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Eu Nunca e o processo do luto para uma adolescente indiana

Antes de elaborar o texto, fiquei pensando sob qual ângulo iria abordá-lo, afinal, a série Eu Nunca, da Netflix, levanta questões bem importantes a serem apontadas e debatidas. Como, por exemplo, o fato de o elenco ser diverso, representando a pluralidade das etnias.

Atenção: este texto contém spoilers!

Existem algumas problemáticas que precisam ser mudadas. Mas decidi que também é assunto para outro momento. A atriz e roteirista Mindy Kaling desenvolveu e escreveu a série, em parceria com Lang Fisher, baseando o roteiro em sua própria vida. Em entrevista ao jornal Folha de São Paulo, ela comentou a preferência por uma jovem artista para interpretar Devi Vishwakumar, a personagem principal. Kaling ressaltou ao jornal que, ao conhecer Maitreyi Ramakrishna (atriz que interpreta Devi), ficou feliz em notar que ela é tâmil (grupo étnico nativo de Tamil Nadu, um estado da Índia), como a roteirista, e também parecida com alguém de sua família. O cuidado em compor um elenco diverso e que traduzisse, de fato, uma história de adolescentes e, principalmente, da protagonista indiana, é um aspecto relevante a ser abordado. Vale o destaque.

Eu Nunca

No entanto, para além disso, a obra fala sobre o luto. Toda a sua narrativa se desenvolve em torno de Devi estar lidando com a morte recente e prematura de seu pai, Mohan Venkatesan (Sendhil Ramamurthy). A morte do pai desencadeou um trauma físico na protagonista, ao ponto de paralisar suas pernas, impedindo-a de andar. Ela passou algum tempo se locomovendo por meio da cadeira de rodas, e, desde então, teve o acompanhamento de uma psicóloga. Aparentemente recuperada do trauma, Devi decide iniciar um novo ano em sua escola com a busca por um namorado. E a partir desse ponto, a série se desdobra com todas as tentativas mirabolantes da personagem em chamar atenção de Paxton Hall-Yoshida (Darren Barnet). Suas tentativas, muitas vezes frustradas, de engatar um relacionamento com garoto popular da escola, acabam aproximando os dois.

Devi Vishwakumar, de certo modo, tentava lidar com a morte de seu pai, focando na conquista de Paxton e na possível popularidade na escola. Ela acaba gerando conflitos com sua mãe, Nalini Vishwakumar (Poorna Jagannathan). Todas as brigas que eventualmente as duas têm despertam nela a lembrança sobre a noite em que seu pai morreu. O último momento da família em casa foi uma briga que Devi teve com Nalini, e Mohan a defendeu. A narrativa de Eu Nunca nos proporciona uma reflexão sobre como o luto pode fazer com que as pessoas ajam de maneiras diferentes, até, aparentemente, irresponsáveis. Nalini parece ter se fechado ao mundo. Sua aparente “pressão” com sua filha demonstrou um trauma que a personagem expressa também ter.

A protagonista, por sua vez, apresenta, ao longo da produção, um comportamento autodestrutivo que afasta suas melhores amigas, Eleanor (Ramona Young) e Fabiola (Lee Rodriguez). Ambas enfrentam problemas, desde familiares até de descoberta da orientação sexual, mas Devi acaba afastando essas amizades por estar focada em conquistar Paxton.  É importante ressaltar que não há um modo certo de lidar com o luto e quem já perdeu alguém importante na vida, sabe como o momento é difícil. O modo como a série abordou a maneira com que Devi enfrentou sua realidade sem o pai tem muita sensibilidade.

Eu Nunca

A cena mais forte é justamente aquela do último episódio. Devi e sua mãe finalmente irão jogar as cinzas de Mohan no mar, e a jovem quase perde o momento por ter brigado com sua mãe. Quando se deu conta do que poderia perder se não participasse da cerimônia, correu até a praia e chorou, perguntando se não tinha conseguido chegar a tempo. Mas ela chegou. Além da morte do pai, a personagem precisava lidar com o seu crescimento pessoal, com a sua identidade indiana, com os conflitos com a mãe, com as dificuldades na escola. No entanto, parece que ela escolheu viver um romance juvenil com Paxton para fingir que tudo estava bem em sua vida e que bastava ser popular no colégio e ter um namorado para que tudo se resolvesse.

Devi tem conflitos com a própria psicóloga que tenta direcioná-la e aconselhá-la, mas a protagonista, de certo modo, só absorve o que acha conveniente. Sua psicóloga presume ser essa mais uma das características de negação da realidade e do trauma por que Devi passou. Eu Nunca possui algumas questões que podem ser elencadas, mas quis apontar o processo luto que ela aborda. É algo pessoal e diferente para cada indivíduo que passa por essa experiência — e um tema incomum para um produto juvenil como Eu Nunca, mas que o roteiro expõe muito bem em sua primeira temporada.