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Millie Bobby Brown e a problemática da adultização de meninas

Se você está lendo esse texto, não vive embaixo de uma pedra e tem acesso à internet, acredito que já tenha tido algum contato com Stranger Things, uma das mais bem-sucedidas produções da Netflix. Com uma nova temporada, no entanto, algumas questões chamaram a atenção do público e da mídia especializada: o modo como a atriz Millie Bobby Brown, intérprete de Eleven, vem se vestindo (ou sendo vestida) nos eventos, aparições públicas e photoshoots.

Millie tem 14 anos — 12, quando a série estreou em 2016 — e, na época, tanto ela como seus colegas de elenco (todos na mesma faixa etária) precisaram enfrentar o sucesso repentino e se acostumar com uma vida pública. Com a fama, vieram capas de revista, entrevistas, participações em convenções e sessões de fotos, e, logo nos primeiros meses, com uma avaliação rasa, era possível perceber que Finn Wolfhard, Gaten Matarazzo, Noah Schnapp e Caleb McLaughlin, seus colegas de elenco, recebiam um tratamento diferenciado da mídia, coerente com sua idade e estágio de desenvolvimento, o que não acontecia com Millie.

Enquanto os garotos posavam brincalhões e descontraídos, sempre se vestindo como garotos de 13 anos deveriam se vestir, e não serem julgados tão severamente pela mídia e pelos fãs por suas falas e atitudes, Millie sofreu uma grande transformação com o passar do tempo, percebida principalmente em ensaios fotográficos. Mesmo que, nas entrevistas, Millie fosse jovial e alegre, com jeito de criança extrovertida, gestos firmes, mas ainda inseguros diante de tanta atenção, as fotos da atriz mostram uma versão diferente: suas poses e vestimentas a fazem parecer mais velha do que é, além de hipersexualizá-la. Não são raros os ensaios em que ela aparece extremamente maquiada, com roupas que não condizem com sua faixa etária e em poses que remetem a uma mulher sensual (lábios entreabertos, olhos semicerrados etc.).

Que mulheres, de modo geral, sejam sexualizadas, especialmente sob os holofotes da mídia, não é uma novidade. Homens, por ocuparem um lugar de privilégio, acabam por escapar do comportamento tóxico reproduzido pelas massas e pela mídia (desde que não seja um homem negro). Para os homens, o efeito de crescer como centro das atenções tem suas consequências minimizadas. Não porque elas não existem — isso Finn já descobriu —, mas elas não se comparam à pressão e às exigências feitas às meninas que crescem sob o olhar de milhões de pessoas.

“[…] não sei por que uma moça de quinze ou dezesseis anos é considerada uma mulher, mas um garoto de quinze ou dezesseis anos é um menino.”

A passagem do livro Vulgo Grace, de Margaret Atwood, lançado em 1996, explica muito bem as relações propagadas pela sociedade e como meninas e meninos são vistos aos olhos das engrenagens que movem cada pensamento e, por que não?, nosso posicionamento enquanto seres sociais condicionados a reproduzir padrões. Se sexualizar o gênero feminino é comum em nossa sociedade, adultizar meninas é, cada vez mais, um item que vem no pacote, sejam essas meninas famosas ou não.

O desejo por uma aparência mais velha, o uso de maquiagem carregada e sapatos de salto, etc., são despertados cada vez mais cedo, principalmente porque parecer adulto e ser nomeado como um ícone fashion são sinônimo de popularidade no universo do entretenimento. Ser considerada sexy é vencer na vida, ter a atenção de toda a escola, dos garotos mais bonitos, e estar por dentro das tendências — que nada mais é do que um padrão, imposto desde cedo. São comportamentos moldados e internalizados a partir de diversos produtos midiáticos que mostram garotas ainda na pré-adolescência agindo como mulheres e obtendo vantagens, atenção e provação ao virarem “mocinhas”, por já serem tão maduras com tão pouca idade, e por se comportarem com responsabilidade e a postura de alguém que já possui opiniões formadas e vivências suficientes para tomar as rédeas da própria vida. Às meninas não é permitido mais serem meninas.

O atestado de que vivemos em uma cultura que não hesita em ferir as mulheres e não poupa nem as meninas de seu rastro de violência (seja ela de forma física ou simbólica) reside no fato de uma revista não ver problema em eleger uma garota de 13 anos como um dos motivos de “A TV estar mais sexy do que nunca”. O horror vai além quando, ao olhar a capa da publicação, que estampa Charlize Theron, percebe-se que não há muito que diferencie seu ensaio do de Millie Bobby Brown, ainda que a diferença de idade entre as duas atrizes seja significativa: Theron tem 42 anos, quase três décadas a mais do que Millie — o que, no entanto, não impediu que as fotos de Bobby Brown passassem uma mensagem tão sexy quanto as de Charlize em comparação.

A estrela de Stranger Things não é a primeira a enfrentar a representação tóxica de sua imagem, no entanto. Atrizes como Emma Watson e Mara Wilson (ícone dos anos 90 que interpretou a personagem Matilda no filme de mesmo nome e se tornou uma voz ativa sobre como crescer em Hollywood foi uma das piores coisas que lhe aconteceu) também precisaram enfrentar um crescimento precoce, lidar com comentários invasivos, abusivos, opiniões e julgamentos alheios sobre seus corpos, suas aparências e suas atitudes. Watson, por exemplo, precisou ver um jornal fazer contagem regressiva para seu aniversário de 16 anos, quando poderia ser fotografada de forma sensual — ou mesmo sexual — sem que fosse considerado pedofilia, ainda que, de acordo com a lei inglesa, continuasse a ser considerada menor de idade. Mas não é preciso ir muito longe em se tratando da erotização precoce de meninas. No Brasil, a jovem MC Melody teve seu auge em 2015, quando ainda tinha oito anos, e chegou a virar caso de investigação pelo Ministério Público por “violação ao direito ao respeito e à dignidade de crianças/adolescentes” devido à negligência do pai, que permitia à filha sensualizar em seus clipes e cantar músicas com alto teor sexual.

Mais recentemente, a internet viu o caso de perseguição à atriz Larissa Manoela que, por tentar emular um comportamento adulto, sensual, destacando atributos físicos e cultivando atitudes e falas de mulheres adultas, se tornou alvo de cyberbullying e chacota generalizada, a exemplo do que Melody sofreu em seus 15 minutos de fama. Nesse caso, diferente da maioria das reações registradas em relação à Millie Bobby Brown, ocorreu uma censura velada pelas garotas já estarem agindo como adultas, culpabilizando-as e ridicularizando-as por não agirem de acordo com sua faixa etária.

Quando se trata de Millie, termos como “musa”, “ícone fashion”, “it girl” e “sexy” são usados a todo tempo, empurrando-a cada vez mais para seu crescimento precoce e reforçando comportamentos que apenas mulheres adultas deveriam ter. As consequências são muito reais e concretas e ultrapassam a bravata de que é “apenas uma fase” ou que a única prejudicada, no final, será a pessoa adultizada/sexualizada. Como seres sociais, aprendemos uns com os outros e reproduzimos comportamentos e ideias que estão impregnados a nossa volta. Tratar uma criança como adulto não a leva apenas a acreditar que esse é seu papel, mas também abre espaço para que outros façam o mesmo — neste caso, a homens que acreditam que é assim que garotas devem ser vistas e tratadas.

Uma pesquisa liberada em 2013 pelo site P0rnhub revela que, no Brasil, o termo mais buscado por internautas que acessam o site é “novinha”. Uma “novinha”, na visão dos homens, é uma garota que já age como mulher, porque se veste como tal e também possui um corpo curvilíneo e em pleno desenvolvimento, o que lhes dá passe livre para tornar essa figura objeto de seu desejo sexual. Se todos as tratam como adulta, por que um homem não se sentiria no direito de fazê-lo também? A lei, obviamente, diz o contrário. No Brasil, o envolvimento amoroso e sexual com crianças menores de 14 anos é considerado estupro de vulnerável, já que há o entendimento que, com essa idade, a pessoa ainda não é capaz de tomar as próprias decisões e compreender inteiramente as implicações de se envolver romanticamente com alguém. Nos Estado Unidos, esse limite é elevado, sendo punido por lei aquele que se relacionar e ter qualquer tipo de contato físico com menores de 18 anos.

Mais reflexos do ciclo vicioso que se cria com uma cultura aparentemente inofensiva, amenizada pelo argumento de que “crianças querem mesmos ser/parecer adultos”, são os dados cada vez mais alarmantes de pedofilia registrados nos país. Números colhidos pelo Disque Denúncia e publicados pela Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos, vinculada ao Ministério da Justiça e Cidadania, mostram que, em 2016, 76.171 meninos e meninas podem ter sofrido algum tipo de violência no Brasil, não apenas sexual. Com isso, os números não mostram que a adultização e erotização de crianças leve, necessariamente, à pedofilia, mas é preciso entender que tais ações têm consequências e, sendo assim, somos fruto daquilo que consumimos e vivenciamos diariamente. Tratar uma criança como mais do que ela realmente é não passará sem efeitos negativos para a sociedade como um todo.

O que tiramos de tudo isso é que somos todos parte do problema, de forma consciente ou inconsciente, e precisamos apoiar nossas crianças, sejam elas famosas ou não, e mostrar por meio de um educação aberta, informativa, baseada no debate, que nem sempre o que a mídia dita é aquilo que deveríamos tomar como a verdade, deixando, assim, que as crianças sejam aquilo que deveriam ser: apenas crianças.

3 comentários

  1. Parabéns pela matéria!
    Concordo em gênero, número e grau.
    O ser humano não pode pular as etapas da sua vida.
    Tudo no seu tempo!

  2. 2019 e eu lendo essa matéria, perfeita por sinal… sou fã da millie e acho que ela tem que abrir os olhos, uma adultilizacao na carreira de uma atriz mirin acaba manchando a reputação dela

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