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Rainhas do sertanejo: um guia subversivo para iniciantes

O ano que chega ao fim não foi puro choro e ranger de dentes. Apesar da crise, 2016 trouxe consigo maravilhas como os novos episódios de Gilmore Girls, a popularização da palavra top e a ascensão de cantoras e duplas sertanejas formadas por mulheres, com destaque para Maiara e Maraisa, Marília Mendonça, Naiara Azevedo e Simone e Simaria. Delas, não espere apenas sofrência. Em suas letras, a maioria escrita pelas próprias cantoras, os ouvintes mais atentos observam sentimentos e contradições, erros e acertos, pés na bunda dados e recebidos, e mulheres, antes de tudo, imperfeitas. A música das sertanejas gera identificação made in Brazil e subverte ao falar de mulheres para mulheres como nunca antes nesse sertão de meu Deus.

Quem sempre dominou o cenário fonográfico do Brasil, especificamente o sertanejo, são inúmeros cantores e duplas formadas exclusivamente por homens, com composições em sua grande maioria voltada para o público masculino. A dupla Conrado e Aleksandro tem em seu repertório o “Hino dos Macho”, em que a virilidade é preciso ser o tempo todo reafirmada (“Se ela gruda eu encaixo/ se ela foge eu laço/ Essa é a lei dos bruto/ o Hino Dos Macho!”), assim como “As Mina Pira”, de Fernando e Sorocaba, em que há um alerta camarada aos outros homens sobre as minas que estão fáceis de pegar (“As mina pira, pira/ Entra no clima/ Tá fácil de pegar/ Pra cima!”).

Além disso, são várias as canções romantizadas em que a mulher é colocada em total situação de fragilidade, do tipo que necessita da figura masculina para protegê-la.  “Garotas Não Merecem Chorar”, de Luan Santana, revela o paternalismo desde o título. O resto da letra reforça essa perspectiva: “Ela é uma mulher menina que precisa urgentemente ser mais forte/ ela quer alguém que leia seu sorriso antes de olhar seu decote”.

O fato é que todo esse machismo, que por muitas vezes nos negamos a perceber, está presente no sertanejo desde o estilo raiz — ou seja, desde sempre. Não passaram incólumes os artistas que emocionavam nossos pais, que incontáveis vezes chamavam atenção para as letras das músicas com jeito de fábula. Tonico e Tinoco encantavam com “Couro de Boi”, mas em seu repertório eles tiveram também “Cabocla Tereza” como música de sucesso por anos, uma composição em que um homem mata sua mulher que decidiu trocá-lo por outro. “Senti meu sangue fervê/ Jurei a Tereza matá/ O meu alazão arriei/ E ela eu vô percurá/ Agora já me vinguei/ É esse o fim de um amor/ Esta cabocla eu matei/ É a minha história, dotor”. A violência contra a mulher é explícita na música e aparentemente nem isso a impediu de ser um sucesso durante gerações.

Mesmo assim, o ritmo musical é incontrolável aos nossos ouvidos, a ponto de quase instantaneamente nos fazer parecer com o O Pensador de Rodin ao serrar o punho e o levar a altura da cabeça, enquanto fechamos os olhos e nos abraçamos a fim de dançar e sofrer enquanto um sertãozim está rolando solto. Portanto, não se trata de demonizar o gênero musical, mas de ponderarmos questões para que algumas mudanças possam ocorrer dentro de um contexto ainda tão dominado por homens. As chamadas Rainhas do Sertanejo são o que há de maravilhoso para aquelas mulheres que também querem dar uma sofridinha. Para quem ainda não se entregou aos encantos dessas músicas demasiadamente humanas, o Valkirias apresenta um guia infalível de como exercer seu girl power ao som de Maiara e Maraisa e companhia.

rainhas do sertanejo
Foto: Augustus Produções

Esqueça tudo que você (pensa que) sabe sobre a nova geração de sertanejas

Apague da memória os “50 reais”, esqueça os “10%” e deixe para trás o “Meu Violão e o Nosso Cachorro”. Para ouvir sertanejas, ignore as letras mais questionáveis sociologicamente e vá mais fundo. Faça sua (re)iniciação se entregando às canções de Maiara e Maraisa, de longe as mais revolucionárias do movimento quando o assunto é a temática de suas músicas. As gêmeas vão além da sofrência e da bebedeira, mostrando histórias sobre mulheres fortes e imperfeitas. Seres que fazem sexo sem compromisso, saem sozinhas, se apaixonam, terminam relacionamentos por vontade própria e ao mesmo tempo sofrem muito. É tipo ser humano.

Prepare-se para ter uma amostra do clube das mulheres

Se quer iniciar sua saga sertaneja com ousadia, conheça o projeto Festa das Patroas, de Maiara e Maraisa em parceria com a cantora Marília Mendonça. O show percorre o Brasil todo com um repertório voltado para a mulherada, bem no estilo ‘chama as migas’. Logo no teaser, dá pra perceber que o bicho pega. Ao som remixado de “Rhythm is a Dancer”, bailarinos formam o corpo de dança em cima do palco, nos fazendo lembrar o Clube das Mulheres, seguido por um take em que Maraisa aparece jogando champagne na plateia.

O show é um contraponto ao projeto Cabaré, formado por Leonardo e Eduardo Costa, que conta apenas com dançarinas mulheres em roupas sensuais no palco ao lado dos cantores. Também fazem parte da apresentação algumas pausas para conversar com a plateia ao estilo ‘bruto’ e virar uns shots de cachaça. “Cachaça boa é cachaça Cabaré que levanta o pau desses homi e a perereca dessas muié”, eles dizem e segue um sucesso. “Eu acho que uma das poucas raças que não tem viado é peão de rodeio”, mais um shot e outro sucesso. Assim segue o projeto estrada afora.

Proponha um show completo para o/a crush

Na primeira faixa do álbum Ao Vivo em Goiânia, Maiara e Maraisa concordam que “Quando a gente se encontrar tudo vai ser tão perfeito” (Exaltasamba) e propõem “Show Completo”, “na cama, no chão e no teto”, sem medo de ser feliz. Tudo sem pressupor que os atores desse show tem qualquer tipo de compromisso ou envolvimento emocional. A única informação que se tem é que “Eu quero você, quero pra ontem!”.

Seja livre, mesmo em um relacionamento sério

Quantas vezes você já ouviu músicas sertanejas que falam sobre uma pessoa comprometida que vai para a farra e deixa o cônjuge em casa? Quantas dessas canções eram cantadas por mulheres? “Mexidinho” é assim e surpreende os ouvintes desavisados. Depois de uma noite e tanto, Maiara & Maraisa, um único ser tal qual Sandy & Júnior, chegam em casa exalando álcool e contando o dinheiro que sobrou da baladinha. Em um rompante de ciúmes, o marido pergunta: “Onde cê tava?/ Com quem andava?/ O que é que eu faço?/ Por que que eu não te largo?”, ao que as divas prontamente respondem: “É porque eu faço mexidinho/ faço gostosinho”.

Que final surpreendente, senhoras e senhores.

Reconheça que você também pode (e vai) errar

Na faixa “Pessoa Errada”, as cantoras contam a história de uma mulher que se apaixona por um cara e resolve romper com seu namorado, por mais perfeito e dedicado que ele seja. Na letra não são apontados vilões, apenas os fatos e sentimentos que permeiam os pensamentos de alguém que se vê nessa situação. De um lado, o carinho pela pessoa que te acompanha há tanto tempo e que você não gostaria de magoar, mas, de outro, está o envolvimento que veio acidentalmente fora daquele relacionamento. Mais uma vez é descrita uma mulher imperfeita, que quebra os padrões de sofredora, santa e imaculada aos quais as mulheres-personagens são sujeitadas.

Saiba que amor é amor e um lance é um lance

Sexo sem compromisso e affairs sem maiores pretensões são temáticas recorrentes na obra de Maiara e Maraisa. Nas músicas “Sem Tirar a Roupa” e “É Rolo”, do álbum Ao Vivo em Goiânia, e “Coração Programado” e “Quando o Assunto é Cama”, do álbum ainda a ser lançado, mas com faixas disponíveis no YouTube, são propostos relacionamentos abertos, sem maiores expectativas e às vezes pulando até as formais apresentações.

Aceite que elas vieram para ficar

“Sem perceber ela virou o jogo e hoje e sua patroa
Você tem que aceitar
Que elas vieram pra ficar e vão te arrastar
Seu copo ela vai virar
E elas não são bobas, tão nas festa das patroas”
(Festa das Patroas — Marília Mendonça e Maiara e Maraisa)

Interpretada por homens e, em grande parte, dedicada a enaltecer a vida masculina, a música sertaneja nunca foi um espaço favorável às mulheres. Para as cantoras e compositoras, poucas portas se abrem e só resta o anonimato. De tempos em tempos uma ou outra cantora consegue se destacar nesse cenário tão excludente. É o caso das Irmãs Galvão, de Inezita Barroso, de Roberta Miranda e de Paula Fernandes, que alcançaram o sucesso com décadas de separação umas entre as outras.

Mesmo depois do sucesso inquestionável que desfrutam agora, elas enfrentam dificuldades. Marília Mendonça já foi alvo de piadas na internet e até mesmo na TV aberta com relação com ao seu corpo, enquanto Simone, que faz dupla com a irmã Simaria, estampa as manchetes por conta de sua luta contra a balança. Todo esse foco em cima dos corpos femininos é ainda mais intenso quando se adquire a fama, já que esta vem com uma cláusula assinada por especialistas-em-dar-opinião-na-vida-alheia que determina que, a partir do momento que o sucesso é atingido, quilos devem ser eliminados, rugas preenchidas e celulites removidas. O Art. 1º, claro, fica instituído somente às mulheres.

Percebe-se que nunca foi cobrada a perfeição do corpo escultural na mesma proporção aos cantores homens, que em sua maioria não seguem um padrão modelo passarela ou fitness. Gordinhos e baixinhos, eles fazem até música sobre os quilos a mais que acabam por ter seu charme na hora da conquista, e é neste aspecto que as rainhas do sertanejo estão começando a romper com alguns estigmas, apesar das cobranças: Marília Mendonça disse não aos consultores de imagem que queriam mudar sua aparência, enquanto Simone mostra sua cinta modeladora para quase todo entrevistador que questiona os seus segredos de beleza.

Barreiras, padrões e machismos à parte, Maiara e Maraisa, Marília Mendonça, Naiara Azevedo, Simone e Simaria e outros nomes que hão de ascender chegaram junto quebrando as portas do preconceito, viraram o jogo e hoje são patroas num caminho sem volta. Representantes da revolução feminina na música sertaneja, tal qual aconteceu com o funk, essas cantoras são, antes de tudo, subversivas e devem abrir espaço para muita coisa legal daqui pra frente, de preferência para alguém que inclua em seu repertório um hit sobre amizade feminina cantado por mulheres, o que ainda está em falta na música brasileira. Fica o aqui o nosso apelo.

Flahana Pfeifer, 23 anos, estapafúrdia all the time e jornalista quando sobra um tempo. É péssima com nomes e por isso assiste a várias séries ao mesmo tempo sem decorar os personagens ou terminar alguma. Indecisa, decidiu fazer escolhas a partir do que não quer e jura que tem dado certo. Talvez amanhã mude de ideia. Talvez não. Twitter // Instagram

Laura Máximo dedica sua vida a enaltecer os contrastes da cultura (de massas) Made in Brazil. Nas horas vagas, é uma jornalista de 23 anos. Twitter // Instagram

2 comentários

  1. Que texto maravilhoso. Talvez a análise mais completa que eu já tenha lido sobre o tema. E sobre a amizade feminina, realmente ainda está em falta, mas “Até Ex Duvida” da Day & Lara pode ser um começo (“graças a deus que existem as amigas!”).

    1. Hianna, essa música de Day & Lara realmente é maravilhosa e um grande passo. Só imagina que maravilhoso seria uma música sobre amizades que não envolvesse um homem em momento nenhum da letra? Faltam Thiaguinhas (A Amizade é Tudo) no sertanejo feminino.

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