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Baseado em Fatos Reais: a dança macabra entre o real e o irreal

Escrever é como uma dança. O autor é o cavalheiro sedutor que tira a dama para dançar conforme sua música. Escrever é um pacto firmado entre público e obra, assim como o cinema. O que aconteceria se uma das partes quebrasse o pacto? É o que a autora francesa Delphine de Vigan se propôs a fazer com seu livro Baseado em Fatos Reais, transformado em filme pelo cineasta Roman Polanski. A obra nos pega pela mão e leva rumo a uma dança macabra, entre o real e o irreal e a presença do duplo.

Atenção: este texto contém spoilers!

O criador e a criatura: Delphine de Vigan e seu sétimo livro

Baseado em Fatos Reais é o sétimo livro de Delphine de Vigan. Como se pode perceber, não é sua primeira vez. A autora é vencedora, inclusive, do Prêmio Goncourt, um dos mais importantes da literatura francesa. Como qualquer escritora, sempre lhe perguntam: “É real [obra X]? Aconteceu de verdade?” Seu último livro, Rien Ne S’oppose A La Nuit, deixou essa discussão ainda mais forte. Nele, a autora conta a história de sua mãe, que cometera suicídio. Até onde o que Delphine contara em Rien Ne S’oppose A La Nuit era real? E escrever sobre alguém que já faleceu, e que não pode se defender, o que dizer sobre isso? Os leitores ficaram em polvorosa.

A recepção de Rien Ne S’oppose A La Nuit definiu a atmosfera do livro seguinte de Delphine e ela decidiu escrever sobre uma escritora chamada Delphine que está passando por um bloqueio criativo. Aqui começa a genialidade da autora, que merece ter todos os seus livros traduzidos para o português. Ao nomear sua personagem principal como Delphine, ela pode estar contando a própria história — ou não. Pode jogar com seu duplo; pode contar uma história universal, de todos os escritores. Cabe ao leitor aceitar que a dúvida é algo que sempre perseguirá a leitura de Baseado em Fatos Reais.

Mas não é só isso. Delphine, a personagem, não está apenas com um bloqueio criativo. Seu livro anterior, sobre sua mãe, foi um sucesso. Todos querem saber o que virá depois. E o que há depois? Vômito, crises de pânico e alucinações. Ela não consegue escrever, pois sente a pressão do “livro que virá depois” assombrá-la. Seus leitores esperam provar a mesma emoção da obra anterior.

É nesse contexto de cansaço, entre noites de autógrafos e a vontade de sumir, que Delphine conhece L., durante uma festa. Essa mulher sem nome tem o dom de ouvir as pessoas e é dona de uma beleza estonteante. Além disso, trabalha como ghostwriter de atrizes e mulheres da política que desejam ter suas histórias contadas para o grande público. Essa figura misteriosa é tudo de que a frágil Delphine precisa naquele momento: um ombro amigo. L. é uma mulher que empresta seu corpo e suas palavras para que outras possam estar em evidência.

As duas logo se tornam muito amigas. Elas se sentem fascinadas uma pela outra. Para Delphine, L. torna fácil ser feminina, algo que ela própria não domina muito bem. É como se fosse uma mera questão de passar um batom. Do lado de L., o fascínio vem da figura da escritora, de estar de frente para seus leitores, não atrás. Também vem do fato de que Delphine é muito comprometida em escrever a realidade, a verdade, aquilo que, na sua visão, é o que os leitores procuram. Elas se completam.

As coisas começam a degringolar quando L. percebe que o novo livro de Delphine será pura ficção. Para piorar, a autora começa a receber cartas anônimas de alguém que a xinga, dizendo que ela é suja por estar ganhando dinheiro em cima da própria mãe. Esses acontecimentos só agravam o estado de Delphine — e, ao ver tudo isso acontecer, L. decide intervir em sua vida. A dança macabra entre Delphine, a autora do real, e L. começa.

A obra convida o leitor a questionar se L. não é o duplo de Delphine. O duplo, nesse contexto, seria o lado mais obscuro de alguém, aquele que tentamos esconder a todo custo. Como exemplo, é possível citar O Retrato de Dorian Gray, livro de Oscar Wilde que conta a história de um jovem que mantém um retrato de si dentro de um armário. Enquanto o retrato envelhece, Dorian permanece jovem; temos, então, o criador e a criatura monstruosa que precisa estar presa. Outro clássico da literatura que aborda o mesmo tema é O Médico e o Monstro, de Robert Louis Stevenson. Hyde era a versão má do simpático doutor e acaba por arruiná-lo. É mais ou menos o que acontece em Baseado em Fatos Reais. Delphine, assim como Jekyll, é parasitada por seu duplo — no caso, L.

A relação parasitária entre as duas faz com que Delphine comece a desaparecer para que seu duplo possa emergir, sair das sombras. Isso se torna bastante evidente quando L. substitui a outra mulher em um evento literário. Ninguém nota a diferença, porque L. já sugou a essência de sua versão mais pacata e sem graça. Ao contrário de O Médico e o Monstro, não há um embate entre o bem e o mal. L. pode ser lida apenas como uma versão “melhorada” de Delphine, a versão mais sedutora e feminina. Inclusive, um dos detalhes que sustentam minha teoria de que L. é o duplo de Delphine é o fato de Vigan usar o pronome “on” (“a gente”, em francês, um pronome indefinido) para se referir a elas. “A gente vai responder seus e-mails”, ela diz em determinado momento. Isso quer dizer que, quando as coisas começam a ficar ruins, é a versão melhorada que substitui a depressiva Delphine.

A dança de Delphine e L. dá espaço para que outra teoria surja, no entanto: aquela de que L. existe realmente. Nesse contexto, a profissão de ghostwriter é de extrema importância para entender a influência que a personagem exerce sobre Delphine. L. dá novo significado às vidas das celebridades que assinam seus livros como se o tivessem escrito. Ela está o tempo inteiro fabricando o real, já que autobiografias são uma versão idealizada e polida de alguém. Ao deparar-se com Delphine, ela vê uma chance de sair das sombras, tomando a vida dela para si. Assim, ela começa por usar as mesmas botas em uma semana. Na outra, já são as roupas. Elas praticamente se tornam gêmeas a partir de um ponto da história.

É por isso que Delphine de Vigan quebra o pacto entre leitor e autor. Contar uma história ficcional ou real, e aceitá-la; isso não existe. Ninguém sabe se a Delphine da história é o duplo da Delphine autora, se as coisas realmente foram baseadas em fatos reais. Seu livro, em alguns momentos, lembra Misery, thriller de Stephen King, em que uma fã obriga o autor a reescrever o final de uma série de livros. Vigan, aliás, é muito fã do autor.

A adaptação para o cinema

Uma obra com tantas dimensões, escrita por uma mulher e sobre mulheres, adaptada por um notável cineasta estuprador de menores de idade. É decepcionante, para não dizer o mínimo. Isso porque, mesmo com todas as acusações que pesam sobre os ombros de Roman Polanski, não dá para dizer que ele não é bom em seu ofício.

A qualidade da adaptação de Baseado em Fatos Reais é difícil de admitir. Soa como uma traição. Ao longo da semana, desde o dia que saí da cabine de impressa do filme, na qual fui a segunda e última mulher presente, senti o peso da responsabilidade de trazer a questão para o centro, o motivo que fazem com que o diretor ainda esteja na mídia mesmo depois de ter fugido de um processo de estupro nos Estados Unidos. Entre idas e vindas, cheguei à conclusão que a adaptação é realmente boa. O valor dela quanto obra é muito boa, embora a pessoa que a realizou não seja.

Na coletiva de imprensa de Baseado em Fatos Reais, durante o Festival de Cannes do ano passado, Emmanuelle Seigner, que interpreta Delphine, contou que foi ela quem trouxera o livro de Delphine de Vigan para o marido, Roman Polanski. O cineasta relata, nessa mesma ocasião, que se interessou pela história porque jamais tinha colocado duas mulheres em oposição em seus filmes. Eles sempre versavam sobre a loucura/tensão de uma mulher, ou de um casal. Basta lembrar de Chinatown ou de O Bebê de Rosemary. Assim, o processo começou. Sua esposa, considerada sua musa, foi escolhida para dar vida à escritora, enquanto coube à Eva Green a misteriosa L. Polanski relata que achou que ela teria o que era necessário ao papel após vê-la em Sin City.

A escolha de Seigner e Green para os papéis principais não poderia ter sido mais adequada. Elas são as personagens. A direção de Polanski, nesse sentido, é muito inteligente. Como um bom aluno de Hitchcock, ele fornece mensagens através das sutilezas. A caracterização de Delphine e L. é uma delas. Enquanto Seigner aparece com roupas largas, estilo esporte e juvenil, sempre em tons mais claros, L. está quase sempre de preto. São poucos os momentos em que vemos Eva Green usar cores claras. É tudo escuro com ela. Não é à toa, já que não conhecemos o caráter dessa mulher. E se seguirmos a teoria de que L. é o Mr. Hyde de Delphine, usar preto faz bastante sentido.

Reproduzir a atmosfera tensa de Baseado em Fatos Reais não é uma tarefa fácil. Para isso, o diretor se vale de inúmeras tomadas em que as mãos de Emmanuelle Seigner em cima do computador são filmadas, elas tremem, não conseguem escrever uma palavra. Além disso, a câmera também gosta de se demorar em frente ao computador de Delphine, o motivo daquele pânico. É aí que a música de Alexandre Desplat entra. Junto com esses pequenos detalhes, as cenas começam a parecer tensas, pavorosas.

À medida que o filme se desenrola e o nervosismo aumenta, a iluminação também escurece. Os cenários parecem menores, como se experimentássemos, junto com Delphine, a sensação de sufocamento que a presença de L. lhe provoca. Toda a loucura vivida no apartamento de Delphine lembra outros filmes de Polanski, em que personagens enlouquecem, enclausurados, como é o caso de O Inquilino e Repulsa ao Sexo.

A questão do duplo é a mais interessante de ser analisada na adaptação. Em determinada cena, quando uma jornalista da France Culture vai até a casa de Delphine entrevistá-la e L. fica observando tudo no outro cômodo, vemos o rosto de Eva Green refletido por vários espelhos. São inúmeras Evas ali. Dessa maneira, o cineasta parece querer chamar a atenção para o fato da quantidade de personalidades que dominavam essa mulher. Um duplo que não admite a mediocridade de seu lado Dr. Jekyll. Essa cena é uma das mais incríveis do filme , talvez porque ela pareça simples e tão complexa ao mesmo tempo.

Algumas imagens do livro funcionam de maneira fabulosa no filme. Uma delas é a transformação das duas personagens, quando a relação parasitária atinge o ápice, ou seja, no momento em que L. vai a um evento literário como Delphine. Na cena, Eva Green consegue reproduzir, de maneira estupenda e admirável, o tom de voz de Seigner. A câmera de Polanski as coloca inteligentemente em foco e desfoco e, de lado, elas parecem a mesma pessoa. Anteriormente, o cineasta fornece pistas pontuais de que essa transformação seria inevitável. Um dia, a câmera filma as botas de L., que são iguais as de Delphine. Depois L. aparece bebendo na mesma caneca vermelha de Delphine. É como se ele dissesse: “Preste atenção nisso, preste atenção nas atitudes dessa mulher”.

Intencionalmente ou não, Polanski usa o mito do eterno retorno para iniciar e terminar o seu filme. Trata-se de um conceito filosófico que postula que as coisas estão fadadas a se repetir, inúmeras vezes, da mesma forma. Nietzsche explica que:

“Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te retornar, e tudo na mesma ordem e sequência — e do mesmo modo esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio.”

Em Baseado em Fatos Reais, o filme começa e termina do mesmo jeito. O cenário é a Feira do Livro francesa, onde uma escritora famosa chamada Delphine está assinando livros. Os fãs chegam perto, abrem o coração, lhe dizem o quanto sua obra os impactou. Dessa forma, o recado do diretor é que o tormento recomeçará. Vou além: o tormento, a presença do duplo, é necessária para a escrita de um livro. É apenas com a presença de Mr. Hyde, a L. de cada um, que Delphine pode atingir aquilo que seus leitores esperam: a verdade.

Há um embuste na sala: Roman Polanski

Primeiro de fevereiro de 1976. Um avião decolou dos Estados Unidos em direção a Paris, levando um acusado de drogar e estuprar a menor de idade Samantha Gailey, de apenas 13 anos. O acusado em questão era um dos diretores mais influentes de sua época, Roman Polanski.  Após 42 dias na prisão, o cineasta não quis esperar o veredicto do juiz Lawrence Rittenberg. Ele sabia que seria condenado a 50 anos de prisão, dada a dimensão do caso. O juiz, na visão de Polanski, queria sangue e publicidade. Se a sentença fosse prisão, ele teria isso. Por isso, Roman pegou suas coisas e migrou para a França, que o recebeu de braços abertos. Começava a disputa por uma narrativa histórica.

A disputa pela narrativa dos acontecimentos que levaram Polanski a ser acusado de estupro é notória, porque ela continua até hoje. De um lado, estão os Estados Unidos, que tentaram extraditá-lo quando ele estava na Suíça, em 2009, querendo que ele fosse condenado pelo o que fez. Para eles, Polanski não passa de um pervertido. Já a França, e a Europa em si, fizeram dele um mártir. Acolhe-lo estabeleceu a narrativa que seus defensores adoram contar, aquela em que essa é mais uma perturbação na vida do cineasta. Não bastava o assassinato brutal da esposa, Sharon Tate, nem o fato de seus pais terem morrido em campos de concentração. O affair com Samantha Gailey era só mais uma cruz que ele tinha de carregar. Com o tempo, essa disputa deixou de ser Europa versus Estados Unidos para se tornar defensores de Polanski versus haters de Polanski. E, infelizmente, os defensores têm vencido as batalhas.

Polanski parece não ter problemas para falar sobre os episódios de abuso que envolveram diversas mulheres. Depois de Samantha, vieram outras. Elas o acusaram de estupro em várias épocas de sua vida, como o tempo em que ele passou em Gstaad. Segundo reportagem do The Guardian, Polanski teria dormido com muitas jovens de 16 a 19 anos nesse período. Ao contrário do que se pensa, ele não chegou à capital francesa querendo reclusão. Mal colocou os pés no aeroporto e já deu sua primeira entrevista na Europa ao jornalista Martin Amis. É nela que fica claro o quanto o cineasta não se importa em admitir o que faz, já que não vê nisso uma questão séria:

“Eu não conseguia acreditar… Eu pensava, entende, que eu iria acordar desse sonho. Me dei conta de que, se eu tivesse matado alguém, isso não faria tanto barulho na imprensa, sabe? Mas… trepar, veja bem, e as meninas. Juízes querem trepar com as meninas. Jurados querem trepar com meninas — todos querem trepar com meninas! Não, eu não sabia, na época, que isso ia ser uma grande, uma grande questão.”

Peço licença para dizer o quanto toda essa situação é doentia e me deixa cansada. Parece tão óbvio os motivos pelos quais Roman Polanski não deveria levar seus filmes a Cannes, muito menos ser homenageado pela Cinemateca Francesa, mas a verdade é que não é tão óbvio. A situação que envolve o cineasta é um claro exemplo de que homens podem abusar de mulheres e saírem impunes, sem a reputação manchada. Eles podem, inclusive, receber estatuetas do Oscar e serem aplaudidos por membros da indústria do cinema. O caso de Roman Polanski ensina a dura lição de que, enquanto mulheres têm suas histórias questionadas, aos homens é permitida toda a glória. Ao longo da última semana, li e reli muitas coisas sobre Polanski para escrever esse texto, e elas me deixaram com um gosto amargo na boca.

A cortina de proteção que envolve Roman Polanski é forte. O documentário Roman Polanski: Wanted and Desired foi produzido por ninguém menos que a Weinstein Company, e o resto é história. Dirigido por Marina Zenovitch, a produção tenta defender, ainda que nas entrelinhas, que o processo de Polanski e Samantha foi uma tremenda confusão, usado para fins publicitários em uma clara tentativa de defender a narrativa de mártir. Não são apenas documentários. Existem petições que foram levantadas contra a detenção do cineasta na Suíça, em 2006, e foram assinadas por atrizes como Tilda Swinton, Emma Thompson e também pelo diretor David Lynch.

Nem mesmo as denúncias de assédio que sacudiram a indústria cinematográfica em 2017 puderam frear Polanski. Pensamos: “Bom, agora vai.” Não foi. Se, de um lado, nomes como Dustin Hoffmann eram denunciados, de outro, a Cinemateca Francesa realizava uma mostra em homenagem ao cineasta. Tudo isso porque a cortina de proteção é o reflexo de um mundo misógino e machista em que vivemos. Essa cortina é a “broderagem”, são as engrenagens da indústria cinematográfica que enxergam na figura de Polanski algo rentável. Afinal de contas, depois de sua primeira acusação de estupro, trabalhar com ele assumiu outro sentido.

Roman Polanski não é atormentado. Ele viveu muitas situações difíceis, como o assassinato da esposa e a infância durante a Segunda Guerra Mundial, mas não podemos usar esses acontecimentos para justificar seus atos. Porque, ao fazer isso, estaríamos negando a raiz do problema, que é estrutural. Longe de ser um incompreendido, ele é o fruto de uma sociedade machista e misógina, criado envolto pelo véu da masculinidade tóxica. Sua atual esposa, Emmanuelle Seigner, tinha apenas 18 anos quando o conheceu, à época com 53 anos. Antes dela, ele já havia se relacionado com outras atrizes, como Nastassja Kinski, protagonista de um de seus filmes, Tess. Ela tinha 15 anos quando começaram a dormir juntos. Nada disso é fruto do acaso. É fruto de uma sociedade que erotiza jovens mulheres desde muito cedo. Polanski está apenas reproduzindo essa erotização, acreditando na ilusão de que essas jovens têm discernimento para se relacionar com um homem muito mais velho que elas. Relações de poder.

E, então, finalmente chegamos ao famigerado parágrafo sobre consumir uma arte que amamos e odiamos. Molly Ringwald, em seu artigo para a New Yorker, faz uma colocação bastante pertinente sobre o assunto:

“Como devemos nos sentir sobre a arte que amamos e ao mesmo tempo odiamos? E se estivermos na posição incomum de ter ajudado a criá-la? Apagar a história é um caminho perigoso quando falamos sobre arte — a mudança é essencial, mas lembrar o passado, com toda sua transgressão e barbarismo, também é, para que possamos mensurar claramente aonde chegamos e até onde precisamos ir.”

Cineastas como Woody Allen e Roman Polanski fizeram muito pelo cinema, quer gostemos ou não. O Bebê de Rosemary é um clássico do horror, assim como Chinatown é uma bela homenagem aos filmes noir dos anos 40. No entanto, isso não apaga os problemas de suas obras, nem a maneira como eles lidaram com as mulheres, dentro e fora das telas. Olhar para suas obras é revisitar esses problemas e tentar pensar em como lidar com eles agora. Há quem diga que não se pode realizar o movimento de analisar filmes mais antigos. Discordo. Como uma pessoa que passa parte de seu tempo produzindo conteúdo sobre filmes clássicos, e consumindo-os também, essa desculpa faz com que a gente possa passar pano para os abusos que aconteceram lá atrás, e que ainda acontecem. A desculpa “mas naquela época era assim” não me parece válida.

O boicote é a forma mais forte de nós espectadoras fazermos algo contra abusadores que continuam a produzir filmes. É uma forma de recusa, de não dar seu dinheiro a quem estupra e sai dessa impune. Animais Fantásticos e Os Crimes de Grinwald está aí para provar. Particularmente, é difícil separar o autor da obra. A pessoa colocou um pouco dela naquilo que faz, suas visões de mundo. A obsessão de Woody Allen pelo tropo da menina mais jovem, com um homem mais velho é um exemplo disso. É uma essência de seu cinema e, na minha opinião, tem tudo a ver com sua vida pessoal. Assim como as jovens retratadas por Polanski.

Não existe uma única resposta sobre o que fazer. A única certeza é de que Polanski, assim como outros abusadores, deveria ser punido como merece. Sua presença na mídia, principalmente dirigindo um filme sobre mulheres e inspirado na obra de uma, alimenta a indústria do cinema, que retroalimenta a presença dessas pessoas. Só que também não é possível esquecermos do passado, como coloca Molly Ringwald. Se nós, mulheres, não falarmos sobre a presença dessa caçamba de lixo na mídia, do desconforto que ela nos causa, quem mais poderá falar?

A única certeza é de que a discussão não termina nesta crítica. A ideia é atear mais fogo a ela.

1 comentário

  1. Excelente análise, muito elucidativa. Estou torcendo para que saia logo uma versão portuguesa de Rien ne s’oppose à la nuit.

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