Produção original da Amazon Studios, Being the Ricardos (ou Apresentando os Ricardos, em português) retrata uma semana conturbada na vida de Lucille Ball e Desi Arnaz, o casal da vida real, interpretado por Nicole Kidman e Javier Bardem, que estrelava o sitcom I Love Lucy.
Exibido pela rede CBS (Columbia Broadcasting System) entre os anos 1951 a 1957, o programa chegou a arrebatar cerca de sessenta milhões de espectadores a cada transmissão de episódio semanal e determinou os rumos da comédia americana, influenciando os formatos de programas considerados clássicos atualmente, como Friends (1994-2004) e Seinfeld (1989-1998).
Para retratar a grandiosidade que rodeava o casal, Aaron Sorkin — do recentemente indicado ao Oscar Os Sete de Chicago (2020) e o vencedor da estatueta de Melhor Roteiro Adaptado por A Rede Social (2010) — concede a si mesmo uma inusitada licença poética ao condensar uma série de acontecimentos reais da vida de Lucy e Desi em um período de tempo historicamente inconsistente. A escolha, no entanto, serve completamente à história em tela, pois confere ao roteiro a intensidade característica de Sorkin, bem como a profundidade necessária aos personagens.
No ponto em que a produção se encontra, há maturidade, cumplicidade e muito — muito — sucesso em torno do casal. Presume-se que eles já tenham passado pelos obstáculos inerentes à indústria do entretenimento e os conflitos apresentados sejam apenas mais um obstáculo a ser superado. Por isso, a crise do casal gira em torno dessa semana inteiramente conturbada, onde eles têm de lidar com as supostas raízes comunistas de Lucille Ball, a possível infidelidade de Desi Arnaz e, no meio de tudo isso, uma gravidez inesperada durante as gravações do programa de uma rede de televisão extremamente conservadora.
É por conciliar casamento, desejos e ressentimentos pessoais e de terceiros — principalmente a dupla de coadjuvantes do show, Vivian Vance (Nina Arianda) e William Frawley (J.K. Simmons), que realmente não se suportavam —, além da administração do estúdio responsável pela produção de I Love Lucy, incluindo seus rumos criativos, que Being the Ricardos vai se tornando mais e mais fascinante a cada cena: ser Os Ricardos não é fácil. Ser as pessoas por trás das câmeras e da grandeza lendária do nome? Muito menos.
Tal qual no original, na produção de Aaron Sorkin quem se sobressai é a metade feminina da dupla: Nicole Kidman é um primor como Lucille Ball, assim como quando encarna a Lucy do sitcom. Embora Javier Bardem seja a escolha perfeita para interpretar Arnaz, é a atriz quem melhor dá o tom do filme, das cenas mais leves às mais dramáticas. Isso porque Nicole compreende perfeitamente o status de estrela de Hollywood da personagem da vida real que têm em mãos, no timbre de voz e na postura confiante de quem internalizou certa “aura” de Lucille Ball, para além das características físicas, o que foi elogiado publicamente pela filha da atriz, Lucy Arnaz.
Desde o início do projeto, quando foi escolhida para o papel invés de Cate Blanchett, antes praticamente confirmada, houve algum burburinho sobre sua aparência e a capacidade para interpretar alguém que continua sendo, até os dias atuais, tão simbólica para a comédia como um gênero em si e não só para a alma do show onde atuava, enquanto Kidman nunca esteve envolvida em projetos do tipo. Ao CBS Mornings, ela contou que “estava extremamente desconfortável, mas ao mesmo tempo foi um desafio extraordinário”, especialmente porque Kidman se apaixonou pela personagem, tanto a mulher por trás das câmeras quanto àquela que não se achava genuinamente engraçada, como contou no talk-show Fallon Tonight:
“Para mim, como atriz, e primariamente atriz dramática, eu estava tipo ‘oh meu deus, como se faz isso?’ e quando eu comecei a estudá-la fiquei ‘eu amo interpretar essa mulher!’ por causa da comédia física e do movimento corporal…. Poder adentrar isso como atriz é algo que eu nunca tinha feito.”
Beneficia muito o fato de Sorkin ter deixado claro que não desejava nenhuma imitação de como era Lucille Ball ou o filme poderia ter caído numa vala caricata de uma pessoa real. Trata-se de uma decisão compreensível, pois, ainda que baseado o quanto possível em fatos reais, o drama possui uma alta carga de ficção, especialmente em relação à vida privada de Lucille e Desi e aos bastidores do show.
Em razão do roteiro de Sorkin e de sua visão como diretor do projeto, é possível notar como a atriz explorou possibilidades diferentes de atuação, de acordo com o direcionamento do filme e conforme cada conflito foi surgindo naquela desafiadora e fictícia semana. Assim, a montagem e a habilidade com que são feitas as transições de Lucille para Lucy e vice-versa elevam em muito o seu nível de interpretação.
Se vê em tela que, tanto roteiro e câmera quanto a atriz genuinamente compreenderam quem eles desejavam retratar, o que demandou um processo demorado para Nicole, como protagonista e como alguém que desejava entregar uma atuação à altura do que I Love Lucy representa no imaginário estadunidense. Ao Access, ela contou que teve semanas de preparação com um técnico vocal antes de realmente entrar em estúdio para filmar e que a maior característica da personagem para ajudá-la a atender suas demandas diferentes foi a voz:
“Eu passei dois meses me preparando para aquela cena, para todas as coisas que estavam… Todas as sequências que estavam em preto e branco no filme. Aquilo foi algo que, na verdade, eu tive que realmente colocar foco e esse foi meu caminho por Lucy. Foi incrivelmente libertador ser capaz de, fisicamente, interpretá-la daquele jeito e então criar Lucille Ball, que é muito, muito, diferente de Lucy Ricardo. E isso foi algo que Aaron [Sorkin]… Essa foi a única coisa que Aaron disse: ela tem uma voz diferente. Lucille tem voz muito profunda e Lucy Ricardo tinha uma voz muito mais alta e ressonante.”
É na dinâmica caótica instaurada pelo roteiro de Sorkin que Nicole caminha pela tela com a personagem que dita a dinâmica de todos ao seu redor, naturalmente conduzindo a história ao tomar para si todo o interesse, pois apesar de o filme ser centrado na relação do casal protagonista do clássico programa, este tinha apenas um nome no título: Lucy. Tal fato rende alguns conflitos entre Lucille e Desi, especialmente pela forma como ele se sentia um coadjuvante do próprio show em comparação à grandeza da esposa, o que é bem explorado na certeira escolha de não utilizar tons exageradamente didáticos para abordar os problemas que os cercavam.
Tanto a publicamente discutida ideologia política de Lucille Ball — numa época em que os EUA viviam uma época de tensão pós-guerra, que desembocaria na Guerra-Fria —, quanto o fato de seu marido possuir ascendência cubana quando a imigração era um tabu ainda maior do que atualmente e a gravidez da atriz, quase censurada pela emissora, são temas com os quais o filme lida de maneira natural, uma vez que se mesclam à necessidade da atriz/personagem de impor seu ponto de vista e suas decisões. Ainda que Desi cuidasse mais do show como um negócio do que a atriz, a Lucille de Nicole compreende a importância de não colocar seu destino e nome totalmente nas mãos do marido.
Isso fica mais explícito ainda quando fica claro que o casal, como na vida real, era proprietário da produtora de I Love Lucy — a qual depois também veio a produzir Star Trek —, pois é nessa de tentar balancear maternidade, amor, carreira, negócios e os rumos de sua personagem que Kidman mais ganha, se aprofundando em camadas de Lucille que o roteiro não explícita — e não precisa —, mas estão ali para serem exploradas: como a feminilidade, a insegurança pela possibilidade de ser traída em contraponto ao fato de ser uma das maiores estrelas do país e, principalmente, a tentativa de se posicionar criativamente de maneira independente de Desi, sem tentar anulá-lo em nome da parceria que mantinham, mas sem que precisasse dele para intermediar suas decisões.
Ainda que Lucille estivesse em posição mais privilegiada do que a maioria de suas colegas da indústria — uma vez que detinha autonomia sobre os rumos do programa —, a ela não era permitido ser, realmente, A Chefe. Embora fosse quem melhor compreendesse a personagem principal do show, bem como seus propósitos, sua lógica, a reação do público à forma de interpretá-la e detivesse uma imensa visão de comédia, sempre que se impunha de maneira firme era considerada “mandona”, pois o ideal era que Lucille fosse somente o rosto de Lucy e nada mais.
Tanto é assim que a própria gravidez da atriz teve que ser pauta de reuniões exaustivas à época, uma vez que a CBS não permitiria que a série retratasse essa parte da vida de Lucy como mulher e esse caminho, muito natural, de um casal dos anos 1950, pois supostamente representava uma “promiscuidade inapropriada” para seu público conservador. Apesar de essa ser uma ponta solta de Being the Ricardos, que serviria para conferir maior valor à assertividade de Lucille sobre sua persona, na vida real, ela venceu a batalha contra os executivos da emissora, demonstrando seu senso visionário de entretenimento e sua posição de poder pioneira em Hollywood.
Assim, a temporada do programa incluiu a gravidez de Lucy e foi preparada uma grande ação de marketing em torno do que se tornou um acontecimento histórico na TV americana: o episódio em que a personagem deu à luz foi programado para ir ao ar no mesmo dia em que Lucille Ball teve seu próprio bebê, batendo recorde de audiência com 71,7% de todos os televisores do país sintonizados em I Love Lucy.
Não há como negar que Os Ricardos de Sorkin sejam interessantíssimos na parceria caótica que acaba por encontrar um equilíbrio na tela, muito em razão da química de Javier Bardem e Nicole Kidman, e de um roteiro ágil que os permite explorar essa relação, mas é a atriz quem melhor se sobressai no retrato minucioso da protagonista, caminhando destemidamente entre duas metades que se complementam — assim como se complementavam também na vida real — muito bem e justificando sua indicação ao Oscar de Melhor Atriz.
Being the Ricardos recebeu 3 indicações ao Oscar, nas categorias de: Melhor Atriz (Nicole Kidman), Melhor Ator (Javier Bardem) e Melhor Ator Coadjuvante (J.K. Simmons).
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