Categorias: CINEMA, TV

Por que os Estados Unidos estragam tudo que tocam?

Quando a gente deixa de pensar o entretenimento como algo cuja única função é te fazer feliz, abrimos uma porta para pensar sobre a sociedade, consumo, cultura, política e um universo de temáticas que permeiam a nossa vida, mesmo quando tudo que a gente quer é uma alienação saudável com aquele romance água com açúcar. Para nos localizar nesse diálogo, vamos partir de uma notícia recente, até porque a jornalista em mim está gritando tanto quanto a anti-imperialista.

Em novembro de 2021, a notícia sobre a adaptação de Invasão Zumbi (ou Train to Busan para os íntimos) chegou à imprensa e gerou um rebuliço entre os fãs. Em tese, a ideia é que os Estados Unidos façam um remake do blockbuster sul-coreano, com produção pela New Line Cinema e direção de Timo Tjahjanto, conhecido por produzir Headshot da Netflix. Para além da obra protagonizada por Gong Yoo, as adaptações de Pousando no Amor e W: Two Worlds também foram anunciadas e tiveram a produção concluída recentemente.

Apesar dos memes nas redes sociais, perguntando se os personagens vão ser perseguidos por bancários zumbis e cobradores de impostos, a discussão sobre remakes coreanos na cultura ocidental é bem mais profunda. Por um lado, existe uma curiosidade para entender como a história será recontada por uma perspectiva sociocultural e política distinta das produções originais, mas ao mesmo tempo surge a pergunta: será que a adaptação enriquece ou apaga uma cultura?

Entre a adaptação e a apropriação

A principal preocupação em relação à remakes é justamente quando a obra ultrapassa a perspectiva de recontar uma história por outra perspectiva e entra no campo do apagamento e apropriação. No caso de narrativas tão distintas como as orientais e as ocidentais, o que muitas vezes acontece é que os elementos religiosos, as referências políticas e as críticas sociais são substituídas pelo contexto da nação que produz a obra, ou então tiradas por completo.

Como exemplo, podemos citar os próprios remakes e adaptações de Avatar: a Lenda de Aang. A princípio, Michael Dante DiMartino e Bryan Konietzko, produtores executivos, criadores e diretores da série, revelaram em diversas entrevistas o extenso trabalho de aprofundamento nas culturas asiáticas para criar a animação que circulou entre 2005 e 2008 na Nickelodeon. Apesar disso, o live-action O Último Mestre do Ar de 2010 foi produzido sem a participação de ambos e entrou para a história como um dos piores filmes já feitos, pela avaliação de críticos do cinema, mas também dos fãs e telespectadores.

A princípio, a adaptação era um dos filmes mais esperados pelo público, pois muitos espectadores cresceram com a história de Aang e seria uma forma de revisitar o passado, como muitas das adaptações fazem hoje em dia. Ademais, a presença do diretor M. Night Shyamalan, responsável por obras icônicas como Sexto Sentido, ampliou ainda mais a expectativa e a empolgação. Apesar disso, o resultado final permanece como uma das piores avaliações nos veículos de crítica ao cinema, com 1,5 de 5 estrelas no AdoroCinema e 5% no Rotten Tomatoes.

O branqueamento dos protagonistas e a escolha de um elenco etnicamente diverso para representar exclusivamente os vilões na trama são um dos vários motivos que deram à uma das obras mais esperadas do século um título tão pesado. Não à toa, aconteceu arquivamento da ideia de produzir uma trilogia do filme ou sequer pensar em outra adaptação da história até meados de 2018, quando a Netflix anunciou que produziria o próprio remake com a ajuda dos criadores.

Entretanto, “divergências criativas” motivaram a saída dos criadores do projeto, mas a produção teve continuidade pela cessão dos direitos de criação por parte de DiMartino e Knonietzko. Em anúncio sobre a decisão nas redes sociais, Konietzko explicou que o acordo inicial era de que a visão deles sobre Avatar seria respeitada, mas não foi isso que aconteceu. Ainda no texto, ele explica que depois de certo tempo, as decisões de ambos criadores deixaram de ser levadas em consideração, o que culminou no abandono do projeto.

Apesar da situação, ambos desejam que a nova versão seja concluída com sucesso, e abra espaço para uma nova audiência, mesmo que não siga a visão original de ambos enquanto criadores. Mesmo que esse seja um caso pontual, um exemplo dentre tantos outros, não se trata aqui de demonizar ou antagonizar todas as adaptações estadunidenses.

Felizmente, podemos contar com remakes de sucesso, como Os Infiltrados (2006), Perfume de Mulher (1992) e até mesmo a comédia pastelão de De Repente Pai (2013). É fato que os Estados Unidos tem flertado com produções asiáticas há décadas, o que inclusive transformou o original japonês de Dança Comigo na versão que amamos com Richard Gere e Jennifer Lopez. Nesse caso, as mudanças estruturais, de linguagem e de elenco aconteceram de tal forma que até mesmo a versão original tornou-se mais famosa em decorrência do sucesso de bilheteria da versão estadunidense.

Além disso, temos o caso contrário, de adaptações sul coreanas de obras europeias e norte-americanas, como é o caso de La Casa de Papel: Coreia que teve o primeiro teaser divulgado recentemente. Sendo assim, qual é o X da questão?

Quando o enriquecimento vira apagamento

Dentre as diversas características que marcam a produção audiovisual e cinematográfica dos Estados Unidos, pois de fato não existe somente uma linguagem para o cinema do país, encontra-se o formato blockbuster. Entre os mais de sete filmes de Velozes e Furiosos, todas as versões de Missão Impossível, a saga do 007 como um todo e os demais filmes de ação ou suspense, o que prevalece é a presença de elementos culturais como mero pano de fundo para sequências longas de explosão, pancadaria, tiros e eventualmente aquela pegação básica entre os mocinhos, até porque ninguém é de ferro.

No caso da versão de Velozes e Furiosos 5: Operação Rio, a maior parte das cenas foi gravada em Porto Rico. Na época, a equipe prestou uma visita à capital carioca para gravar alguns materiais que não poderiam ser feitos em território porto-riquenho, principalmente as imagens mostrando os monumentos mais característicos, como o Cristo Redentor. Desse modo, mesmo tendo um enredo que se passa em terras brasileiras, o longa levou o Brasil a Porto Rico, quase literalmente.

Ainda que alguns insistam que isso é mero detalhe, porque as obras são ficção e não realidade, é curioso pensar como os brasileiros foram retratados neste exemplo em questão. Para além da propaganda do progresso e das tradicionais imagens do samba, mulheres bonitas e cerveja gelada, grande parte dos figurantes nem mesmo se pareciam com o povo brasileiro, mas tudo bem, porque o foco eram os carros voando, certo?

Erradíssimo, e eu espero que você tenha lido a última frase com ironia. Esse tipo de sub-representação é bastante comum, mas nem por isso é correta. Dizer que o brasileiro e o porto-riquenho são diferentes é desnecessário em gênero, número e grau, mas por que não questionamos a insistência nesse tipo de “erro inocente” em nome da ficção e do entretenimento? Será que o entretenimento enquanto ferramenta cultural também não tem responsabilidades quando se trata de representação?

Estamos falando sobre uma narrativa ocidental dentro do Ocidente, mais especificamente nesse exemplo, sobre uma narrativa norte-americana em um país sul americano que facilmente foi substituído por Porto Rico, por supostas “questões burocráticas”, como explicaram os produtores. Quando levamos essa discussão para o eixo Ocidente-Oriente, a situação é agravada.

No caso de Invasão Zumbi, blockbuster sul-coreano, a produção tornou-se um sucesso no país por conta da inteligência política, além da crítica às questões de classe. O que a princípio parece um (belíssimo) protagonista sobrevivendo a um apocalipse zumbi dentro de uma viagem de trem ganha outras nuances quando se leva em consideração que a cidade de Busan carrega o valor histórico de ter trens que foram usados como abrigos de refugiados durante a Guerra da Coreia. A princípio, a produção surgiu com a intenção de ser uma crítica da incapacidade política dos líderes do país, responsáveis por causar a tragédia do Naufrágio do Sewol, em abril de 2016. Cabe ressaltar também que no enredo, o que causa o apocalipse zumbi é uma pandemia na Coreia do Sul.

Para além disso, uma preocupação constante com as adaptações são os elencos que tomam o lugar dos personagens originais. No caso de Invasão Zumbi, Pousando no Amor e W: Two Worlds, parece inegável a presença do branqueamento dos personagens, considerando o longo histórico de favorecimento de pessoas brancas para protagonizar as histórias, apesar da diversidade étnico cultural desta nação.

Sendo assim, ficam os questionamentos: como a adaptação norte-americana vai cobrir essas lacunas? Veremos mais histórias asiáticas com elenco norte-americano ou a indústria aprendeu a recontar histórias por outras perspectivas, sem apagar ou silenciar uma cultura inteira? Haverá uma substituição desses marcos históricos por elementos norte-americanos ou somente uma exclusão desses tópicos para privilegiar imagens em foco de zumbis correndo e o mocinho salvando o dia? Como os Estados Unidos vão abordar a questão da pandemia apresentada na versão original enquanto o país está inserido em um cenário com mais de 900 mil mortos por Covid-19? Será que teremos a narrativa do “salvador da pátria” com atores como Chris Pratt protagonizando o longa, apesar das incontáveis problemáticas envolvendo certos queridinhos de Hollywood?

A curiosidade, mais carregada de incerteza do que expectativa, reside também em como os Estados Unidos planejam adaptar a linguagem cinematográfica asiática, marcado de silêncios estratégicos, ângulos proximais e valorização dos elementos da natureza, sem perder a essência que esses elementos transmitem para a história. Infelizmente, essas e outras dúvidas surgem num período em que a internet é cada vez mais colaborativa e participativa, mas tendem a ser subjugadas pelos conflitos econômicos.

Acima de tudo, a ideia de adaptar Invasão Zumbi e outras obras da onda hallyu surge como parte da luta por hegemonia entre os conglomerados de mídia, como a Netflix, HBO, Disney e afins. Mais uma vez, nos vemos diante do tradicional discurso de que tudo vale, desde que renda cliques, audiência e dinheiro.

Crash Landing on You

Para além da questão mercadológica do entretenimento, não posso deixar de ressaltar que, na minha percepção, as adaptações surgem como um aliado da preguiça dos norte-americanos em consumir conteúdos culturais diversos. Ouvimos que o inglês é a linguagem universal por tantas décadas que parece ter surgido um comodismo por parte de alguns norte-americanos, e também no restante do mundo, em consumir conteúdo nesse idioma, ou em ter como referência de qualidade aquilo que é feito em inglês.

Essa mesma preguiça de ir além, esse estabelecimento de uma zona de conforto quase patológica na cultura imperialista dos Estados Unidos acaba estendendo-se a todas as nações que estão subjugadas ao domínio cultural desta nação. Ao mesmo tempo, a diminuição de fronteiras culturais pelo crescimento das tecnologias de inovação indica uma potencial virada de chave nessa discussão. O que acontecerá com a indústria do entretenimento quando os Estados Unidos não for mais o “país universal”, assim como seu idioma foi por tanto tempo? Aliás, será que isso é possível ou só um sonho infantil?

Enquanto nos aproximamos das temporadas das premiações, que insistem em categorizar como “estrangeiro” tudo que não é hegemônico ou norte-americano, essas e outras dúvidas são um mero raspar da superfície de um problema que diz muito sobre a história do mundo. Pensar sobre isso é também refletir sobre colonização, política internacional, colonialismo, apropriação cultural, invisibilização étnica e tópicos urgentes para a manutenção da diversidade no mundo, indo além do que está na plataforma de streaming ou na sala de cinema.

Felizmente, não tenho como adivinhar e me resta ter esperança na humanidade enquanto isso. No caso de Invasão Zumbi, ou Last Train to New York como é o nome da adaptação norte-americana, deposito minha fé e positividade na presença do diretor Timo Tjahjanto, cineasta indonésio que faz parte da crescente onda de intelectuais internacionais expandindo a bolha das produções norte-americanas. Do mesmo modo, quando penso nas demais adaptações de obras internacionais, surge a expectativa de que as tais “divergências criativas”, como no caso da Lenda de Aang, não sejam maiores do que a importância social e cultural que o entretenimento desempenha no mundo.

Apesar disso, me vejo concordando cada dia mais com o diretor Bong Joon-ho em seu discurso no Golden Globes de 2020: “uma vez que você vence a barreira de uma polegada de altura das legendas, você será apresentado a muitos filmes incríveis”.

Espero que a gente saiba aproveitar.


Somos parceiras da Kult, uma plataforma de compartilhamento conteúdos de cultura e entretenimento. Se você gostou desse texto e quiser mais dicas da nossa equipe, clique aqui!

2 comentários

  1. Excelente postagem! Me fez lembrar do susto que tomei ao saber que A Casa do Lago é remake de Siworae/ Il Mare (2000), um filme sul-coreano protagonizado pelo Lee Jung-jae (Squid Game) e pela Jun Ji-hyun (Jirisan).

  2. Excelente reflexão! Eu já venho lendo sobre esse tema há bastante tempo e Hollywood continua a fazer a mesma coisa, especialmente o branqueamento das produções.

Fechado para novos comentários.