Categorias: HISTÓRIA, MODA

A mais bela de todas

Pense em beleza. Seus olhos podem te mostrar dezenas, centenas de belas imagens. Sua mente pode te falar incontáveis frases. Eu mesma cresci ouvindo que a beleza era algo dolorido e que alcançá-la era uma árdua tarefa. Entre vômitos no banheiro do colégio, apelidos maldosos sobre o meu peso e tias regrando aquilo que eu comia, tentei buscar a minha beleza. E, Deus, como eu queria ser bonita. Ser desejada. Ser Bela. Gaston, quando encontra Bela pelas ruas de sua aldeia, diz que ela é a garota mais bonita de toda a cidade e, portanto, a melhor. Encontrar homens como Gaston não é algo difícil. Uma autoestima inabalável, a adoração pelo próprio corpo são comuns a homens cis e padrões. Do mesmo jeito, garotas como Bela estão presas a dietas absurdas, questionando suas próprias belezas. Porque raramente encontramos homens questionando sua aparência?

O reality show Casamento às Cegas (Love Is Blind, no original em inglês) coloca a prova uma antiga pergunta: o amor é cego? Para isso, o programa propõe encontros entre um homem e uma mulher, onde ambos estão divididos por uma parede que os impede de ver um ao outro. “As meninas estavam preocupadas se os caras iam gostar delas, e os caras estavam preocupados se eles iam gostar das meninas”, disse Maíra Bullos, participante da terceira temporada do programa.

Ela contou, ainda, sobre como os participantes masculinos criticaram a escolha do elenco feminino: “Ouvi um áudio do grupo de todos os meninos em que tinha um cara falando que todas nós éramos feias e ‘só salvava a Vanessa’, que vacilaram na escolha do time feminino, porque só tinha homem bonito.” Amanda, outra participante desta última temporada, sofreu, além do machismo, com a gordofobia. Paulo se interessou por duas participantes na primeira fase do programa, escolhendo Amanda com a desistência de sua outra pretendente e afirmando estar apaixonado por ela. Porém, bastou pôr os olhos na mulher para que este amor se acabasse. “Ela não é nada parecida com o que já lidei na minha vida. Ela é forte. É maravilhosa. Não sei se eu consigo aguentar”, disse Paulo, utilizando todos os eufemismos possíveis para justificar sua desistência no pedido de casamento. Uma temporada mais diversa, com corpos maiores e tons de pele menos pálidos, mostrou que, para mulheres fora de um padrão, a resposta do amor sempre será não.

a mais bela de todas

Padrões de beleza são determinados por uma classe dominante, papel desempenhado, historicamente, por aqueles que possuem maior poder aquisitivo. Quando não haviam recursos para o estoque de alimentos, corpos grandes, mulheres fartas e gordas eram sinônimo de fartura. Mulheres eram procriadoras e, portanto, os quadris largos enchiam aos olhos dos homens. A Vênus de Willendorf, estatueta esculpida cerca de vinte e cinco mil anos antes de Cristo, possui grandes e caídos seios, sinal de um largo período de amamentação. O Renascimento valorizava — ou dizia valorizar — a inteligência, a invencionice. Testas grandes eram o ideal de beleza, o que levavam as mulheres a raspar parte de seus cabelos. Pintores do período Barroco retratavam deusas com bundas flácidas e gordas barrigas, como Aglaia, Euphrosyne e Thalya, deusas do amor e da fertilidade para a mitologia grega, foram retratadas em “As Três Graças”, pintura de Peter Paul Rubens.

No início do século XX, a Belle Époque tinha o luxo, a elegância, os penteados robustos e vistosos, e os espartilhos, enterrados por inúmeras camadas de roupas. Neste período, enquanto boa parte do mundo ainda era regida por monarquias, a França tornava-se uma república, trazendo uma visão diferente da moda feminina. A Inglaterra vivia a Era Eduardiana, com a moda feminina dobrando-se aos gostos do Rei Eduardo VII. A capital francesa, no entanto, possuía o frescor do novo, tão valorizado no Renascimento. Possuir uma roupa de etiqueta parisiense mostrava sofisticação e dinheiro. Em épocas onde as riquezas eram passadas de homens brancos para homens brancos, eles detinham o poder de decidir o que era elegante e bonito, ou não.

Em internatos e escolas de elite inglesas, por sua vez, surge a estética preppy — derivado do termo preparative school, escola preparatória, em português —, que logo ganharia o nome de old money. O dinheiro velho refere-se àqueles jovens adultos de famílias ricas, os herdeiros de grandes e antigas fortunas. Passeios de iate ao pôr-do-sol, férias pela Costa Amalfitana, jogos de tênis aos fins de semana, champagne e vinhos curados a séculos. Corpos magros, pescoços finos, cabelos longos e pele alva. Herdeiros possuem dinheiro para cuidarem de si mesmos, não precisam lidar com as preocupações de trabalhos exaustivos. Não possuem rugas ou precoces cabelos brancos. Uma pele lisa, sem estrias ou celulite, não importa o quanto isso custe. E por nascerem ricos, não deslumbram-se com uma mesa farta: estão acostumados com lagostas e caviares.

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A estética ressurgiu em 2022 graças ao TikTok, sendo uma resposta ao new money. Os novos ricos não possuem classe. São extravagantes e coloridos, como os idols asiáticos. São bronzeados e voluptuosos, como as Kardashians. Mesmo estas, no entanto, vêm se submetendo a estética da moda: o heroin chic, movimento que surgiu nos anos noventa, baseando-se em modelos magérrimas e atrizes anoréxicas. Mesmo mulheres ricas estão a mercê do que a classe dominante determina como bonito.

Para a historiadora Joan Scott, gênero é um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas diferenças entre os sexos, sendo uma forma primária de atribuir significado às relações de poder. O sucesso do conto francês “A Bela e a Fera”, originalmente escrito por Gabrielle-Suzanne Barbot em 1740, tornou Bela a síntese da mulher construída pela mídia, em que virtudes e defeitos confundem-se ao mínimo deslize feminino. Pense em Dilma Rouseff: em 2010, após sua primeira eleição, tornou-se um símbolo, rapidamente adotada pelos principais portais de notícias como exemplo a ser seguido, como uma mulher forte, histórica. Após o golpe, que culminou em seu impeachment em 2016, os elogios secaram nas gargantas dos jornalistas, dos influenciadores, do grande público. A partir do momento em que não detinha mais o poder político, Dilma passou a ser xingada, tornou-se um ser execrável por voltar a ser somente uma mulher. No mesmo ano, Marcela Temer, a novíssima primeira-dama, estampou capas de jornais por sua submissão e feminilidade. Era “bela, recatada e do lar”, tendo suas atividades domésticas sendo exaltadas pela mídia.

Política, beleza e moda permanecem entrelaçadas. Durante a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em janeiro deste ano, os comentários sobre sua esposa, Janja, voltaram-se para as suas roupas. Sendo também um ato político, a moda deve, sim, ser colocada em pauta. Mas resumir uma mulher aos tecidos que lhe cobrem chega a ser covardia. Que o então presidente quisesse a presença ativa de sua esposa em seu governo, no entanto, foi motivo de escarcéu nas redes sociais. Primeiras-damas politizadas e conscientes de seus papéis democráticos não estão cumprindo seu papel. Eliane Cantanhêde contou, durante o programa Em Pauta do dia 11 de novembro de 2022, estar incomodada com o espaço que Janja estava ganhando durante o período de transição do governo. A jornalista da GloboNews questionou sobre o papel da primeira-dama, uma vez que “ela não é presidente do PT, ela não é líder política, ela não é presidente de partido”. Em seu comentário, citou outras primeiras-damas que não possuíam poder algum para dialogar com seus companheiros sobre cenários políticos, como Yolanda Costa e Silva e Ruth Cardoso. Falou, ainda, sobre um episódio em que Rosane Collor jogou sua aliança fora, afirmando que, para ela, as brigas do casal eram culpa do papel que a esposa do presidente exercia dentro do seu mandato. Para Cantanhêde, o papel de Janja deveria se “restringir ao quarto do casal”, em uma fala misógina e infeliz.

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As belezas e excelências femininas são mutáveis, determinadas por uma mídia machista e hipócrita, que nos cobra uma aparência impossível mesmo após a morte. Marília Mendonça, a rainha da sofrência, morreu em 5 de novembro de 2021, vítima de um acidente aéreo. Ao escrever sobre seu falecimento para a Folha de São Paulo, Gustavo Alonso rasgou elogios à cantora, sobretudo, à sua carreira, logo antes de criticá-la de maneira veemente, afirmando que Marília “nunca foi uma excelente cantora. Seu visual também não era dos mais atraentes para o mercado da música sertaneja. […] Marília Mendonça era gordinha e brigava com a balança. Mais recentemente, durante a quarentena, vinha fazendo um regime radical que tinha surpreendido a muitos. Ela se tornava também bela para o mercado”. Mesmo Marília tendo um número de ouvintes tão expressivo quanto Os Beatles, isso não era importante frente ao seu corpo. Gorda era a palavra que lhe definia e, como alguns comentaram, ela, infelizmente, morreu quando finalmente estava bonita. O último vídeo publicado por ela em suas redes sociais fazia uma brincadeira com aquilo que ela esperava dos shows em Minas Gerais — cachaça e queijos — e aquilo que ela realmente tinha — dieta e exercícios. Marília sacrificou-se por um ideal de beleza cravado por homens como Gustavo, abrindo mão dos seus prazeres. Em vão.

Nunca seremos o suficiente. Mesmo Bela, a mulher mais bonita da aldeia, possuía defeitos. Aos olhos de Gaston, seu hábito de leitura era digno de condenação. Apesar do advento de sua beleza, fora obrigada a sacrificar sua liberdades por escolhas feitas por outros. Sua graciosidade era o seu castigo: tinha de ser calma, contida e bela. Sempre. Quem detém o poder determina as regras do jogo e somos obrigadas as segui-las, morrendo em salas cirúrgicas clandestinas, nos adoecendo com remédios absurdos, fórmulas caríssimas, nos submetendo ao desconforto, a dietas irreais e impossíveis. E não importa o quão próxima da linha de chegada estamos: nós nunca ganhamos.