynne Ramsay propôs uma abordagem mais subjetiva e enigmática, mas nem por isso menos impactante.

Claire Dunphy, em Modern Family

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Interpretada por Julie Bowen, Claire é o elo entre os três núcleos familiares representados em Modern Family. Em um deles, é filha. Em outro, irmã. Finalmente e, mais importante, dentro de sua casa Claire é esposa de Phill (Ty Burrell) e mãe de três filhos, Hayley (Sarah Hyland), Alex (Ariel Winter) e Luke (Noulan Gould). A série está no ar há nove temporadas e já ganhou 19 Emmys, sendo cinco deles de Melhor Série de Comédia, em cinco anos consecutivos. Podemos dizer que Claire é um alicerce, ou pelo menos se sente um, na maioria das vezes. Podendo ser uma grande representatividade para muitas mães, ela tem certeza de que é o sólido pilar sobre o qual toda a família se sustenta e que, se não estivesse sempre atenta a tudo, todos iriam ruir. Claire não é uma personagem carismática e muito menos cativante, mas basta se permitir enxergar de forma mais profunda para entendermos quão humana ela é.

Com a longevidade da série, temos a oportunidade de acompanhá-la lidando com diferentes fases de sua vida e de seu casamento, muito disso relacionado à diferentes fases dos filhos que estão, impreterivelmente, crescendo, fazendo suas próprias escolhas e tomando rumos que muitas vezes ela própria não escolheria. Quem é Claire à parte deles? Como ela lida com a possibilidade cada vez mais próxima do “ninho vazio”? Quem são as mães quando não estão sendo mães? Claire mostra um pouco como é viver com esse misto de sentimentos e, eventualmente, encontra seu caminho — seja enquanto diretora da empresa fundada por seu pai ou apoiando os filhos e os familiares em seus momentos de crise.

Jessica Huang, em Fresh Off The Boat

Fresh off the Boat é uma das poucas de seu gênero: além de ser a primeira sitcom a focar em uma família de origem asiática desde All American Girl, de Margaret Cho, série de vinte anos atrás, é uma comédia inspirada no livro escrito por Eddie Huang, Eddie Huang’s 2013 Fresh Off The Boat: A Memoir, e produzido e roteirizado por Nahnatchka Khan. A série, e o livro, contam a história da família de origem taiwanesa de Eddie Huang, e a mudança que eles fazem de Chinatown, em Washington, DC, para Orlando, na Flórida. A família inteira se muda devido ao sonho de Louis Huang (Randall Park) em abrir um restaurante temático, uma churrascaria inspirada em cowboys, no ano de 1995. Ainda que toda a série seja muito divertida e os personagens, espirituosos, quem rouba a cena de cada um dos episódios é a matriarca da família, Jessica (nascida Chu) Huang, interpretada pela excelente Constance Wu.

Ainda que em alguns momentos Jessica evoque alguns estereótipos ligados às mães asiáticas, as chamadas “mãe-tigre”, famosas pelo método de ensino rígido e autoritário, Fresh Off The Boat quebra, por vezes, a imagem idealizada que temos dessas mães e das mulheres asiáticas de maneira geral, visto que a personagem quebra a expectativa por não se encaixar no tropo da mulher asiática dócil e da mãe perfeita, características que muitos produtos da cultura pop recorrem quando decidem escrever essas mulheres. Jessica Huang, pelo contrário, é cheia de falhas, um pouco egoísta e até mesmo narcisista, o que apenas contribui para que a personagem seja verossímil e passível de identificação. Ao se mudar de Washington para Orlando, Jessica, mais do que seu marido e os três filhos, precisa lidar com o choque cultural de se ver inserida em uma comunidade que não tem uma grande população asiática e como isso afeta sua rotina e a educação de Eddie (Hudson Yang), Emery (Forrest Wheeler) e Evan (Ian Chen).

Mesmo que Jessica brigue com os professores dos filhos, pressionando-os para que eles exijam mais dos meninos nos estudos, no final do dia, tudo o que ela faz é por amor à sua família. Jessica pode não ser a mais carinhosa ou delicada das mães, mas por trás da fachada ambiciosa e um pouco egocêntrica, ela é inteiramente dedicada aos seus, até permitindo que seus filhos reinem um pouco em casa — mas ela está sempre pronta pra lembrar que, na família dos Huang, é ela quem manda.

Marion McPherson, em Lady Bird

De todas as situações e experiências evidenciadas por Greta Gerwig em Lady Bird, a capacidade em explorar a relação entre mãe e filha, representadas nesse caso por Marion (Laurie Metcalf) e Christine McPherson (Saoirse Ronan), talvez seja a mais brilhante. Marion, em particular, destaca-se por ser uma mãe muito verossímil, que não cai na armadilha de ser perfeita ou unidimensional. Pelo contrário, sua trajetória destacada diferentes aspectos da maternidade e como a exaustão é uma regra quando se é mãe, mulher e trabalhadora.

Grande parte do filme dedica-se a estabelecer a conturbada relação entre Marion e Christine (ou Lady Bird, nome dado a ela por ela mesma), que vai desde a dificuldade da primeira em lidar com uma filha adolescente, até a puberdade pungente da segunda, que não parece tampouco interessada em ter um bom relacionamento com a mãe. Para Marion, contudo, ser mãe jamais significa apenas lidar com Christine, mas tomar para si grande parte daquilo que acontece dentro de casa. Vai do desemprego e depressão do marido, com os quais ela precisa lidar praticamente sozinha e que a obrigam a trabalhar por mais tempo e ser um pilar único para a família inteira, até o filho mais velho, que voltou para casa com um diploma e uma namorada a tiracolo, sem qualquer perspectiva de independência ou um futuro razoável. Seria muito fácil limitá-la ao olhar que Christine lhe dispensa, cuja justiça só chega bem mais tarde, quando a distância física se impõe entre as duas, mas Lady Bird jamais se limita a essa visão.

Porque Marion é uma mulher extremamente complexa, muitas de suas atitudes parecem contraditórias — como quando se ressente pela filha ter sido aceita em uma faculdade de prestígio, o que costuma ser motivo de celebração para muitos pais —, mas isso não a torna uma mãe menos comprometida com a árdua tarefa de maternar, tampouco com que o amor que sente pelos filhos seja menor. Lady Bird projeta seu foco sobre as muitas nuances da maternidade e entende que a mesma mãe que ama profundamente os filhos pode não gostar tanto assim das pessoas que eles se tornaram ou de suas ações, que a exaustão é uma realidade e interfere no relacionamento de todos, e que perder o controle sobre as pessoas que você colocou no mundo também é um processo delicado.

Sara Fitzgerald, em Uma Prova de Amor

O estereótipo da mãe que iria até o fim do mundo e sapatearia nos limites da ética para salvar um filho é presença costumeira na obra de Jodi Picoult, escritora norte-americana e autora de 24 romances. Na adaptação cinematográfica Uma Prova de Amor, baseada no seu livro A Guardiã da Minha Irmã, é Cameron Diaz quem interpreta Sara Fitzgerald, a mãe de Kate (Sofia Vassilieva), Jesse (Evan Elligson) e Anna (Abigail Breslin). A principal questão aqui é que ela cumpre muito à risca aquela história de que a mãe sempre está mais preocupada com o filho que dá mais trabalho. Nesse caso, o trabalho é um câncer.

Leucemia Promielocítica Aguda é o diagnóstico que sua primogênita, Kate, recebe dos médicos ainda muito pequena. Sara jura então ao marido e, principalmente, a si mesma, que não vai deixar a criança morrer de jeito nenhum. Essa pode até parecer uma fala clichê e vazia de sentido, mas nesse caso tem todo o sentido possível, já que ela está disposta a lutar com todas as armas pela vida da menina. O problema é que essas armas não são dela.

Ao descobrir que nenhum dos membros da família é compatível para uma possível doação de medula, o médico sugere por debaixo dos panos que o casal poderia planejar um novo bebê, concebido in vitro, que fosse geneticamente compatível. A maioria dos bebês é acidente, mas Anna, não. Sua chegada ao mundo foi milimetricamente planejada para salvar a vida de Kate — acontece que o sangue do cordão umbilical não foi o suficiente. A história começa quando Anna tem 11 anos e procura um advogado, pedindo pela sua emancipação médica para que a mãe pare de obrigá-la a doar o que quer que seja para sua irmã. Na sua curta trajetória, já foram inúmeras internações forçadas e, dessa vez, Sara está impondo que ela doe um rim a Kate. No meio de tudo isso, Jesse é praticamente invisível. Sara é o retrato de uma mãe que quer ir até o fim do mundo para salvar um filho e tem certeza de que pode fazer isso, mas que acaba atropelando tudo o que está em volta, inclusive (e principalmente) os próprios filhos. Não tem como não se colocar no lugar de cada um dos personagens da história e ficar assoberbado em meio a angústias e reflexões.

Shelagh Turner, em Call the Midwife

Em um primeiro momento, Shelagh Turner (Laura Main) — Mannion, antes do casamento — é a típica mãe do final da década de 1950: responsável pelo cuidado do lar, do marido (com quem também trabalha) e dos filhos, ela se satisfaz nessa condição e não parece realmente almejar por nada além do que possui. Seria muito fácil encará-la com algum cinismo, particularmente porque essa não parece ser uma representação real da maternidade, de modo que é preciso ir mais fundo para compreender as razões de Shelagh e como o ato de maternar também poder ser algo a ser almejado.

Conhecida inicialmente como irmã Bernadette, freira e parteira da Nonnatus House, a história de Shelagh começa a mudar quando ela se apaixona por Dr. Turner (Stephen McGann), o médico local, viúvo e pai de um menino. Após contrair tuberculose e passar algum tempo afastada do trabalho, Shelagh decide abandonar a vida como freira para construir uma família ao lado de Dr. Turner e  Timothy (Max Macmillan), a quem se afeiçoa muito antes do relacionamento com o pai do menino ser uma possibilidade. Shelagh não hesita ao abraçar a maternidade, sem jamais lhe parecer uma tarefa mais difícil porque Timothy não é seu filho biológico, um aspecto que não muda na relação entre eles. Mesmo quando decide engravidar, isso não coloca o garoto em uma posição desconfortável porque essa não é, e jamais foi, uma questão para qualquer um deles.

Devido a problemas oriundos da tuberculose, Shelagh não consegue conceber uma criança, uma grande tristeza para ela — o que, no entanto, não a impede de tornar-se a mãe de mais uma criança. Eventualmente, o casal adota uma pequena garotinha, ainda bebê, de quem cuidam com muito carinho. À essa altura, a família lhes parece completa e não há nada que tanto Shelagh quanto o próprio Dr. Turner mudariam. É numa sucessão surpreendente de fatos que, mais tarde, e contra todas as possibilidades, Shelagh descobre-se grávida, finalmente realizando o sonho de gerar uma criança. Seu parto é um dos momentos mais emblemáticos e emocionantes da série porque, até aquele momento, entendemos como a maternidade é para Shelagh um papel tão importante e no qual ela efetivamente consegue se realizar. Sua rotina, contudo, jamais pode ser considerada fácil, um ponto importante e que Call The Midwife jamais perde de vista.

Em alguns momentos, Shelagh realmente se sente cansada, o que mais tarde a leva a admitir que precisa de ajuda, contratando uma babá. Poder ter uma ajuda externa no cuidado com os filhos não coloca seu sucesso como mãe em perspectiva, apenas a possibilita ter outras experiências, como manter-se trabalhando fora e ter momentos sozinha com o marido. Call the Midwife estabelece, no caso de Shelagh, que é a felicidade e a saúde dos filhos, e o cuidado para com eles, a torna uma mulher mais feliz e realizada, mas sem privá-la de encontrar satisfação e ocupar também outros espaços.

Texto escrito em parceria por Analu, Ana Luíza, Thay e Yuu.


** A arte de destaque é de autoria da editora Thayrine Gualberto